O paradigma de investigação criminal pelo MP Por Luciano - TopicsExpress



          

O paradigma de investigação criminal pelo MP Por Luciano Feldens Luciano Feldens - 26/06/2012 [Spacca]O Supremo Tribunal Federal está retomando, desta feita no Plenário da Corte, a discussão acerca dos poderes investigatórios do Ministério Público (Recurso Extraordinário 593.727). O problema vai além da aceitação do exercício da função investigatória pelo Ministério Público. A questão é adjetiva. Assenta-se em saber quando e como o Ministério Público estaria autorizado a investigar. Paralelamente, se apresenta a outra face do problema, essencial à configuração do paradigma de investigação criminal pelo Ministério Público. Eis o ponto: nas hipóteses em que se reconheça que o Ministério Público pode investigar, ele deverá fazê-lo? Poderia, o Ministério Público, eleger os casos em que deseja atuar como investigador? Quais os critérios — por certo, haveriam de ser critérios objetivos — que orientariam essa escolha? Nessa linha de raciocínio, e partindo da premissa de que o Supremo Tribunal Federal venha a admitir o exercício dessa função pelo Ministério Público, parece-me que cinco pontos — coimplicados — deveriam ser enfrentados: (1) a afirmação da subsidiariedade da atividade investigatória do Ministério Público, ditada por circunstâncias específicas que reclamam sua intervenção, afastando-se a hipótese de concorrência funcional entre Ministério Público e Polícia, de modo a evitar dois males extremos: a omissão e a duplicidade de investigações; (2) a necessária fundamentação, pelo Ministério Público, acerca do elemento despertador da investigação ministerial, em substituição a outro órgão dotado de funções investigatórias; (3) o permanente controle da investigação por órgão externo à instituição, garantindo-se ao investigado, a partir do que lhe asseguram os direitos fundamentais, a pronta impugnação de medidas estatais que repute dissociadas do marco regulatório incidente; sobressai-se aqui, dentre outros, o direito à tutela judicial efetiva; (4) a compulsória observância a regras de procedimento, seja em nível processual, seja em nível administrativo, de modo a garantir ao investigado o conhecimento sobre as “regras do jogo”, permitindo-lhe que acompanhe, formal e materialmente, a investigação exercida pelo Ministério Público; (5) a correlata responsabilidade do agente do Ministério Público, por ação ou omissão, tal como sucede em relação aos demais órgãos incumbidos da investigação criminal. Detalhemos algo mais. 1. O caráter subsidiário da investigação pelo Ministério Público Há poucos dias, Lenio Streck fez referência, neste espaço, a um texto que escrevemos em conjunto, e que reputo atual (Crime e Constituição: A Legitimidade da Função Investigatória do Ministério Público, Rio de Janeiro: Forense, 2003). Sustentando a ilegitimidade de uma interpretação que fechasse as portas ao desempenho da função investigatória pelo Ministério Público, lá apontamos: “a investigação criminal exercida pelo Ministério Público não se consubstancia como uma regra geral. Melhor seria dizê-la confortada no plano da necessidade circunstancial”. Essa necessidade circunstancial indica que apenas razões extraordinárias fazem despertar o exercício, pelo Ministério Público, de uma atividade que, em primeira mão — ou seja, como regra geral — está inequivocamente reservada à Polícia. A mais clara das situações justificadoras da intervenção do Ministério Público talvez esteja, precisamente, na eventual omissão dos órgãos tradicionalmente incumbidos da investigação, legitimando-se o Ministério Público, então, a supri-la, em ordem a não despojar-se do exercício da ação penal pública, dependente de uma investigação séria e exaustiva. É nesse contexto que o exercício da função investigatória pelo Ministério Público assume-se como uma questão republicana, haja vista o dever de investigar que pesa sobre o Estado, por força dos próprios direitos fundamentais (e sempre com respeito a eles). Veja-se, a propósito, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Ximenes Lopes versus Brasil (Sentença de 04/07/2006). Em suas razões, a CIDH asseverou que: “os Estados têm o dever de investigar as afetações aos direitos à vida e à integridade pessoal como condição para garantir esses direitos”. Saliente-se que no caso sob apreço a CIDH imputou a letargia, também, ao Ministério Público, órgão que “tardou mais de três anos para aditar a denúncia” para a inclusão de coautores. A CIDH ainda fez constar que “o Ministério Público é um órgão do Estado, motivo por que suas ações e omissões podem comprometer a responsabilidade internacional desse mesmo Estado” (Luciano Feldens, Direitos Fundamentais e Direito Penal — A Constituição Penal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012). Nesse tom, se efetivamente há — e parece que há — um espaço para a intervenção direta do Ministério Público no âmbito da investigação, este não será um espaço de facultativa ocupação. O que é dizer: se o Ministério Público, em tal ou qual situação, pode investigar, desde logo estará compelido a fazê-lo, sujeitando-se, em qualquer caso, às responsabilidades oriundas do desempenho dessa atividade. 