A carta da consciência Ha algum tempo, ja uns bons anos, antes - TopicsExpress



          

A carta da consciência Ha algum tempo, ja uns bons anos, antes do Euro tornar-se "moeda única" na Europa, antes do email liquidar com as cartas, encontrei um velho amigo num boteco dessa aprazível Porto Alegre. Nossas referencias de tempo na medida em que ficamos mais velhos vão progressivamente se relativizando. Meus alunos, os percebo hoje cada vê mais jovens... Mas não são eles que estão mais jovens ... Contou-me ele que recebera, de um ex-aluno seu, uma carta. O jovem ex-aluno, dedicado e aplicado desde os tempos de Faculdade, onde meu amigo fora seu professor, havia conquistado uma bolsa de estudos e há alguns meses estava na França, onde realizava um Mestrado. Contou na carta que, já adaptado ao novo ambiente, diante da mobilização de todos na Universidade, havia sido convidado para participar de uma atividade visando a angariar dinheiro para auxílio de crianças famintas e miseráveis. Tinha visto os cartazes com fotografias de crianças maltrapilhas e sujas, mas não tinha prestado muita atenção às mensagens. Mas como viu que todos iriam participar do Movimento, seus colegas franceses estavam entusiasmados, resolveu aderir. Afinal, se todos estavam nessa, também iria, não ia ficar de fora e parecer alguém indiferente ao sofrimento desses miseráveis das fotografias. Procurou a Comissão e soube, então, que seria uma espécie de Festival, Quermesse e Olimpíada. Haveria apresentações musicais, jogos, doces, dança, enfim, seria um final de semana com intensas atividades buscando recursos para aqueles pobres seres humanos sem nome e identidade que vira de relance nos cartazes. Procurou onde poderia se encaixar. Não tocava nada. Não dançava, não cantava, não sabia cozinhar. Havia jogos. Ah! Pensou, brasileiro tem que jogar no time de futebol. Então inscreveu-se no torneio de futebol (também havia um torneio de futebol). Ali poderia se encaixar e ainda demonstrar o talento brasileiro. Pagava-se para participar. O final de semana foi um sucesso. Não apenas a comunidade universitária participou. Havia gente de todo lugar nos shows, na quermesse, nos jogos, no baile. Os estudantes todos mobilizados participando intensamente de toda a programação, com os professores, os amigos. Todo aquele movimento por aqueles desconhecidos sem nome. Na outra semana todos no auditório. Seria comunicado o resultado obtido, a renda conseguida. Lá estava o jovem, sentado entre seus colegas, quase todos franceses, mas havia estudantes de muitos países. Naquela algazarra própria do mundo estudantil foram todos tomando seus lugares e o auditório lotou. Em seguida o professor que coordenara a Festividade começou a falar. Primeiro disse quantos mil francos haviam sido arrecadados, relatando tudo o que ocorrera, naqueles relatos sempre monótonos das prestação de contas. Então o ex-aluno de meu amigo, como conta em sua carta, sofreu o primeiro baque. O professor coordenador falou: O dinheiro vai para crianças famintas e miseráveis do Brasil! Conta o jovem que ficou lívido. Do Brasil? Ele, brasileiro, até aquele momento nem sabia que crianças eram aquelas. Mal recuperou-se e sofreu novo e derradeiro baque. O professor prosseguiu: são crianças da Ilha da Pintada, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Conta o jovem que quase desmaiou. Precisou ir à França, ir ao outro lado do mundo, para ao lado de jovens que nem sabem onde fica a Ilha da Pintada, para trabalhar e ajudar aquelas crianças, que vivem a dez minutos da casa daquele jovem bolsista…Conta ele que um sentimento de mal estar tomou conta de si. Como não havia visto que aqueles rostos sem nome eram de seus conterrâneos ??? Como, enquanto esteve vivendo em sua casa, a poucos quilômetros da Ilha da Pintada, jamais havia se preocupado com o destino daquelas crianças e jamais havia feito nada concreto por elas ??? Aliás, nem sabia que existiam, na alienação em que sempre viveu, cuidando só de si, de seu curso, da luta por sua bolsa na França. Conta ele na carta que ainda não se recuperou do efeito daquela experiência. De como aqueles franceses se dedicaram por quem nunca viram e por quem jamais verão, enquanto ele participou meio como “Maria vai com as outras” …e as crianças eram brasileiras, eram gaúchas, eram de Porto Alegre… Conclui o ex-aluno de meu amigo que a primeira coisa que fará ao voltar ao Brasil será dedicar parte de seu tempo ao auxílio daquelas crianças, da forma que for possível. Depois desse relato fiquei pensando. E nós? Nós que estamos aqui. Nós que cruzamos com estas crianças sem nome todos os dias e que estamos ao lado (?) delas. O que nós estamos fazendo? Na realidade parece estarmos acometidos de uma certa paralisia. A dor real já não nos comove. Estamos meio inseridos em um mundo virtual. O drama da novela faz chorar, mas o noticiário da TV e a realidade das ruas não nos comove. Convenço-me que há necessidade de todos, Estado, por seus Poderes constituídos, Sociedade, especialmente por suas Organizações, e a Universidade, segmento especial da Sociedade, se unirem e estabelecerem uma ação coletiva, numa espécie de corrida de revezamento, onde cada um possa levar o bastão a seu companheiro na certeza de que este prosseguirá na trajetória que leva a vitória comum. A questão da infância e da juventude, e da própria sociedade, deve necessariamente envolver a todos, sob pena de não haver perspectiva. Neste contexto o papel da Universidade, especialmente, se faz decisivo, pois é ali que se forja a Nação pensante, ali estão os homens e mulheres capazes – ou que deveriam ser capazes – de transformar a realidade. Ninguém porém transforma o que não conhece e ninguém será capaz de envolver-se com o social se não aprender a fazer isso. O grande risco dos cursos superiores brasileiros – especialmente destes -, é o de formar (ou continuar formando) profissionais descompromissados com a transformação social, no modelo liberal individualista, gerador de exclusão e ausência de comprometimento. A mudança de conduta é o que temos de fazer aqui e agora. Afinal, não é todo mundo que recebe uma bolsa de estudos para a França, para descobrir o sofrimento de seu vizinho de porta e despertar sua consciência…
Posted on: Wed, 26 Jun 2013 23:18:12 +0000

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