CAPÍTULO I A Estação Eram dez horas da manhã de um dia frio - TopicsExpress



          

CAPÍTULO I A Estação Eram dez horas da manhã de um dia frio e a neve caía mansamente. Lembro-me como se fosse hoje, 31 de dezembro de 1899. Recordo-me bem desta data, pois, ao contrário dos anos anteriores, este fora marcado por fatos um tanto estranhos. Foi um ano em que fizera calor demais no inverno e muito frio no verão; os pássaros voavam em direção ao norte e não pro sul como de costume; enxergava-se a lua em pleno dia e à noite ela desaparecia a olhos nus... Algumas pessoas diziam que dias como aqueles só haviam se repetido em épocas que datavam de cem anos atrás. Eu estava na estação ferroviária de Burgswill, em companhia de minha avó – por parte de pai - Emily, com a qual havia vindo passar as férias de Natal e iria pegar o último trem que partia exatamente às onze horas e quarenta e cinco minutos, para encontrar meus pais que me aguardavam em Marsheville, minha cidade natal, para comemorarmos a chegada do ano novo. Burgswill era uma estação pequena e extremamente simples, onde havia um grande relógio de madeira acima da porta de entrada, com vistosos ponteiros vermelhos feitos de ferro fundido, duas bilheterias, das quais apenas uma se fazia aberta para venda de passagens e uma singela taberna onde se vendia bebidas e algumas guloseimas. A estação não estava totalmente lotada - como seria de se esperar nessa época do ano - mas se podia notar um bom número de pessoas entrando e saindo a todo o momento. Havia alguns vagões estacionados nos trilhos, outros estavam sendo colocados ali por intermédio de um funcionário das estradas de ferro da Baixa Mojana, que manuseava as junções móveis daquele trecho dos trilhos; a estação localizava-se nos fundos de uma fábrica de papel e celulose. Minha avó era uma mulher de setenta anos de idade, muito bondosa e muito rígida, que tinha por costume ajudar as pessoas carentes de sua comunidade, já que dispunha de uma boa situação financeira, devido à herança que tinha recebido de meu avô Henry, grande industrial do ramo de tecidos. Ela era elegante, fina e sábia. Tal era sua admiração por antiguidades que chegou ao ponto de criar para si própria, dentro de casa, um pequeno antiquário que mantinha trancado a sete chaves. Tinha uma voz baixa e macia, falava com eloqüência e serenidade. Sempre usava seu chapéu combinando com seus vestidos e com suas bolsas e nunca se separava de sua sombrinha - que acompanhava a combinação com o vestido, o chapéu e a bolsa - com a qual se protegia do sol, da chuva e de algum malandro metido a esperto - era do tipo “durona” - que ousasse atravessar seu caminho. Estava ficando entediado com a demora do trem e pedi dinheiro à minha avó para comprar alguns doces e balas. Dirigi-me até a taberna, onde o balconista terminava de atender uma menina loira de vestido branco e laço na cintura; pedi ao vendedor, assim que a menina saiu do estabelecimento, algumas daquelas delícias. Ele fitou-me de cima abaixo intrigado, então, num estalo, saiu de seu transe momentâneo. -Olá meu jovem, o que é mesmo que você queria? Disse ele, desorientado, mas com gentileza. Então refiz meu pedido. Sua fala quase não se diferenciava da maioria das pessoas da localidade, mas sua aparência e seus trajes faziam-lhe parecer um estrangeiro, um viajante do tempo, alguém saído das antigas lendas medievais. -Qual seu nome, jovem? Perguntou ele. -Cart, senhor. -Não seria... Cart Wilson, seria?! -Isso mesmo, como o senhor sabe? O senhor conhece os Wilson? -Conheci seu tetravô. -O senhor quer dizer meu avô! -Bem... Sim, seu avô também, eu acho... E pra onde está indo, menino Cart? -Vou para Marsheville. O senhor já esteve em Marsheville? -Apenas de passagem. Você está aqui sozinho? -Não, senhor. Estou com minha avó. Apontei em sua direção, tendo a impressão de que não despregava os olhos de mim. O taberneiro acenou para ela, que lhe devolveu o gesto. Agora a sensação foi de que já se conheciam. -Sabe de uma coisa, vejo grandes feitos no seu futuro. Você é um líder nato, sabia disso? Tenho algo para você. Em seguida retirou de um vidro que estava atrás dele na prateleira algumas gomas de mascar – parecidas, porém um pouco maiores que bolinhas de gude – e entregou-me sem cobrar nada por elas. A tampa do vidro continha gravuras em alto relevo dos quatro elementos da natureza; pensei que pudesse estar ali há muito tempo, devido a seu aspecto envelhecido. Disse para que eu as usasse sabiamente. Mesmo sem ter entendido muito bem o sentido daquilo, assenti positivamente com a cabeça e saí. Então ele gritou para mim: -A propósito