2. A necessária fundamentação sobre o porquê da iniciativa investigatória pelo Ministério Público Decerto, não parece que as graves funções institucionais atribuídas ao Ministério Público (artigos 127 e 129 da CF) estejam situadas no plano da discricionariedade de cada um de seus agentes. Uma atividade estatal dessa ordem (investigatória), porque invasiva de direitos fundamentais, deve escapar a qualquer sorte de voluntarismos. A escolha do caso, ou a eleição da hipótese a investigar, é algo que não se pode realizar arbitrariamente. É certo que a subjetividade acompanha, em boa medida, qualquer atividade decisória, inclusive a decisão judicial. Embora possa camuflá-la, a fundamentação tende a reduzir a escolha orientada por critérios eminentemente subjetivos (v.g., a figura do investigado ou a exposição midiática do caso). Reduzi-la ao máximo é postulado irrenunciável de uma ação estatal comprometida com os direitos fundamentais. Sob tais premissas, a instauração do procedimento investigatório deve resultar de adequado processo de fundamentação, a propiciar, inclusive, o controle de subsidiariedade da investigação pelo Ministério Público. Essa obrigação de fundamentar também se aplica às medidas adotadas no âmbito do procedimento investigatório, sobretudo quando interventivas das esferas de liberdade do investigado. Ao apreciar, na perspectiva de uma investigação parlamentar, os limites impostos à atividade investigatória do Estado, o Supremo Tribunal Federal assentou a imperiosa necessidade de fundamentação das medidas estatais que impliquem restrição de direitos fundamentais. Na letra do ministro Celso de Mello: “As deliberações de qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, à semelhança do que também ocorre com as decisões judiciais, quando destituídas de motivação, mostram-se írritas e despojadas de eficácia jurídica, pois nenhuma medida restritiva de direitos pode ser adotada pelo Poder Público, sem que o ato que a decreta seja adequadamente fundamentado pela autoridade estatal” (MS 24.817, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03/02/2005). 3. A efetivação de um eficiente sistema de controle (externo, demais de interno) Rigorosamente, não há espaço para a imunidade do poder. O sistema de controle deve impor-se, pois, sem fraturas. Avulta, no ponto, o controle jurisdicional sobre os atos de investigação levados a efeito pelo Ministério Público. No particular, o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente estabelecido que o Ministério Público, enquanto investigador, “está permanentemente sujeito ao controle jurisdicional” (HC 87.610, Rel. Ministro Celso de Mello), sendo que “a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis” (QO no Inquérito 2.411, Rel. Ministro Gilmar Mendes). Esse controle se haverá de estabelecer, essencialmente, (a) sobre a legitimidade, em concreto, da instauração do procedimento investigatório pelo Ministério Público (controle de subsidiariedade); (b) sobre a legalidade das medidas investigatórias encetadas (controle de legalidade); bem como (c) sobre o prazo da investigação (controle temporal), sabido que o investigado não está sujeito a ver eternizada essa sua condição; ao contrário: seu status lhe garante, entre outros, o direito a um processo sem dilações indevidas (art. 1º, III, e art. 5º, X, XII e LXXVIII, da CF/88 – art. 8.1, do Pacto de San José da Costa Rica – art. 14.3, “c”, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos), não se admitindo, pois, a manutenção do procedimento quando não já não remanesça uma clara perspectiva investigatória. Como pontuou, a respeito, o Supremo Tribunal Federal, “negar proteção judicial nas hipóteses em que é devida e, no presente caso, inexorável (pois não há outra alternativa possível a não ser o arquivamento), implica ferir a um só tempo o princípio da proteção judicial efetiva (art. 5º, XXXV) e o princípio da dignidade humana (STF, HC 87610, Rel. Min. Gilmar Mendes). 