A CONDENAÇÃO* *para José Saramago Quando o criador de todas - TopicsExpress



          

A CONDENAÇÃO* *para José Saramago Quando o criador de todas as coisas ainda não havia as criado, tudo era nada. O nada prevalecia na vida de Deus que, pensando bem, nem poderia ainda ser chamado de criador, pois nada havia criado. Não havia, luz, escuridão, sobra, silêncio. Sua única criação, o nada. Mas o nada não exigiu muito de mim, murmurava Deus, ávido para ter com quem conversar. Muito ocupado em criar as coisas, ainda não tinha tido a idéia da trindade. Assim, continuava uno e vagando sobre o nada. Num determinado momento, que não há de se precisar, pois se nada havia não havia o tempo, nem o dia nem o espaço, pelo menos na forma como conhecemos, Deus dedicou-se a projetar o universo e a terra, tendo um trabalho que durou sete dias. Mas sete dias de Deus, não os dias de vinte e quatro horas que hoje nos escravizam; foram dias longos de projetos e realizações, da luz, do céu, das trevas, da terra, das águas superiores e inferiores separadas pelo céu, dos animais e das plantas, Deus cuidou para que toda a criação ficasse em harmonia com o projeto, dando os primórdios ao ofício que seria posteriormente conhecido como arquitetura. Fadigado, pois saiu do nada para o universo, Deus cometeu o seu primeiro erro ao criar o homem; na sua carência de ter com quem dividir ideias, responsabilidades e novos projetos, Deus não deu muito atenção na criação do homem e, por preguiça divina, criou-o sua imagem e semelhança. Grande erro, pois, como Deus, conhecera somente o nada antes da criação. Assim, o primeiro homem era introspectivo, incrédulo, inseguro e muito ranzinza, tal como seu criador. A criação, na sua totalidade, era a encarnação do nada. Especula-se até que Deus conheceu o sentimento da ira ao relacionar-se com o homem, objeto da sua criação. Assim como Deus, onipotente, o homem também era vaidoso e egoísta. Não quero ninguém comigo, dizia o homem, refutando as tentativas de Deus em dá-lo uma companhia aumentando ainda mais a sua ira. O éden era perfeito demais, harmonioso demais, era o nada preenchido pelo tédio e pelo desejo de poder do homem que, inconformado com a eternidade dele e Deus, sabia que nunca poderia tomar conta de tudo aquilo sozinho. O homem vivia formulando uma teoria que seria a base para os conflitos de terra que temos no mundo e a invenção da propriedade privada. Não mais suportando essa condição, Deus usou de um subterfúgio para que o homem abrisse mão de seu egoísmo e personalismo, tão parecidos com os do seu criador. Vou pô-lo a dormir profundamente, perfurarei sua carne e dela criarei seu oposto. Deus não escondia a sua predileção por opostos luz e trevas, dia e noite, bem e mal; toda a criação era dual, como se fosse uma auto-compensação – bipolar - que Deus impingia-se pelo fato de ser uno. Assim, do sono profundo do homem, de um pedaço de sua costela, Deus moldou a mulher. Quando acordou, o homem ficou furioso, experimentando a ira que Deus já experimentara. Como pudestes me trair, como fizeste isso comigo, sempre fui quieto e fiel a ti e tu, de forma ardil, cria a partir da minha carne um outro ser para dividir a criação que fizeste para mim, bradava o homem diante de um Deus calado. Foste ardiloso, continuava o homem, colocou-me a dormir profundamente, sem consciência do que estava acontecendo comigo. Você me alienou! É bom que se ressalte que todo o diálogo entre Deus e o homem se dava telepaticamente, uma vez que nem a língua, órgão, nem a língua, signo, haviam sido inventadas e, pelo projeto de Deus, nem seriam. Arrependido do que fez, Deus relegou a mulher ao segundo plano, fazendo-a somente uma sombra do homem. Agora Deus tinha no seu paraíso não um, mas dois seres despidos de desejos da carne, de projetos em comum vagando sem rumo pelos jardins da criação, desejando, somente, um dia herdar tudo aquilo. Deus tinha um segredo guardado e resolveu revelá-lo ao homem e a mulher; existe uma gruta no centro do jardim e nessa gruta, no único ponto aonde chega o sol, uma árvore cujos frutos vocês não deverão comer, essa fruta possui sabor, algo que as outras frutas do éden não possuem; pois nessa árvore, disse Deus, eu guardei a única coisa que pode destruir um Deus e essa coisa chama-se conhecimento. O conhecimento causa independência e tal independência pode causar sofrimento; vocês perderão todo o amparo, todo o