A POLÍTICA BRASILEIRA NA ERA DO CINISMO Bolívar - TopicsExpress



          

A POLÍTICA BRASILEIRA NA ERA DO CINISMO Bolívar Lamounier 08.07.2013 O descrédito das instituições de representação política é generalizado na América Latina, mas suas causas e efeitos não são idênticos de um país a outro. Na análise a seguir, referente ao caso brasileiro, partirei de três premissas: (1) o processo de redemocratização concluído nos anos 80 desgastou enormemente o centro liberal - o núcleo de líderes civis que comandou a luta contra o regime militar; (2) as lideranças que ascenderam ao primeiro plano na virada dos anos 80 para os 90 não lograram reconstituir ou revigorar o centro; (3) inexistindo um centro liberal forte, as forças que vieram a predominar - as que menos valorizavam a democracia e suas instituições como um valor em si mesmo- assumiriam um caráter notavelmente oportunista e predatório. QUE QUER DIZER “CENTRO LIBERAL”? Liberalismo político – se me perdoam a redundância- é a teoria política da democracia liberal, vale dizer, da democracia representativa. Denomino centro liberal o conjunto de políticos que, em sucessivos momentos históricos, desempenha zela pela estabilidade e pela qualidade do processo representativo. São indivíduos que vivem “para” a política; que valorizam as instituições, o comedimento e a flexibilidade. Moderados, experientes e dotados de ampla visão histórica, os políticos desse tipo valorizam a continuidade da tradição política e preocupam-se diuturnamente em afastar possíveis riscos de ruptura da ordem institucional. Não se infira do que foi dito que tais grupos sejam homogêneos no que se refere a ideologias econômicas e sociais; homogeneidade é uma questão de grau, pode ou não existir em dado momento. O ponto chave do meu argumento é que os integrantes do centro sabem distinguir uma coisa da outra; sabem quando o essencial é defender as instituições, ou tentar aprimorá-las, e não fazer avançar suas posições quanto ao restante. A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA NO PÓS-64 No pós-64, a tarefa de organizar a oposição e sustentar o combate ao regime coube a homens como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela e Franco Montoro, veteranos do regime anterior, aos quais se juntariam mais tarde alguns expoentes da geração seguinte, entre os quais Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso. Assinalo que o próprio general Geisel e o ex-ministro Roberto Campos, homens do regime, aproximaram-se do centro a partir de meados dos anos 70, o primeiro atuando como um moderador de todo o processo em relação aos “duros” do meio militar, o segundo ajudando a identificar alternativas e a criar um léxico político adequado para a continuidade da distensão. Obviamente não estou dizendo que Ernesto Geisel fosse ou tenha se tornado filosoficamente um liberal: longe disso; digo, isto sim, que ele tinha um sentimento do Estado como uma ordem impessoal, a ser defendida contra caudilhos e demagogos mas também contra grupelhos fascistas incrustados na máquina militar. O ESVAZIAMENTO DO CENTRO Demorada e frustrante, a transição do regime militar ao civil expôs os líderes ‘centristas’ ao sol e à chuva, submetendo-os a um desgaste de vários anos. Entre os numerosos episódios que poderiam ilustrar tal afirmação, lembro: --- as dificuldades encontradas por Franco Montoro em 1982, logo nos primeiros dias após tomar posse no governo de São Paulo (embora se deva lembrar a ação de grupos de ultraesquerda tentando mobilizar uma hostilidade popular contra ele); --- candidato do PMDB à presidência da República em 1989, Ulisses Guimarães, o Mr. Diretas, teve 1.5 % dos votos. Acrescente-se que a reta final da transição – os 6 anos do general Figueiredo- caracterizaram-se por um tremendo aprofundamento da crise econômica, adensando as tensões políticas e reforçando o referido desgaste do centro liberal. O ‘grande salto para a frente’ pretendido pelo governo Geisel - baseado num gigantesco programa de substituição de importações a ser financiado por empréstimos internacionais - foi posto em dúvida antes mesmo de iniciado, devido à elevação dos preços do petróleo em 1973, e seria definitivamente aniquilado em 1979, em razão do segundo choque do petróleo e da brutal elevação dos juros incidentes sobre a dívida externa contraída no período. Fantasiando uma sobrevida para o modelo, o presidente Figueiredo colocou Delfim Netto no comando da