O Cânon de São Vicente de Lérins Sua utilização pelos - TopicsExpress



          

O Cânon de São Vicente de Lérins Sua utilização pelos heterodoxos e sua verdadeira explicação católica pela Deputação da Fé do Vaticano I e pelo Cardeal Franzelin (1981) Rev. Pe. Bernard Lucien Autores recentes pretenderam atrelar a doutrina católica sobre o Magistério ordinário e universal à regra da ortodoxia enunciada no século V por São Vicente de Lérins. O presente trabalho tem, pois, como objetivo estudar esse “cânon de São Vicente de Lérins” e sua interpretação católica. Para começar, situaremos rapidamente São Vicente de Lérins e sua obra; em seguida, indicaremos como o famoso “cânon” foi recebido, na sequência dos tempos, pelos católicos e pelos heterodoxos. Isso já mostrará como nos enganam os que afirmam esse critério como se fosse pura expressão do pensamento da Igreja. Por fim, citaremos dois estudos importantes e autorizados sobre o referido cânon. Dentre esses autores, alguns não temem apresentar sua posição como a expressão da teologia católica, como a posição tradicional, de fato como a posição “dos santos, dos doutores e dos teólogos”. Temos de desmascarar, de passagem, essa segurança na ignorância. Pois, lamentavelmente, ela engana os fiéis. Muitos realmente acreditam que, quando um escritor tradicionalista sentencia: “Todos os teólogos afirmam que…”, é porque de fato todos os teólogos o afirmam. A realidade é, com frequência, bem diferente. Gostaríamos muitíssimo de não ser constrangidos a fornecer maiores precisões sobre esse assunto… A. SITUAÇÃO DO CÂNON LIRINENSE. RECORDAÇÕES HISTÓRICAS. É em torno do ano 410 que Santo Honorato, abandonando fortuna e posição social, retirou-se em companhia de alguns amigos à Ilha Lirina, ao sul de Cannes, para lá viverem à maneira dos monges do Oriente. Em poucos anos, um mosteiro dos mais fervorosos estabeleceu-se assim na solidão das ilhas Lérins. Essa “cidadela gloriosa”, esse “acampamento entrincheirado” (expressões frequentes sob a pluma dos lirinenses) tornou-se, durante todo o século V, viveiro de bispos e de santos, bem como centro ativo de teologia. A irradiação do mosteiro, tanto do ponto de vista pastoral como doutrinal, expandiu-se amplamente pela Gália desse século. Notemos em particular que os lirinenses tomaram posição contra a doutrina da graça defendida por Santo Agostinho. E é preciso reconhecer que eles talvez não tenham escapado completamente à influência do semipelagianismo, em particular sob a ação de Cassiano, abade do mosteiro de São Vítor de Marselha (de 410 a 435, aproximadamente). É nesse meio que encontramos, desde 430, São Vicente. Ignora-se quase tudo sobre ele, mas ele ficou célebre por seu Comonitório (= notas teológicas para auxiliar a memória), obra concluída em 434, e que se propunha a enunciar uma regra segura para distinguir a verdadeira fé católica do erro das heresias. Essa regra foi condensada pelo autor em fórmula de feliz brevidade, cuja expressão lapidar indubitavelmente contribuiu não pouco para garantir-lhe o sucesso: “Nós devemos manter o que foi crido por toda a parte, sempre e por todos”. O modo como essa regra, logo denominada “Cânon de São Vicente de Lérins”, foi acolhida na Igreja, e entre os inimigos da Igreja, é o que vamos focar agora, antes de passarmos ao seu estudo propriamente doutrinal, feito por teólogos particularmente autorizados. DO CÂNON LIRINENSE. Não parece que a obra de São Vicente tenha sido utilizada pela Idade Média. Santo Tomás de Aquino não a cita jamais. Foi com a Reforma que o cânon lirinense recuperou o prestígio, tanto pelos católicos quanto pelos protestantes (Cf. Meslin, p. 26). Mas foi sobretudo no século XIX que se discutiu sobre o valor teológico dessa regra (Cayré, p. 164). Alguns tomaram posição bastante dura contra São Vicente. Assim, o doutor Ehrhard, teólogo católico alemão, escreveu: “No