A BOMBA D’ÁGUA DA CASA DO PAPAI Há mais de 30 anos, o papai - TopicsExpress



          

A BOMBA D’ÁGUA DA CASA DO PAPAI Há mais de 30 anos, o papai comprou uma casa na Travessa de Breves após anos peregrinando em casas alugadas. Finalmente, havia um chão que ele pudesse dizer que era seu. Junto com a mamãe, ele construiu, ali, seu castelo. Em minha lembrança de menino, aquela casa era enorme. Eu levava um dia inteiro para percorrer todos seus cantos nas brincadeiras solitárias de minha infância. Assim como para mim, meus irmãos também passaram a ter lá um ponto de encontro onde nos encontrávamos quase todo mês para memoráveis festas no quintal. Depois, todos casamos e fomos embora do nosso castelo e o casal Bena e Cici ficou no ninho vazio. A casa, agora, era enorme para eles também. Se bem que não me lembro de um dia em que não houvesse pelo menos um irmão visitando os velhos... Aquela casa da Breves tem muitas coisas que simbolizam nossa família: a escada de mármore, o quintal e seu depósito de ferramentas, o “escritório” do papai debaixo da escada, a roseira e o pé de jasmim da mamãe, a chave do papai, o santuário da mamãe... Mas, sem dúvida, nada é mais marcante que a bomba d’água. Uma poderosa bomba da marca King, verde, daquelas com uma roda enorme ligada a uma correia de couro que faz um barulho medonho nos trinta minutos que levava para encher a caixa d’água. Essa bomba d’água era a menina dos olhos do papai. Não havia um dia em que ele não a lubrificasse e limpasse cuidadosamente suas engrenagens. Talvez, a bomba King representasse a última testemunha de um tempo em que o papai era o “mestre” das máquinas. Ele sempre se gabava que foi batizado de “Mestre Bena” ainda aos 17 anos, em 1940, quando tirou sua carta de marítimo e cruzava os rios da Amazônia consertando motores de barcos avariados por onde passava. Quando parou de viajar, papai morreu pela primeira vez. Mas logo viveu novamente quando abriu uma oficina mecânica para motores de barcos ali na Pariquis Beira-Mar e, depois, mais adiante onde hoje há um galpão. Ao se aposentar, papai morreu pela segunda vez. Era visível a falta que o trabalho pesado e duro fazia para seu coração. Mesmo depois da aposentadoria, não houve um dia em que não acordasse às 5:00h (“era o horário de meu turno”, dizia). Sempre a procura de consertar algo, suas ferramentas passaram a ser seus brinquedos da terceira idade. E a bomba King, assumiu o posto do último motor que ele cuidaria nesta vida. E assim foi. Nos últimos anos, testemunhamos a memória e o físico do papai serem dizimados pelo terrível mal de Alzheimer. As lembranças mais antigas ficaram indeléveis, mas as coisas recentes se esvaiam feito areia entre os dedos. Começaram a fugir à lembrança os nomes, os lugares e, por fim, a si mesmo. No entanto, o cuidado da bomba King era uma tarefa diária que ele dedicava-se mesmo com seu corpo cada vez mais fraco. Quantas vezes nós irmãos nos reunimos para decidir sobre a troca da tal bomba: “está velha e não bombeia mais nada”, dizia um irmão; “é um perigo aquela roda! Vai acabar havendo um acidente grave” bradava outro; “já comprei uma outra novinha” afirmava um terceiro. Mas, quem dos sete filhos teria a coragem de tirar do papai aquilo que simbolizava tanto para ele? Sempre tivemos a consciência que, para o nosso pai, envelhecer com qualidade era estar no comando e ser responsável pela casa. E assim fazíamos. Não houve um momento em que ele não estivesse no comando. Lentamente, ele foi deixando de fazer as coisas cotidianas como fazer o café, varrer o quintal, pagar o jornaleiro. Então, um dia, papai não ligou a bomba. Faltou água, não houve almoço, casa limpa nem roupa lavada, um caos! Pela primeira vez, ele esqueceu a bomba. Foi o golpe de misericórdia que faltava. Percebemos, ali, que estava chegando ao fim sua missão. Duas semanas depois, descobrimos que aquele homem de muitas vidas estava doente de maneira terminal e, depois de uns vinte dias no hospital, a bomba King perdeu seu melhor mecânico. Hoje, a casa do papai está enorme. Muito maior do que em minhas memórias infantis. Lá, falta a presença marcante, bela e imponente do Mestre Bena. A bomba King quebrou de vez. Parece que estava esperando o momento certo. Em seu lugar, está uma irritantemente silenciosa bomba que enche a caixa d’água em chatíssimos cinco minutos. A bomba hoje é um monumento a sua memória. Será restaurada e guardada como um marco de uma vida dedicada à sua família. Papai insistia em dizer que “sujou as mãos de graxas para que seus filhos vestissem branco”. Não me lembro um dia em que ele não estivesse de bom humor. Mesmo nos dias em que ele dava um ralho merecido, sempre sobressaía-se seu sorriso bonachão. Ao olhar àquela bomba, voltamos no tempo e quase que podemos ver nosso Mestre Bena ajoelhado trocando as gaxetas, correias e engrenagens. Nosso pai morreu enfim, mas não morreu, finalmente! Vivo ele está em nossas memórias e em nosso coração. Fica, agora, sua cara-metade, a nossa mãezinha que, em seus 91 anos, não se conforma do velho ter ido em sua frente. “Muito apressado! Ele sempre foi muito apressado!” repete, sempre que pode... Tentamos explicar, sem muito sucesso, a nossa mãe as razões que Deus deve ter para ter chamado o papai tão repentinamente. Eu, em particular, sei muito bem a razão... Não estranhem se a qualidade da chuva melhorar incrivelmente nos próximos dias: gotas uniformes, ritmo constante, volume adequado... Afinal, qual o melhor mecânico de bombas que Deus poderia recrutar para ajudar São Pedro na manutenção nas bombas d’águas do céu?
Posted on: Sun, 25 Aug 2013 08:13:01 +0000

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