Acordou com dor nas costas.Não era bem dor, mas um - TopicsExpress



          

Acordou com dor nas costas.Não era bem dor, mas um desconforto.Nem era no lugar onde as vezes lhe doía, mas abaixo das omoplatas. Pensou,tenho de começar a fazer ginástica,alongamento ou caminhar.--- isso é dos nervos.--- lhe disse uma amiga. Notou que andava mais inquieta e distraída.O filho parecia mais barulhento, tudo no marido a irritava, até o barulho da sua mastigação e sua mania de pigarrear.O trabalho estava mais cansativo.Seus pensamentos fugiam mais vezes da realidade que, embora monótona, era um conforto.Este é meu lugar no mundo, pensava, retornando para casa no fim de cada dia. Esta é minha tarefa no mundo, pensava, fazendo as compras com a lista do supermercado na mão, o filho, já adolescente, empurrando o carrinho, emburrado. Num outro dia saindo do banho e olhando-se no espelho nua, examinou-se de frente, o ventre um pouco flácido, os seios nem de longe os seios gregos que o marido beijava com tanto ardor nos primeiros tempos.Avaliou seu corpo também de lado, e viu com pavor que havia duas marcas longas espáduas abaixo, descendo até quase a cintura:convexas, saltadas como cicatrizes enormes. Tentou tocar-se meio sem jeito, ao toque de seus dedos começava a palpitar. Pensou:se for câncer é um câncer muito esquisito, e de tão grande nem adianta falar porque devo estar morrendo mesmo.Mas o rosto estava bom, pele saudável,cor razoável, não tinha ar de doente terminal.Decidiu esperar um pouco para ver no que dava. --- você anda distraída,hein,mãe --- lhe disse o filho um dia.O marido não percebia nada.Mas ele não costumava mesmo prestar muita atenção.Insatisfeita com tudo, a mulher resolveu trocar a cor do cabelo.Saiu do salão sentindo-se uma rainha egípcia. Quando marido entrou no fim do dia, perguntou assim que o viu na soleira: --- notando alguma coisa nova, bem? Ele parou,sorriu inseguro,olhou em torno,para ela, abriu mais o sorriso e disse: --- você trocou o tapete? Ela não se zangou, lembrando quantas vezes fora impaciente com ele, criticara seus gostos e ironizara sua manias.Aquela era a vida deles.Aquele era seu lugar no mundo.E não era inteiramente ruim.Certa vez ela estava pensando em uma bela coisa erótica, sózinha depois do banho tocou-se, pensando:bom, se vou morrer mesmo, ao menos me divirto um pouco antes.Pois os sinais nas costas estavam mais destacados, e o desconforto maior, --- então na hora do supremo prazer deu um salto e sentou-se,achou que explodia, e começou alçar-se acima da cama. Olhou assustada sobre o ombro esquerdo, e notou que nas suas espáduas se abriam duas asas.Andou até o banheiro, com cuidado para não levantar voo ao menor movimento. E, quando se contemplou achou-se belíssima.Especial.Uma mulher nua com duas asas que logo aprendeu a manejar,abrir, fechar, levantar, dobrar de novo como um leque enorme. E --- mais estranho de tudo --- não teve medo, mas alegria.Era isso:não estava morrendo de um câncer.Ela estava virando um anjo.E a dimensão desse segredo quase a derrubou.No começo foi difícil acomodar as asas de baixo da roupa.Começou a usar roupas mais folgadas,e como ninguém ligava muito, logo se sentiu a vontade com seu segredo. Mas dava-lhe uma certa pena não ter a quem contar aquilo.O marido, nem pensar.A vida deles estava tão organizada, que não permitiria uma interferência daquelas, nunca se sabia quando as coisas começariam a desmoronar, e aí nada mais poderia conter a ruína.Se contasse iam interna-la como doida, operar, cortar as asas,isolá-la, sabe-se lá. Para aliviar a agonia secreta dessa possibilidade...de noite saía, abria as asas e voava, sobrevoava o cotidiano enxergando tudo de outra perspectiva, mais completa e mais vasta. Num daqueles volteios, descobriu outro igual a ela, girando nos ares não muito longe, e ficou observando pousada num telhado.Descobriu onde ele vivia,onde trabalhava,por onde andava... E começou a encontrá-lo fingindo que era por acaso, e tomaram juntos um cafézinho, foram ao cinema, e finalmente decidiram que estavam apaixonados e tinham de viver aquilo. Ela teve muito medo de que ele descobrisse, e do que faria ao descobrir.Mas como paixão é glória e insanidade, consentiu,e encontraram-se, e quando ele insistiu em que tirasse a roupa, da primeira vez ela não quis, fazendo-se de envergonhada. Em outro dia porém, ficou mais impaciente e ansiosa, e decidiu arriscar, mas pediu enquanto tirava a roupa: --- vamos fazer em pé? E quando, na penunbra, se abraçaram e se procuraram... ela sentiu entre horrorizada e feliz que suas grandes asas se desdobravam.Mas o amante não se assustou.Não se afastou. Apertou-se mais a ela, dizendo, vem comigo, vem comigo, vem comigo. E abriu suas asas também.
Posted on: Sat, 26 Oct 2013 01:51:22 +0000

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