que tange à regra da fé de [São] Vicente, pode-se conseguir dar às palavras um sentido justo; mas, no sentido em que [São] Vicente a compreendia e queria que fosse compreendida, essa regra é pura e simplesmente falsa, e já é hora de abandoná-la ao seu autor e não fazer mais nenhum amálgama da verdadeira regra da fé católica com o nome do monge lirinense…” (Cf. d’Alès, col. 1752). Tamanha severidade, porém, parece ter sido excepcional. A maioria dos autores tomou posição mais favorável ao santo. Mas assinalavam então a necessidade de precisões, de distinções, algumas fornecidas pelo próprio São Vicente na sequência do texto dele, outras formuladas por teólogos posteriores, ou exigidas pela doutrina da Igreja explicitada depois do século V. Nesse sentido, d’Alès escreve (col. 1750-1751): “Regra de aplicação evidente, no caso de novidade que entra em conflito com tradição constante e segura, de aplicação muito mais delicada em grande número de casos. Para regular essa aplicação, o monge de Lérins julgou necessário enunciar certas distinções; foram formuladas outras depois dele. É preciso levar em conta tanto umas como outras, para pronunciar juízo equitativo sobre esse canon lirinensis.” Nessa perspectiva, reconhece-se de bom grado que essa regra, tomada demasiado estritamente à letra, poderia tornar-se fonte de erro (Cf. Meslin, p. 23). É bem conhecido, por exemplo, que a defecção do teólogo alemão Doellinger quando do Concílio Vaticano I deveu-se, ao menos em parte, a uma fidelidade demasiado formal ao cânon lirinense. E, de fato, não apenas a regra vicentina exige precisões e pode ser fonte de erro, como ainda foi ela utilizada por diversos hereges contra a Igreja. Já o apontamos acima, a propósito da Reforma. O cardeal Journet, em estudo sobre a conversão de Newman (p. 718), observa: “Ele [Newman] toma emprestada ainda, dos teólogos anglicanos, a ideia de se munir da regra da ortodoxia formulada por São Vicente de Lérins na primeira metade do século V, e constantemente citada desde então pelos teólogos católicos, para tentar voltá-la contra a própria Igreja Romana. Pode-se, com efeito, atribuir ao princípio do monge lirinense, como a muitos outros princípios, sentidos distintos e mesmo inconciliáveis”. Diante desse estado de fato, a conclusão de Meslin, no parágrafo “Valor e limites do critério lirinense” (p. 23), explica-se facilmente: “Compreende-se, no entanto, que, em razão das insuficiências teológicas do critério lirinense, nunca a Igreja Católica Romana o assumiu sem reservas”. E compreende-se também como se enganam – e nos enganam – aqueles que, hoje em dia, tentam fazer desse critério referência absoluta à qual os teólogos deveriam se submeter sem discussão, como se fosse definição do Magistério. Concluamos este parágrafo com dois fatos que ilustram bem a atitude da Igreja com relação ao cânon lirinense: — O catecismo da diocese de Würzburgo, sob o pontificado de Leão XIII, trazia: “Como reconhecemos que uma tradição é divina? Reconhecemo-lo pelo fato de ela ter sido crida sempre, por toda a parte e por todos”. A isso, os censores romanos fizeram observar que o cânon de Lérins não era nem o único critério dos dogmas, nem o principal, e que era preciso dar o primeiro lugar às definições da Igreja (d’Alès, col. 1753). — Durante as conversações de Malines (entre anglicanos e católicos; essas conversações, de acordo com a vontade da Santa Sé, guardaram sempre caráter oficioso), o cânon lirinense foi aduzido. Os anglicanos pediam, com efeito, que a Igreja Romana não exigisse nada além da profissão dos artigos de fé que se ajustassem estritamente ao cânon de Vicente de Lérins. Pela boca de Mons. Battiffol a resposta foi negativa: “Não! esse cânon não pode ser tomado à letra, sob pena de nos levar de volta a uma concepção caduca da história dos dogmas”. (Cf. Meslin, p. 30). E Meslin conclui (p. 30): “O fracasso das conversações de Malines coincide com uma baixa muito sensível do crédito dado ao Comonitório”. B. DOIS ESTUDOS TEOLÓGICOS “CLÁSSICOS” SOBRE O CÂNON LIRINENSE. 1. APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS. da Deputação da Fé no Vaticano I. Ao longo dos debates sobre a infalibilidade pontifícia que ocorreram no Vaticano I, a minoria anti-infalibilista apoiou-se especialmente no cânon lirinense. Contra a infalibilidade do Papa sozinho, da Igreja Romana sozinha, ela aduzia o “por toda a parte, por todos” de São Vicente. Para um ensinamento do Papa ser infalível, dizia a minoria, seria preciso que ele fosse crido por toda a parte e por todos; seria necessário, pois, o consentimento de todos os bispos. Diante dessa utilização falaciosa do critério lirinense, a Deputação da Fé teve de reagir, e difundiu uma exegese do famoso cânon, para expor o alcance dele em perspectiva católica. O objetivo da Deputação da Fé era demonstrar que esse cânon não podia ser utilizado contra a infalibilidade do Papa sozinho. Mas ela foi levada a dar algumas indicações mais gerais sobre o significado da regra de São Vicente. São essas indicações de ordem geral que reproduziremos, deixando de lado, na medida em que o bom entendimento do texto o permita, as explicações particulares concernentes à infalibilidade pontifícia, já que esta não é mais contestada hoje em dia. O texto encontra-se reproduzido em Mansi, vol. 52, col. 26-28. do cardeal Franzelin. O Cardeal Franzelin, sacerdote da Companhia de Jesus, elevado ao cardinalato por Pio IX em 1876, foi um dos grandes teólogos romanos da segunda metade do século XIX. A sua influência foi profunda no Concílio Vaticano I. Foi ele, em particular, o encarregado de redigir a Constituição “sobre a doutrina católica”. Ele foi o autor de diversos tratados teológicos estimados, um dos quais é muitas vezes considerado obra-prima, e, em todo o caso, marcou época entre os teólogos: é o De Divina Traditione et Scriptura, sobre a Tradição e o Magistério, publicado em 1870. Ao longo desse estudo, o cardeal é levado a examinar o verdadeiro sentido do cânon de São Vicente. É a tese XXIV de sua obra, desenvolvida nas páginas 294-299 da segunda edição, à qual nos referiremos. Se há uma tese clássica sobre essa questão, é esta, cujas passagens principais citaremos. 2. A POSIÇÃO DA DEPUTAÇÃO DA FÉ NO VATICANO I. do texto. “Passemos ao cânon de Vicente de Lérins. No capítulo III [II, nas edições atuais] de seu Comonitório, o ilustríssimo escritor eclesiástico diz que é preciso manter o que foi crido por toda a parte, sempre e por todos; 1. Interpretar-se-ia o cânon contra o espírito do autor caso se o referisse à chamada norma diretiva infalível na Igreja Católica. Com efeito, para o Lirinense, o cânon diz respeito à norma objetiva (ou seja, a divina tradição), como o mostra o contexto; e, assim, o cânon proposto contém um critério para reconhecer a “tradição da Igreja Católica” pela qual, “em união com a autoridade da lei divina, a fé divina é defendida”. É bem outra a questão de saber se o mencionado cânon contém uma condição necessária para que uma doutrina possa ser infalivelmente definida pelo Magistério da Igreja Católica. Isso, Vicente não ensinou; ele chegou mesmo a exprimir o contrário, como veremos. Por onde: 2. Resulta daí que seria distorcer o cânon lirinense de seu verdadeiro sentido exigir, em nome dele, o consentimento universal ou a unanimidade de todos os bispos para uma doutrina poder ser definida como dogma da fé pelo Magistério da Igreja, no qual é encontrada a norma diretiva da fé. Assim também: 3. Está claro que seria perverter o cânon lirinense buscar nele ambas a norma objetiva e a norma diretiva, como se a única norma infalível da Fé católica se encontrasse no acordo constante e universal da Igreja; desse jeito, em matéria de fé, unicamente aquilo que tivesse sido crido por um acordo constante seria absolutamente certo e infalível, e ninguém poderia crer o que fosse, com aquela fé divina que é absolutamente e infalivelmente certa, sem que enxergasse com os próprios olhos esse acordo constante e universal da Igreja. [...] 