jovem, meu nome é Al Zhar. Não tive tempo de responder-lhe, pois, nesse instante, esbarrei em um menino de feição oriental que adentrara o estabelecimento às pressas. As balas e doces caíram de minhas mãos e espalharam-se pelo chão. O menino tinha cabelos pretos e lisos - como é de característica dos orientais - do qual a franja lhe cobria os olhos; presumi que tivesse um pouco menos idade do que eu, contudo, era mais baixo também. Usava roupas típicas chinesas – calças e blusão de boca larga - com sapatilhas pretas nos pés e um chapéu como os dos lavradores de arroz de seu país. Pedi desculpas pelo encontrão e ofereci uma de minhas balas de modo a recompensá-lo - enquanto ele me ajudava a recolhê-las – ele recusou, mas disse que aceitaria um de meus bombons. Disse que se chamava Yang Ono; fui recíproco e também me apresentei: -“Sir” Cart Wilson... Melhor dizendo, apenas Cart Wilson, por enquanto, mas pretendo receber o título de “Sir” da coroa inglesa, quando escrever um livro narrando minhas aventuras. Tinha um costume agudo de escrever tudo o que acontecia, em uma pequena caderneta de bolso, que levava comigo onde quer que eu fosse. -E são muitas? -Ainda não vivi nenhuma, mas sei que elas vão acontecer. -E como pode ter tanta certeza? -Não tenho, mas é assim que devemos pensar, não é? Pensamento positivo! Reforcei a frase apontando meu polegar direito para cima, mantendo o punho fechado. Ficamos conversando. Disse que havia adorado o futebol, esporte que acabara de conhecer na Inglaterra, pois em seu país ainda era algo desconhecido - na realidade era novidade até mesmo para nós – então brinquei, dizendo que poderia ensinar-lhe algumas jogadas e até as regras daquele jogo; meu pai era praticante assíduo do novo esporte. Disse-lhe que admirava as artes marciais e os movimentos plásticos daquele estilo de luta. Ele contou-me que sua família originava-se de uma linhagem de grandes lutadores. Ainda conversávamos quando seu tio – também oriental, que aparentava ter cerca de quarenta anos, longos bigodes em forma de ferradura, cabeça totalmente desprovida de cabelos e que trajava o mesmo estilo de roupa do garoto – o chamou. Desejava lhe falar algo sério, pelo que pude notar em sua fisionomia. Ele obedientemente atendeu sem demora. Foi a primeira vez que tive contato com a lendária e rígida disciplina milenar oriental. -Oi tio, já vou! Respondeu ele ao chamado. É meu tio, Ling Lee, irmão mais novo de minha mãe. Qualquer dia lhe apresento, mas já vou avisando hein, ele não fala inglês e é meio leso da cabeça também. Disse Yang enquanto se retirava. -Tá, dê um alô a ele por mim. Despedimo-nos e fui ao encontro de minha avó. Permanecíamos sentados. Estava a rabiscar os últimos acontecimentos em minha caderneta de capa marrom, quando o trem chegou. Era uma locomotiva imponente, com uma enorme chaminé, soltando uma extensa nuvem de fumaça que se propagava ao longo da estrada de ferro. Via-se escrito na frente da mesma: “Expresso 19-00”. Puxava 18 vagões de cor marrom dotados de pequenas janelas dos dois lados. Fiquei impressionado com o barulho do apito – que se fazia ouvir a quilômetros dali – anunciando sua chegada à estação. Era hora de despedir-me de minha avó, pois o apito do trem soara uma vez mais, agora, para alertar aos passageiros de que deviam embarcar. Minha avó deu-me um forte e longo abraço, como se nunca mais fosse me ver de novo. Tirou da bolsa uma pequena caixa de madeira toda entalhada a mão. Abriu a caixinha e retirou de seu interior vermelho-almofadado, um medalhão que posteriormente colocou em meu pescoço. Era um medalhão pesado e de aspecto misterioso. “É uma jóia de família. Está em poder dos Wilson a várias gerações - dizia. Só existem mais dois como este em todo o mundo”. - ele reluziu em minhas mãos quando estava a contemplá-lo. Depois, beijou-me o rosto e desejou-me boa viagem. Logo em seguida embarquei, rumo à minha casa. -Não se esqueça de tomar seu remédio. -Não vou me esquecer vovó. -Mantenha as mãos aquecidas para não gripar. -Já fiz isso vovó. -E... -Já sei vovó, já sei... -Dê lembranças à sua mãe, diga que estou com saudades e avise a seu pai que logo irei visitá-los. -Pode deixar que eu direi sim. Até breve vovó. -Não deixe que ninguém o perturbe. E tenha cuidado, tem de se vigiar. Disse-me ela acenando com o lencinho branco, enquanto o trem já se punha em movimento. Eu acenava-lhe de volta, com a cabeça para fora da janela do trem. Levei a palma da mão até a boca e, pressionando-a contra os lábios, mandei-lhe um beijo de despedida.
Posted on: Tue, 09 Jul 2013 00:49:09 +0000

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