4. A construção de um standard procedimental Conforme já pontuou o Supremo Tribunal Federal (HC 89.837, Rel. Min. Celso de Mello), ao Ministério Público, no âmbito de seus procedimentos investigatórios, está vedado: (a) desrespeitar o direito ao silêncio do investigado; (b) ordenar sua condução coercitiva; (c) constrangê-lo a produzir prova contra si; (d) recusar-lhe o conhecimento das razões motivadoras do procedimento; (e) submetê-lo a medidas sujeitas à reserva de jurisdição; (f) impedi-lo de fazer-se acompanhar de advogado; (g) impor restrições ao regular desempenho das prerrogativas dos advogados. Ademais, ainda conforme o Supremo Tribunal Federal, o procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público “deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no curso da investigação, não podendo, o ‘Parquet’, sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à pessoa sob investigação quanto ao seu Advogado”. Nesse mesmo tom, revela-se vedado ao Ministério Público colher elementos de informação sem vinculação a um procedimento específico. Tal como o Ministério Público cobra da Polícia Judiciária, no exercício do controle externo da atividade policial, não haverá de existir “peças soltas” no âmbito das promotorias ou procuradorias. E todas as peças de informação devem ser encartadas aos autos, sejam interessantes, ou não, à sustentação da versão acusatória. Adicionalmente ao cumprimento dessas diretrizes estruturantes, compulsoriamente informadoras da atividade de investigação criminal pelo Ministério Público, a instituição deve aparelhar-se em nível atividade-meio, a exemplo, outra vez, do que sucede nas repartições policiais. Acerca do sigilo do procedimento, também anotou o Supremo Tribunal Federal: “o regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente, prevalecente no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado e ao Advogado por este constituído, que terão direito de acesso - considerado o princípio da comunhão das provas - a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados aos autos do respectivo procedimento investigatório”. (HC 89.837, Rel. Min. Celso de Mello). 5. A sujeição do Ministério Público ao regime de responsabilidade O exercício dessa função republicana exige uma postura igualmente republicana do Ministério Público, que assim passa a assumir, correlatamente, as responsabilidades inerentes à atividade que reivindica. Analisando o status jurídico do cidadão submetido à ação investigatória estatal, o Supremo Tribunal Federal apontou, com nitidez, a sujeição do investigador ao regime de responsabilidade, inclusive penal, vigente no país: “o indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial” (HC 73.271, Rel. Min. Celso de Mello). O respeito à vida privada, à intimidade e à imagem do investigado inclui-se nesse espectro de compulsória observância. O Supremo Tribunal Federal acentuou-se, ainda, que “a autoridade da Constituição e a força das leis não se detêm no limiar dos gabinetes dos Promotores de Justiça e dos Procuradores da República, como se tais agentes do Estado, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado, paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República” (HC 89.837, Rel. Min. Celso de Mello). Resumidamente, ao investigar, o Ministério Público assume, à feição da Polícia, o contato com o fato, sujeitando-se, pois, ao regime de controle e responsabilidade que pesa sobre a autoridade policial, o que se impõe como corolário lógico de um regime republicano, em que o poder se submete à razão, e não a razão ao poder (Atienza). Como expôs, a modo de síntese, o ministro Gilmar Mendes, “convém advertir que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, os direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle” (HC 84.965, Rel. Min. Gilmar Mendes). Sob tais condicionantes, adiro aos que esperam ver afirmada, pelo Supremo Tribunal Federal, a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Parece-me que a atribuição dessa função ao Ministério Público possa consubstanciar-se como um passo à almejada pretensão de eficiência do sistema jurídico-penal. Sublinhe-se forte: um sistema que não pode barganhar — ou, pelo menos, não pode barganhar legitimamente — um superávit de eficiência à custa da “relativização” de garantias fundamentais individuais, historicamente conquistadas, com significativo derramamento de sangue. Tenhamos, pois, cuidado: todo e qualquer avanço teórico em torno das potencialidades e, sobretudo, da eficácia dos direitos fundamentais não pode se realizar ao preço de retrocessos. Sempre vale lembrar que a ideia de contrato social — como metáfora da democracia, para secundar Ferrajoli — não é um acordo vazio, senão que tem como causa precisamente a tutela dos direitos fundamentais, cuja violação por parte do soberano provoca a ruptura do pacto, legitimando, com isso, o exercício do direito de resistência.
Posted on: Fri, 09 Aug 2013 22:41:09 +0000

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