4. Mas se, como é mister, o cânon lirinense é referido à norma objetiva, ainda assim não se o compreenderá corretamente caso se o entenda ao mesmo tempo em sentido positivo e em sentido negativo. Ele é certamente verdadeiro, se for compreendido em sentido positivo, a saber: aquilo que foi crido sempre, por toda a parte e por todos é divinamente revelado, e portanto deve ser mantido; mas ele seria falso se fosse entendido em sentido negativo. O mesmo se dá no que se refere às três notas de antiguidade, de universalidade, de acordo, tomadas conjuntamente e simultaneamente: [caso se compreenda que] nada pode ser divinamente revelado e, portanto, deva ser crido, sem que essas três notas de antiguidade, de universalidade e de acordo militem conjuntamente e simultaneamente em seu favor, [cai-se em erro]. Que seja possível de acontecer, com efeito, e que tenha de fato ocorrido, que uma doutrina tenha sido sempre crida, desde a origem, e portanto seja divinamente revelada, sem ter sido crida por toda a parte, nem por todos, Vicente mesmo o ensina. [...]” (Mansi, vol. 52, col. 26-27). comentários. Limitamo-nos a sublinhar as indicações de ordem geral dadas pela Deputação, deixando de lado aquilo que se refere à infalibilidade do Papa sozinho. • É preciso distinguir a norma diretiva e a norma objetiva da fé. É essa distinção fundamental que serve de base para todas as explicações da Deputação. Ela é, no mais, bem conhecida dos teólogos, sob esse nome ou sob outro (por exemplo, fala-se por vezes de “regra próxima” e de “regra remota”). A norma diretiva (ou regra próxima, ou ativa) é o Magistério vivo; a norma objetiva (ou regra remota) é a doutrina mesma, mais precisamente a Revelação divina considera em seu conteúdo (ou a Tradição divina, em sentido objetivo, englobando ao mesmo tempo a Tradição escrita e a Tradição oral). A Deputação recorda ademais, de passagem, essas duas definições, bem conhecidas evidentemente pelos bispos aos quais ela se dirige (Cf. os §§ 1 e 2: “A norma objetiva, a saber: a divina tradição”; “o Magistério da Igreja, no qual é encontrada a norma diretiva da fé”). Essa distinção é, portanto, clara. Porém, tendo em vista o seu caráter fundamental, e para precisar-lhe o alcance e a importância, cremos útil trazer também, a esse respeito, o testemunho de dois teólogos “clássicos” que utilizam e definem esse vocabulário. a. La Règle de la Foi [A Regra da Fé], pelo Pe. Goupil, p. 17: “A regra objetiva ou constitutiva de nossa fé é a palavra de Deus; eu devo crer o que Deus disse. Mas como saberei o que Ele disse? Como saber, por exemplo, se Ele revelou a transubstanciação, o caráter sacramental do matrimônio, etc.? Haverá regra que governe e dirija imediatamente a fé? Eis a questão. A essa questão, o católico responde: o primeiro e principal meio de conhecer a verdade revelada é escutar o Magistério vivo, instituído por Cristo. A esse Magistério público, os particulares, os fiéis, devem obediência necessária como à regra diretiva da fé. – Não, retruca o protestante: a verdade revelada é conservada unicamente na Escritura, e a regra diretiva da fé é o juízo privado do fiel que lê a Escritura à luz do Espírito Santo”. b. De Magisterio vivo et Traditione [Sobre o Magistério vivo e a Tradição], por Bainvel, p. 14: “A regra da fé pode ser dita: ou objetiva e constitutiva; ela significa, então, a quais verdades é necessário aderir como reveladas. – Sobre esse ponto, a disputa entre os protestantes e nós incide sobre o fato de saber se há verdades reveladas que não estão contidas na Escritura santa; ou diretiva; ela significa, então, por quais instrumentos ou