provimento, toda a proteção que vos dou neste local. Vocês perderão a eternidade, vocês sucumbirão aos desejos da carne, vocês viverão insatisfeitos desejando conhecer mais; aliás, seus descendentes nascerão com o desejo do conhecimento. Como não existia curiosidade ou excitação no éden, nem o macho e nem a fêmea se interessaram em chegar perto da gruta que guardava a tal árvore do conhecimento, afinal não conheciam o desejo, ainda. Deus andava muito ocupado e preocupado com sua obra, achava que a criação, já havia pensado nisso antes, era o nada em movimento. Só isso. Contudo, sentia-se muito cansado para iniciar uma nova empreitada, além do que não sabia muito bem o que fazer, pois, da forma como criou o mundo, tudo funcionava em perfeita harmonia; o que será que preciso fazer para corrigir o vazio que se instalou no éden, sempre se perguntava. Não muito longe do local por onde Deus caminhava todos os dias, no centro do éden, a mulher passeava perto da gruta. Tal como o homem, seus sentidos não funcionavam, seus olhos não extraíam a beleza do lugar por não conhecer outros locais nem a desarmonia; sua pele não sentia nada, pois era totalmente despida de sentimentos, sensibilidade e desejo; o alimento abundante não tinha sabor, até por que ambos, homem e mulher, eram desprovidos de língua; os odores também não chegavam aos seus sentimentos. Tudo era tão purificado no éden que, se comparado com os dias de hoje, mais parecia uma enfermaria; por fim, o som do paraíso era repetitivo e não havia música para se ouvir e dançar, os sentidos são para os mortais não para os filhos do criador; a mulher ouviu uma voz que era absolutamente desconhecida para ela; esta não é a voz de Deus, tampouco era a voz do homem, as duas sempre graves; que voz suave é essa que parte da caverna, perguntou-se a mulher, que, pela primeira vez, sentira uma sensação de paz interior, ao ouvir aquela vez que mais parecia cantar. A mulher relutou, mas, finalmente, entrou na caverna e aproximou-se da árvore que ainda recebia o último facho de luz do sol. Ela deparou-se com os frutos da árvore, de um vermelho tão intenso que ela mal podia ver outras coisas. Foi a primeira vez que atentou-se para a beleza de algo em particular; sentiu, também pela primeira vez, o aroma adocicado do fruto. Foi sua primeira experiência subjetiva, longe da lógica do funcionamento do paraíso. A voz da serpente ficou mais perto; ela encontrava-se enroscada na árvore, tal como um guardador. Teria sido Deus tão cruel em deixar a serpente, animal sedutor, como guardião da árvore do conhecimento, perguntava-se a mulher, excitada, pela primeira vez, diante de toda aquela situação. Prova desse fruto; não posso, respondeu a mulher à serpente, tudo de forma telepática e, por que não, muito empática também. O criador nos alertou sobre os males que os frutos dessa árvore carregam, não posso comê-los; não podes ou não deves, retrucou a serpente e logo emendando: tens a liberdade de escolher, aqui nada é proibido. Coma do fruto desta árvore e prove a sensação de sabe tanto quanto Deus, estão vocês par a par; todos os mistérios da criação serão revelados para você, terás autonomia e serás a única responsável pelas suas escolhas. Estarás condenada à liberdade! Com palavras tão tentadoras, mais a plástica da árvore, dos frutos, do raio de sol, do aroma que impregnava o ambiente que a mulher sucumbiu aos apelos da serpente e, vorazmente, mordeu o fruto do conhecimento. Instantaneamente tudo mudou. Nasceu uma língua em sua boca e o sabor do fruto ficava cada vez melhor e tentador; ela sentiu os aromas das flores, dos frutos, do seu corpo que passava a exalar desejo. A sensação do sabor, da textura da fruta, do seu corpo nu roçando entre as folhas da árvore era indescritível e, segredo dela, muito melhor do que o sopro do criador. Naquele momento, a criação deixava de ser hermética e passava a ser herética. Tão boa a sensação que a mulher foi correndo procurar o homem, queria que ele experimentasse tal sensação. Ele estava junto à entrada da caverna e relutava a entrar. A mulher quando bateu os olhos no homem, viu-o de forma diferente. Não sabia o que sentia, mas sabia que era diferente. Tocar em suas mãos para tomá-lo em direção da árvore também foi uma sensação indescritível. Ela havia perdido o dom da telepatia e de sua boca saiam sons ininteligíveis, quase grunhidos. A mulher tomou da árvore mais um fruto e deu ao homem