Fila de banco. (mais ou menos revisado, rs) Uma senhora me diz - TopicsExpress



          

Fila de banco. (mais ou menos revisado, rs) Uma senhora me diz bom dia com a expressão mais indiferente e meio triste do mundo na fila de senha do banco. O tempo lá fora está feio, deve beirar uns 15 graus, o segurança esboça um resquício do que foi um sorriso algum dia e observo que esqueci a droga do celular naquele compartimento de acrílico que esfolia minha mão toda vez que o deposito junto com o molho de chaves e algumas parcas moedas, que posteriormente serão usadas para pagar o estacionamento, que fica a duas quadras distante do banco, sendo que o mesmo possui local para estacionar, mas como de praxe, deve ser reservado para clientes mais abastados. Pela vidraça que deve ser blindada, vejo a chuva fina e algumas gotas brincam de escorregar pelo vidro insuportavelmente limpo, como uma música sem nada de picos de frequências, plastificada, o que me faz lembrar que esqueci o bendito guarda-chuva dentro do porta-malas, e se continuar, como parece que vai, molharei a única calça que ainda me serve, e tenho que usá-la para tocar à noite. Para meu desespero, a senha que a estagiária me entrega indica que tem mais dezoito desconhecidos à minha frente, além da senhora que me deu bom dia com a cara meio triste. Deveria ter trazido um livro, penso, e noto que estou meio cansado de tanto deveres, pena estar cansado agora, deveria ter me cansado antes, talvez não estivesse aqui na fila, e só agora percebo que a senhorinha sorriu para a estagiária... Por que será que não sorrira para mim, influência minha talvez... Olho para a senhora como que cobrando um sorriso também, a estagiaria é bem bonita e novinha, talvez seja isso, a beleza e a idade, os motivos para a ausência do sorriso. Olhando melhor penso que a estagiária poderia ter mais sustância, mas mesmo assim como-a com meus olhar já envelhecido. Ela já é de maior, o que me faz ser politicamente correto e dentro da lei, dos homens, não da igreja. Mas não me importo muito com a igreja, mesmo desejando ir para o céu, mas não agora, não sem antes pagar minhas contas aqui no banco, e as do mundo lá fora. Estar num banco é como se estivesse num universo paralelo, a porta giratória funciona como um portal para outra dimensão, para outra esfera. Sem sorrisos, sem comunicação, sem sustância na estagiária e nas relações. Senhas, painéis, cabines, sons metálicos, guardas e as gotas de chuva na vidraça temperada. Embora não fume, solidariamente observo que não há área reservada para fumantes. Sento-me num banco até que meio confortável, a senhora, que deve ter pegado a senha preferencial acomoda-se bem a minha frente, agora com o que parece um sorrisinho, cínico, sarcástico. Pergunto-me porquê, que foi que eu fiz... Talvez seja o fato de que será atendida na minha frente. Não, não creio, recuso-me a pensar nessa possibilidade, o ser humano não seria tão ardiloso assim. Alguém esqueceu uma revista no banco vizinho, não consigo ver o nome, nem suas manchetes, deixei meus óculos junto com o guarda-chuvas no porta-malas do carro que estacionei a dois quarteirões do banco... Penso que na saída posso cortar caminho passando por dentro das Lojas Marisa. Com certeza chamaria muita atenção, pois o que um sujeito todo molhado estaria fazendo sem a mulher naquela hora em meio às lingeries... Um fetiche, porque não... Preciso pegar a revista antes que alguém tenha a mesma idéia, desisto, mas a Hebe que está na capa chama minha atenção, ainda estava viva, leio a manchete como se fosse leitura em braile com o nariz, chego a encostá-la na cara. Percebo que alguns dos dezoito desconhecidos que estão à minha frente na fila de atendimento se compadecem. Bem que eu poderia ir na fila preferencial, ser dotado com mais de dez graus no olho direito não é para qualquer um, mas não sou digno de tanta compaixão, haja visto o modo como olhei a estagiária... Na revista encostada no nariz a Hebe anuncia que vai dar uma grande festa para comemorar seus oitenta anos. Como estamos em 2013 e ela morreu em 2012, de parada cardíaca enquanto dormia, bastava só mais dezessete primaveras para ela completar um centenário. Logo a revista que alguém esqueceu ali no banco vizinho já tinha quatro anos... Como é que uma revista dessas sobrevive por tanto tempo? Lembrei-me do consultório da minha dentista, ela ganha longe... Chove lá fora, sublimo sem citar o autor. Recentemente li que ele é o ó do borogodó da direita, e isso não orna nem um pouco com rock and roll. Divago, a senhora que era preferencial já está saindo e me olha ainda sem sorrir... Não entendo, se não vai me sorrir, por que me olha, talvez seja uma conhecida e eu é que não a reconheci, mas mesmo assim eu sorri, e ela não. Por que? Num impulso levanto-me deixando cair a revista da Hebe que estava no meu colo e dirijo-me em sua direção, quero matar a curiosidade, mas já é tarde, ela já passou pela porta giratória e já abrira o guarda-chuva, digo, a sombrinha, toda colorida, que não combina em nada com a sua falta de sorriso... A chuva sossegou um pouquinho, mas ainda dá pra molhar e penso na única calça que ainda me serve, na senhorinha que já foi embora, na estagiária sem sustância, na Hebe que já morreu, e não sei por que cargas dágua, lembro-me do Raul, que ao contrário do estranho roqueiro da direita, botava a boca no trombone nos tempos da ditadura. E olha que eram tempos mais difíceis. Cargas dágua de chuva, a chuva pela vidraça, as gotas de chuva brincando de escorregar no vidro blindado insuportavelmente limpo... Todo dia esforço-me para mudar a imagem que Sofia me passou numa tarde chuvosa quando voltávamos da escola, sobre as gotas de chuva no para-brisa do carro: “Parecem lágrimas”, ela disse... “São gotinhas brincando de escorregar”, tentei... O painel, que só consigo ler por ter letras garrafais, anuncia que serei o próximo... Deve ser daí a origem do termo óculos com lente de garrafa... Espero que a chuva não pare, sou o próximo, vou sorrir para a moça do caixa, para o segurança, escrever meu nome na vidraça pelo lado de fora com as gotinhas da chuva e depois vou atravessar a praça do Rosário dançando, molhando a calça, a cara, lavando a alma... Beijarei na boca a senhorinha se a encontrar. Eu perdi o meu medo da chuva, e não vou ficar esperando a morte chegar. . A freitas Robson Lanziloti & João Luís Piemonte Ribeiro...
Posted on: Wed, 14 Aug 2013 19:24:12 +0000

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