órgãos a palavra de Deus nos é proposta e nos alcança. Eis, sobre esse ponto, a controvérsia entre os protestantes e nós: Deus instituiu um Magistério vivo, ao qual confiou Ele o encargo e o poder de guardar a Sua palavra, tanto escrita quanto transmitida oralmente, de explicá-la e de propô-la, de defendê-la e de defini-la, e isso com uma tríplice prerrogativa: de autoridade [...] de infalibilidade [...] de apresentar as notas de credibilidade [...]” • Estando assim precisada, sob todos os aspectos, a distinção entre norma objetiva e norma diretiva (bem como sua capital importância: ela domina toda a querela entre protestantes e católicos sobre a questão da regra da fé), o ensinamento da Deputação da fé fica claríssimo: O cânon de São Vicente de Lérins NÃO DIZ RESPEITO AO MAGISTÉRIO, não diz respeito à norma diretiva, mas somente à norma objetiva da fé. As explicações dadas pela Deputação contradizem absolutamente a tese inteiramente nova, agora o enxergamos bem, dos que pretendem fazer o cânon lirinense coincidir com o Magistério ordinário universal [3]. O cânon lirinense, conforme a teologia “clássica” (só falta negarem que a Deputação da Fé do Concílio Vaticano I seja boa testemunha da teologia?), não se refere nem ao Magistério ordinário nem ao extraordinário, nem ao universal nem ao pontifical, pois, em absoluto, não diz respeito ao Magistério. • Concluímos esta exposição com uma observação do cardeal Journet, que indica bem a correlação entre o Magistério e a manutenção, no tempo e no espaço, da regra objetiva da fé. Essa observação, o célebre teólogo a faz precisamente a propósito do cânon de São Vicente, no estudo que já citamos (p. 718): “Para São Vicente como para nós, pertence à hierarquia, ao corpo apostólico, ensinar o mundo. Se acontece então que a coerência doutrinal é preservada no tempo e no espaço, isso será em virtude da assistência prometida por Cristo à verdadeira hierarquia, ao verdadeiro corpo apostólico. O quod semper e o quod ubique são ao mesmo tempo efeitos e sinais da apostolicidade divina autêntica.” 3. O VERDADEIRO SENTIDO DO CÂNON LIRINENSE, SEGUNDO O CARDEAL FRANZELIN. a) Excertos do texto. Enunciado da tese: “O cânon de São Vicente de Lérins designa como atributos da doutrina católica a universalidade, a antiguidade e o acordo comum sobre a fé; • Se 1.° consideramo-lo em si mesmo: Ele é absolutamente verdadeiro em sentido afirmativo, segundo o qual uma doutrina provida dessas propriedades é certamente dogma da fé católica; mas ele não é verdadeiro em sentido exclusivo, como se nada pudesse pertencer ao depósito da fé sem ter sido crido por toda a parte, por todos e sempre. • Se 2.° procuramos o sentido da regra no contexto do próprio Comonitório: Ele revela duas notas, cada qual suficiente para discernir a antiguidade absoluta ou apostolicidade de uma doutrina: o acordo atual da Igreja, de um lado; o acordo da antiguidade relativa, existente antes do início da controvérsia, de outro lado.” Desenvolvimento da tese: “I. O Cânon em pauta é enunciado por São Vicente nestes termos: ‘Na Igreja Católica mesma, é preciso velar com grande cuidado para que sustentemos aquilo que foi crido por toda a parte, sempre e por todos. Isso é, com efeito, verdadeiramente e propriamente católico… Mas tal se dará, precisamente, se seguirmos a universalidade, a antiguidade, o acordo.’ [...] Pode-se crer uma verdade de dois modos, explicitamente ou somente implicitamente. Todo o conteúdo do depósito da revelação objetiva, certamente, foi crido por toda a parte, sempre e por todos os católicos ao menos implicitamente [...] Mas, nesse sentido, [o fato de] ter sido crido sempre e por toda a parte não pode ser dado como critério e regra teológica que permita discernir o conteúdo da revelação; as verdades de fé cridas somente implicitamente não são, com efeito, conhecidas por si mesmas como reveladas. Mais ainda: procurar saber se uma doutrina foi crida por toda a parte, sempre, por todos, ao menos implicitamente e investigar se ela está contida na revelação objetiva e na Tradição são uma só e mesma coisa; ora, é esse fato que deve ser demonstrado a partir de outra coisa; ele não é, pois, critério que permita determinar outra coisa. [...] O critério proposto só pode, então, ser entendido acerca da fé explícita. Ora, decorre das teses precedentemente expostas que o acordo universal sobre um dogma como doutrina de fé, em qualquer época que ele exista (quovis tempore is existat), é critério certo de que uma doutrina é divinamente transmitida. Portanto, sem dúvida alguma, um tal acordo da antiguidade, e da maneira mais retumbante o acordo universal de todas as épocas, manifestam com certeza a Tradição divina. Por conseguinte, aquilo que foi crido por toda a parte, sempre, por todos, não tem como não ser revelado e divinamente transmitido. Mas nossas teses precedentes demonstram igualmente isto: certos pontos de doutrina podem estar contidos no depósito da revelação objetiva sem terem estado sempre na pregação da Igreja de modo manifesto e explícito; e assim, enquanto não estiverem propostos suficientemente, podem ser objeto de controvérsia no próprio interior da Igreja, sem prejuízo para a fé e a comunhão. Assim, tal ponto de doutrina contido na revelação objetiva pode, a partir de uma certa época (ao ter sido suficientemente explicado e proposto), pertencer às verdades que cumpre necessariamente crer com fé católica: e, no entanto, esse ponto de doutrina, embora contido desde sempre no depósito da revelação, não foi crido explicitamente sempre, por toda a parte e por todos, e não tinha de sê-lo. Assim, se bem que as notas enumeradas no cânon demonstrem com evidência, pela presença delas, que a doutrina à qual elas se aplicam é dogma de fé católica, elas porém não provam, pela ausência delas, que uma doutrina não esteja contida no depósito da fé… O cânon é, pois, verdadeiro em sentido afirmativo, mas não pode ser aceito em sentido negativo e exclusivo. II. Se se considera o cânon em seu contexto, com as explicações dadas por São Vicente, descobre-se o sentido seguinte: a) a antiguidade absoluta ou apostolicidade de uma doutrina não é proposta como nota, pela qual se chega a conhecer outra coisa; ela é aquilo mesmo que está sendo investigado. b) Duas propriedades são propostas como notas que dão a conhecer a apostolicidade da doutrina: a universalidade, que é o acordo presente da Igreja, e o acordo da antiguidade (relativa, claro), ou seja o acordo que se demonstra ter existido antes do início da controvérsia. Qualquer uma dessas duas notas, não importa qual, permite inferir e conhecer a antiguidade absoluta. Com efeito, quando o acordo presente da universalidade é claro e manifesto, ele é suficiente por si mesmo; dá-se isso seja por um juízo solene do magistério autêntico (Concílio ecumênico ou Papa), seja pela pregação eclesiástica unânime. Em contrapartida, se a controvérsia já tivesse eclodido, se esse acordo fosse menos perceptível, ou se não fosse reconhecido pelos adversários a serem refutados, aí então, diz São Vicente, há que recorrer ao acordo da antiguidade manifestado seja em juízos solenes, seja nas sentenças convergentes dos Padres. [...] O próprio São Vicente declara o que é que ele entende pelo substantivo universalidade: “nós seguimos a universalidade se reconhecemos como única fé verdadeira aquela que a Igreja inteira espalhada pela terra confessa”. A universalidade é, pois, o acordo de toda a Igreja e, precisamente, enquanto ela se distingue da nota de antiguidade, [a universalidade é] o acordo da Igreja desta época presente na qual se levanta a questão. Isso é manifesto no n. 4, em que ele compara a universalidade como acordo presente, que pode ser perturbado por novos erros, com a antiguidade como acordo