e ele comeu e sentiu todas as sensações que a mulher tinha sentido e na sua boca nasceu uma língua e ele experimentou os sabores, os aromas, a visão da beleza. Ficaram por ali por três dias em completo silêncio e contemplando a visão de fora da caverna e perceberam que o paraíso não era tão harmonioso como lhes parecia antes. Observaram a luta voraz dos outros animais pela sobrevivência, observaram o que a força das marés e das correntezas dos rios faziam com a terra, observaram a luta constante das plantas por um lugar ao sol numa extremidade e pelas profundezas através de suas raízes. Olhavam-se e admiravam-se com a beleza um do outro; como não pudemos perceber antes, pensavam. E tocaram-se e beijaram-se e amaram-se. Conheceram-se. Miravam as estrelas no céu e a cada traçante podiam observar que a obra do criador ainda estava incompleta, com corpos celestes vagando sem rumo pelo espaço. Ao contrário do que se espalhou por aí não sentiram vergonha dos seus corpos; ao contrario, gostavam de se admirar. Um dia, passeando fora das trilhas do éden, pois depois de provarem o fruto do conhecimento eles passaram a buscar novos caminhos para percorrerem, encontrarem-se, na saída de uma densa folhagem, com o criador. Deus admirou-se de estarem fora dos caminhos por ele desenhados que, desconfiado, perguntou o que faziam; ouvimos os teus passos e nos assustamos, desconversou o homem com o assentimento da mulher; Deus foi tomado pela ira, pois o homem respondeu com a boca e não telepaticamente, e vociferou: oh! Criatura traidora! Comeste do fruto que eu proibi! Colocaste a minha obra em perigo! Acovardado, o homem culpou sua companheira que, corajosamente, assumiu a responsabilidade e disse: a serpente me revelou o que tu, que te dizes bondoso e misericordioso, negaste em nos revelar. Se a serpente me enganou foi com o meu e, principalmente, o teu consentimento. Como ousas a me desafiar, questionou Deus; ouso pelo pouco que já conheci e aprendi depois que comi do fruto proibido, retrucou a mulher. Tomado de um ódio irascível, Deus começa a condenação dos dois, jogando o peso do trabalho nas costas do homem, da maternidade nas costas da mulher, da mortalidade sobre os ombros dos dois e de toda a sua descendência. Mas tudo isso era pouco, pois Deus sabia que providos de inteligência, o homem e a mulher em breve estariam dominando a natureza, produzindo seus alimentos e adaptando-se a esta punição. Além disso, agora gozavam de sensibilidade e poderiam criar as artes, o que transformaria a carne mortal em obra imortalizada. Deus queria mais, queria vingança por tão grande traição. Pensou, arquitetou e disse: provaram do fruto proibido, já sabiam das conseqüências que tinham assumido, toda condenação e ameaças que fiz ainda me parecem pouco para puni-los. Dessa forma, como provaram do fruto e ganharam a língua, condeno-os a ficar presos a ela. A partir de agora, as coisas, os signos, os gestos, as palavras, tudo o que envolve a existência de vocês e todos os seus descendentes, ficarão presos às palavras; língua e linguagem não os deixarão mais ser livres. Viverão sob o domínio dos signos, dos significados e das significâncias; perderão a capacidade da telepatia. Tudo, na existência de vocês, haverá de ter um significado e o não domínio deste os levará à alienação e à ignorância muito maior que a existente aqui no éden. E Deus criou o primeiro significado e a primeira palavra: vergonha! E, ato contínuo de raiva e crueldade, abateu dois animais que ali estavam e mandou que o homem e a mulher se cobrissem. Eles já estavam sob o jugo do significado da palavra vergonha; ainda não satisfeito, Deus batizou-os com nomes: Adão e Eva e estes ele teriam que carregar até o fim de suas existências, não sem antes também nominar seus descendentes. E dali partiram Adão e Eva, homem e mulher, deixando os portões do éden. Deus ao vê-los sumir no horizonte, carregados de dúvidas, sentimentos controversos, desejos infinitos, medos, coragem, raiva e indagações, bipolares... percebeu que, naquele momento, eles eram verdadeiramente sua imagem e semelhança. Sentia-se cansado, voltou-se para dentro dos portões do éden, fechou-os e foi pensar, seriamente, no projeto da trindade. Não queria mais viver só; queria dividir as responsabilidades consigo mesmo. Petrópolis, inverno de 2010
Posted on: Sat, 07 Sep 2013 09:35:31 +0000

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