A cada manhã, ao acordar, eu me digo A cada manhã, ao acordar, - TopicsExpress



          

A cada manhã, ao acordar, eu me digo A cada manhã, ao acordar, eu me digo: Não conceda nenhum crédito a seu pensamento. Registre e anote. E rastreio tudo o que se oferece — ou se esconde — à visão. Impiedosamente. Por preguiça ou desinteresse, nem sempre anoto. É preciso aprender escrever com palavras plenas de silêncio. Todo livro não é a anedota ou a história trágica da perda de um livro? Um jogo, certamente. Não me acontece esquecer quem sou e onde estou? Venho de outro país; com certeza é por isso. Lembro-me, entretanto, que quando eu ainda vivia na terra de minha infância, tinha a impressão de vir de outro lugar, de outra cidade, de outro continente, sem nunca chegar a saber exatamente quais seriam. Ignorar de onde se vem quase significa confessar vir de nenhum lugar. Mas isso é ridículo. Eu me calava. Fazia como se… Sou um silencioso. Pergunto-me, graças ao recuo que agora tenho de minha vida, se esse gosto pronunciado pelo silêncio não tem sua origem na dificuldade que sempre tive de me sentir pertencer a um lugar qualquer. Antes de conhecer o deserto, eu sabia que ele era meu universo. Somente a areia pode acompanhar uma palavra muda até o horizonte. Escrever sobre a areia, à escuta de uma voz do além-tempo, os limites abolidos. Voz violenta do vento ou, imóvel, do ar, essa voz resiste a você. O que ela anuncia é o que o agride ou esmaga. Palavra das profundezas abissais das quais você não é senão um ruído ininteligível; a sonora ou inaudível presença. Se fosse preciso uma imagem para o Nada, ele nos seria dada pela areia. Poeira de nossos liames. Deserto de nossos destinos. Para o desenraizado, a árvore é o elemento da paisagem que não o retém. Pedras anônimas, edifícios se erguem à glória do anonimato. Ó cidades em que erro à procura de meu passado ancestral, lendo-o em cada ferida revelada pela espessura dos muros fendidos. Apesar de vocês, suas pedras amordaçadas de cimento e cal me reconheceram; pois, como eu, elas não são daqui, e não se lembram senão da noite, úmida e compacta, de onde foram extraídas. Vivi da errância, como o capitalista vive de suas rendas, tendo, de meus antepassados, herdado uma terra hostil. Terei de acrescentar que ela talvez tenha sido, em sua hostilidade, meu único bem? Estrangeiro, apenas um mundo estrangeiro poderia ser o meu. EDMOND JABÈS │ Tradução: Caio Meira
Posted on: Mon, 05 Aug 2013 17:39:06 +0000

© 2015