da época precedente, “que não pode mais ser fraudulentamente ludibriada por uma novidade”. [...] Que a antiguidade, como nota, seja entendida por São Vicente como relativa, de sorte que a partir dela se infere a antiguidade absoluta ou apostolicidade; isso resulta de toda a maneira dele de conduzir a discussão. [...] Por fim, São Vicente demonstra claramente em todas as partes que uma ou outra dessas duas notas, seja o acordo da universalidade presente, seja o acordo da antiguidade, basta para demonstrar a apostolicidade da doutrina [5]. “Que fará então o cristão católico – interroga-se ele no n. 4 – se uma parte da Igreja se afasta da comunhão da fé universal?” “O que mais, senão antepor a saúde do corpo inteiro ao membro pestilento e corrompido?” Mas, se há dúvida sobre o acordo presente, por causa das perturbações suscitadas, a segunda nota permanece: “então ele cuidará – diz São Vicente – em aderir à antiguidade”. Não se pode, pois, duvidar que o sentido que desenvolvemos na tese seja o sentido autêntico de São Vicente. Uma doutrina à qual faltam ambas as notas deve ser considerada como, no mínimo, ainda não suficientemente proposta à fé católica; uma doutrina que se opõe a um ou outro dos acordos deve ser considerada como novidade profana.” b) Alguns As explicações do Cardeal Franzelin são de tal maneira luminosas que não resta objetivamente nada a acrescentar. Façamos simplesmente notar que as explicações dadas em nossos Cahiers de Cassiciacum [Cadernos de Cassicíaco] sobre a infalibilidade do Magistério ordinário universal, e que alguns não temem qualificar de “doutrina inteiramente nova do Pe. Guérard des Lauriers”, correspondem exatamente ao ensinamento clássico do ilustre cardeal. Podemos somente repetir o que dissemos logo de início: esse ensinamento é o da doutrina católica, e impõe-se com toda a certeza a todos os católicos, ainda que “tradicionalistas”! Abbé Bernard LUCIEN _____________ INDICAÇÕES (Cf. nota 2, abaixo): — DEPUTAÇÃO DA FÉ (no Vaticano I). O texto que citamos faz parte do “Relatório sobre as observações dos Padres conciliares acerca do esquema sobre o primado do Romano Pontífice”. Esse texto encontra-se em Mansi, tomo 52, col. 8-28. A referência Mansi designa a Amplissima collectio conciliorum, composta de 53 tomos em 59 volumes. Começada por J. D. Mansi, prelado italiano, essa coleção foi conduzida a termo por Mons. Petit e pelo Abbé Martin. Em seu estado atual, ela foi publicada por H. Welter, livreiro-editor de Arnhem (Países Baixos). — FRANZELIN, S.J., De Divina Traditione et Scriptura, 2.ª edição, Roma, 1875. Obra em latim sobre “a Tradição e a Escritura divinas”. — BAINVEL, S.J., De Magisterio vivo et Traditione, Beauchesne, 1905. Obra em latim “sobre o Magistério vivo e a Tradição”. Quando do falecimento desse padre da Companhia de Jesus, o Bulletin Tho­miste (t. V, fasc. 1, 1937, p. 83) frisou sua “teologia proba e serena” e sua “grande santidade de vida”. — d’ALÈS, S.J., Dictionnaire apologétique de la Foi catholique [Dicionário Apologético da Fé Católica], fascículo XXIV, 4.ª edição, Beauchesne, 1928. Artigo “Tradition chrétienne dans l’histoire” [Tradição cristã na história] (col. 1740-1783). Esse dicionário foi realizado sob a direção do Pe. D’Alès; o artigo a que nos referimos saiu, ele próprio, da pluma desse religioso jesuíta. — CAYRÉ, A.A., Patrologie et histoire de la théologie [Patrologia e história da teologia], t. II, 2.ª ed., Desclée et Cie, 1933. — GOUPIL, S.J., La Règle de la foi [A Regra da Fé], vol. I: “Le Magistère vivant, la Tradition, le développement du dogme” [O Magistério vivo, a Tradição, o desenvolvimento do dogma]; 3.ª ed., 1953. [Ndt: formatado pelo Rev. Pe. Belmont e disponibilizado para baixar em: quicumque/article-4065293.html] — JOURNET, L’Église du Verbe Incarné [A Igreja do Verbo Encarnado], vol. I : “La Hiérarchie aposto­lique” [A Hierarquia Apostólica]; 2.