economia, só para constatar que os czares-mágicos da economia podem ser os agentes de uma história que se repete como tragédia. Não por acaso, o intervalo de 1982, ápice da crise da dívida, até a estabilização levada a cabo por Fernando Henrique Cardoso ficaria conhecido como uma “década perdida”. A morte de Tancredo Neves em abril de 1985, o arrastado processo de elaboração da Constituição de 88 e a prolongada crise econômica completaram a virtual destruição do centro liberal, assegurando ao mesmo tempo a condutibilidade atmosférica do discurso antipolítico. Este se configura com clareza toda vez que o ataque aos políticos se apresenta como o caminho mais curto para o sucesso político. É o que se pode apropriadamente denominar “política do cinismo”, cuja monumental encarnação se dá na eleição presidencial de 89, reveladora de Fernando Collor, o caçador de marajás, como um grande talento no ramo. Destituído Collor, o lugar vago não tardaria a ser ocupado por Lula como pessoa física e pelo PT como pessoa jurídica. Voltados exclusivamente para a capitalização eleitoral dos subprodutos da crise do impeachment, eles se furtariam pura e simplesmente, quando da formação do governo Itamar, a assumir sua parcela de responsabilidade; convidada a assumir um ministério, Luísa Erundina teve de optar entre aceitar o convite ou se desligar do partido dos Trabalhadores. Em 1993, como todos se recordam, Lula era tido como um candidato presidencial imbatível. A revista Veja dedicou-lhe uma capa intitulada “Lula sozinho na estrada”, ilustrada por uma fotografia do próprio à beira de uma estrada com o paletó jogado sobre o ombro. Pois foi nessa época - disto os meus caros leitores talvez não se recordem - que Lula se referiu aos “300 picaretas” que ao ver dele formavam a maioria no Congresso. Não cabe discutir se tal afirmação era factualmente correta ou incorreta, pois obviamente se tratava de um juízo de valor – juízo além do mais genericamente enunciado, portanto insuscetível de ser analisado com algum rigor. O que importa é o termo utilizado e as circunstâncias de sua utilização. Uma palavrinha jogada ao léu? Uma brincadeira? Ou um caso pensado? Cada leitor fará sua leitura, é normal que assim seja. Para mim Lula, antevendo a conveniência de um Legislativo tão desmoralizado quanto possível na provável eventualidade de sua ascensão à presidência, quis de fato pintar os congressistas como os únicos “picadores” do erário público no país. Aliviando o termo de sua carga pejorativa, os ‘picaretas’ compõem uma parcela da classe política que tem sua importância, mas não se notabiliza pelo requinte intelectual ou por convicções filosóficas. São os políticos que não possuem e nem aspiram a uma estatura nacional. São os representantes de regiões, de clientelas associativas ou categorias corporativas; muitos também sem uma base definida. Pequenos, ou pouco ambiciosos, mas não necessariamente desonestos ou deletérios para a democracia. Não é necessário e seria entediante evocar tudo o que se passou desde então em ordem cronológica. Há mais de uma década, temos assistido a um enriquecimento deveras notável do vocabulário do cinismo. “Todo mundo faz igual”. “É uma conspiração das elites contra o governo popular”. “Não vai dar em nada”. Em seus dois anos e meio de governo, Dilma Rousseff também já experimentou a mão nessa arte. Poucos dias atrás, respondendo ao “clamor das ruas” com um estapafúrdio plebiscito sobre reforma política e deixando para o Congresso o ônus de rejeitá-lo, ela mostrou os progressos que tem feito. Nos dias que correm, o argumento deste texto certamente soará demasiado utópico, mas não me custa reiterá-lo, até para facilitar a discussão: parece-me que não pode haver democracia, nem política, nem instituições dignas do nome onde não exista um “centro” liberal e onde o cinismo se consolide como a modalidade dominante de ação política. Não creio que tenhamos já cruzado esse limite, mas a tendência está aí, bem à vista de todos. Não é um processo simples, evidentemente; longe de mim pretender reduzi-lo a uma causa única. Com esta ressalva, creio que o esvaziamento do centro no transcurso do último quarto de século contribuiu poderosamente para a consagração da esperteza e a perda de altitude do Legislativo e dos partidos: ou seja, para o abastardamento das instituições democráticas.
Posted on: Mon, 08 Jul 2013 21:45:22 +0000

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