ª ed., Desclée de Brouwer, 1955. Excursus XII: “L’apostolicité, raison de la conversion de Newman au catholicisme” [A apostolicidade, razão da conversão de Newman ao catolicismo], pp. 718-724. — MESLIN, Saint Vincent de Lérins: Le Commonitorium, traduit et présenté par Michel Meslin. [São Vicente de Lérins: O Comonitório, traduzido e apresentado por Michel Meslin.] Les éditions du Soleil Levant, Namur, 1959. _____________ [1] As referências bibliográficas estão detalhadas ao final do artigo; no texto, remetemos a elas simplesmente pelo nome do autor e indicação da página. [2] Ficamos verdadeiramente chocados, cumpre dizê-lo, ao vermos o autor que lidera a “inflação” do cânon de Lérins declarar sem medo, acerca de um texto promulgado solenemente no Vaticano I (texto que retoma um ensinamento de Pio IX): “Não se há, tampouco, de exagerar a importância desses dois textos conciliares e pontificais”. E ele chega ao ponto de afirmar que unicamente os cânones, num Concílio, são revestidos de infalibilidade. E esse autor, sobre essa matéria, é apresentado como oráculo por diversas “lideranças” tradicionalistas. Assim, ao constatar, apesar de suas explicações arrevesadas, que os documentos do Magistério se opõem ao cânon lirinense tal como ele o entende, o autor de que falamos resolve rebaixar o valor do ensinamento do Magistério em comparação com o do escritor eclesiástico. É a inversão radical da atitude católica, recordada por Santo Tomás: “O ensinamento mesmo dos doutores católicos recebe a sua autoridade da Igreja. Decorre daí que é necessário fiar-se na autoridade da Igreja antes que na autoridade de Agostinho, de Jerônimo ou de qualquer outro Doutor” (Suma Teológica, IIa-IIae, q. 10, a. 12). Sobre a infalibilidade dos Concílios, recordemos igualmente o ensinamento “clássico”: “Quanto aos capítulos doutrinais, também eles contêm um ensinamento que, imposto a todos pela autoridade suprema como expressão da tradição constante e como dogma obrigatório da fé, é consequentemente infalível” (Dictionnaire de Théologie Catholique, art. “Conciles”, col. 666). [3] A vanguarda desse movimento desviante é animada por Michel Martin, no periódico De Rome et d’Ailleurs [De Roma e Alhures]. No n.º 15 (nov.-dez. 1980), Michel Martin publicou ainda longo estudo sobre a infalibilidade. A inteira seção intitulada “o erro dos sedevacantistas sobre a infalibilidade” (pp. 13-21) é baseada numa tal identificação: ela é, portanto, integralmente destituída de valor. Não queremos insistir demasiadamente no ensinamento de um autor que, manifestamente, não estudou a questão, a não ser muito de longe. Sem embargo, a título de ilustração, propomos a nossos leitores comparar o ensinamento do Cardeal Franzelin, cuja competência ninguém contestará, ao de Michel Martin (op. cit., p. 16): “Vimos pelas citações feitas mais acima que, para os sedevacantistas, a unanimidade dos bispos num dado momento bastaria para garantir a verdade de um ensinamento de fé e moral. Eis aí uma mutilação do critério lirinense, posto que, na fórmula resumida ‘sempre e por toda a parte’, os sedevacantistas suprimem a palavra ‘sempre’.” [4] “Aquilo que parece repartido em três membros por São Vicente nos nn. 3, 4, 38, a saber: a universalidade, a antiguidade, o acordo, somente comporta, na realidade, dois membros realmente distintos, como o demonstra a explicação do próprio autor. E, no n. 41, [...] ele mesmo opera a redução a dois membros: ‘Nós dissemos – escreve ele – que se há de observar o acordo da universalidade e da antiguidade’.” [5] Vê-se claramente que, para o Cardeal Franzelin, não há nenhuma “mutilação” do critério lirinense em considerar “o acordo da universalidade presente” como critério suficiente da apostolicidade de uma doutrina. Cf. nota 4, p. 91.
Posted on: Sun, 17 Nov 2013 00:17:21 +0000

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