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Atualização de status De Walterson Sardenberg Sobrinho Entre as minhas cismas em relação ao bom texto sempre estiveram a preposição "que", a conjunção adversativa "mas" -- e seus sinônimos, como "contudo", "todavia", "entretanto" etc -- e os advérbios terminados em "mente". Quando em excesso, estragam tudo. Apodrecem. Houve época em que me dei ao trabalho de escrever reportagens inteiras sem usar nenhuma dessas palavras. Segue uma delas, sobre um roteiro a cavalo em Portugal. Um outro Portugal Por Walterson Sardenberg Acima do Rio Tejo. Arribatejo. Ribatejo. O nome resume a geografia da mais fértil das sete províncias de Portugal. Em geral, cada cidade do Ribatejo, cada vila, cada aldeia se debruça como um alpendre sobre o mais decantado dos rios lusitanos. Ele mesmo, o Tejo, “ancestral e mudo, pequena verdade onde o céu se reflecte”, nas palavras de Fernando Pessoa. O Tejo nasce na Espanha. Deságua em Lisboa. Antes disso, corre pelo Ribatejo em meio a plantações de uva, mate, trigo, centeio. Também serpenteia ladeando nogueiras, mosteiros, laranjais, anciãos de boina xadrez, oliveiras, senhoras de preto saídas da missa. É um Portugal remoto, embora jamais arcaico como o de Trás-os-Montes. Acima de tudo — e do Tejo —, um Portugal modelar. Eterno. Percorrer esse Portugal torna-se mais prazeroso se feito como preferem os ribatejanos: a cavalo. Caso o dileto leitor tenha razoável prática nessa lida, haverá de apreciar. A montaria ajusta-se ao Ribatejo assim como o açúcar afina-se às gemas na cozinha portuguesa. Planície com raras concessões a colinas, a área escolhida pelo Tejo não requer esforços exemplares do cavaleiro — a não ser impor-se com astúcia ao cavalo lusitano, raça pouco tolerante a vacilos de iniciantes. Isto posto, quando bem guiado, o animal não atraiçoa o condutor, nem o faz perder estribos ou estribeiras. Ao contrário, imprime um passo lento, cadenciado, levando a graciosas aldeias de marcha semelhante, morosa, indolente. Os lugarejos podem ter nomes poéticos. Vila Nova das Barquinhas, eis um deles. Ou então desconcertantes, como Entroncamento, assim batizado em virtude de uma lógica escorreita: enquanto um trem parava no cruzamento, o outro partia. Em comum, cada povoado cultiva a permanência da fidalguia e a ausência da ansiedade. No Ribatejo, enfim, até os relógios descansam e os motoqueiros, veja só, são cavalheiros. Eles páram. Fazem reverência. Dão passagem aos cavaleiros. Diversos países da Europa acenam com roteiros equestres organizados para grupos de até doze pessoas, com a duração de dois, quatro, sete dias. Os ingleses tomaram as rédeas primeiro, embora — ai deles! — a palavra mais usada para definir programas afins seja francesa: randonée. Depois dos britânicos, entraram na concorrência os espanhóis, os italianos e os suecos. Louve-se cada uma das iniciativas. De qualquer maneira, o viajante brasileiro adepto dos passeios a cavalo — e da falta de pressa — tem lá seus motivos para escolher o Ribatejo. A começar pelo idioma, encantador pela identificação; e, em especial, pelas diferenças. Surpresas do dia adia, tais como ouvir os moradores atendendo ao celular (ou telemóvel, como preferem) com um vibrante e esclarecedor “Estou!”, vão se renovando a galope. A familiaridade se estende à arquitetura, de portas e janelas agigantadas, emolduradas por delicados azulejos, como os lusitanos praticaram — à guiza de teto para a saudade — nas nossas São Luís, Ouro Preto e no Recôncavo Baiano. Outros chamarizes vão além do meio milênio de nossa relação com o modo de vida português. Entre as virtudes adicionais, insira as quintas, a divina culinária e a privilegiada localização do Ribatejo. Combinam entre si como pão, vinho e azeitonas. A palavra quinta deriva de quintana — tal como o sobrenome do adorável poeta gaúcho. Assim era chamado, em latim, o mercado montado em meio a um acampamento romano. Já em português, designa uma pequena propriedade rural, quase sempre centralizada por um casarão com mais de século e meio de solidez. Muitas quintas definharam. Tornaram-se vilas fantasmas. Fosse o caso, serviriam de locação para um filme baseado em Faulkner, Jorge Andrade ou qualquer autor obcecado pela decadência rural. Já outras tantas estão fechadas aos viajantes, por escolha dos herdeiros, decisão de recém-compradores ou, ainda, entrave de litígios legais. Para a ventura dos cavaleiros — e providencial descanso dos cavalos —, diversas quintas abrem seus portões de ferro com um rangido melodioso a quem se candidata a conhecê-las. Cada uma desvela-se em oferecer algo além da simpatia — produto genérico do Ribatejo. Há quintas para atirar as botas sobre tábuas seculares e passar a noite. Quase sempre, hospedado no passado. Exemplo disso, a Quinta da Cerca mantém trechos medievais, enquanto a de Santa Bárbara remete à aventuras épicas: seu impecável casarão abrigou Luiz de Camões. Também não faltam quintas para apreciar azeites de extração de inviolável pureza, caso da Vale de Lobos, onde viveu outro poeta, Alexandre Herculano — terror de quem se viu obrigado a destrinchar a análise sintática de Eurico, o Presbítero, sob o jugo de mestres devotos do Marquês de Sade. Não devem ser esquecidas, é evidente, aquelas quintas encravadas em vinícolas. Na Quinta Vale dos Fornos servem-se histórias tão bem-vindas quanto as safras abençoadas. A mais incrível trata da intrigante questão da posse das terras. Pois bem, ainda no século 19, Dona Maria d’Assumpção era a toda-poderosa dona da Vale dos Fornos, quando se casou com o conde de Azambuja. Desfeita a união, coube ao ex-marido, por ordem e estampilhas da lei, apropriar-se de tudo, deixando a ex-companheira à mingua. O extraordinário advogado do conde levou consigo o segredo castrense e, desde então, nenhum ex-marido no planeta pôde contar com a nobreza de espírito dos juízes. Também há quintas indicadas para almoços. Nesse mistér, merecem a distinção a Quinta da Marchanda e a Quinta do Gaio. Em ambas, os rega-bofes são intermináveis e iniciados com o vinho ribatejado — um tinto suave, frutado, menos complexo e, sejamos sinceros, nada empolgante. Ainda primando pela honestidade: recorrer às quintas para as refeições não é necessário, em absoluto. A despeito das dimensões das aldeias, basta entrar em qualquer tasca ao longo do caminho e pedir a especialidade da casa. Favas contadas: será uma refeição muito gira — ou bacana, se cabe a tradução. Oportuno lembrar, o prato mais típico do Ribatejo é a carne de porco. Sendo do apreço do viajante, vem servida com migas (risoto de pão, feijão e couve) e até com mariscos (mescla conhecida por rojões). Quem prefere carne de carneiro, estará à vontade, sobretudo se disposto a experimentá-la em bolinhos feitos com grão-de-bico. De resto, há de tudo no Ribatejo. Os deliciosos queijos de leite de ovelha vêm da Serra da Estrela. Os peixes, incluindo o onipresente bacalhau, são trazidos de Lisboa, a menos de uma hora de automóvel. Tanta variedade decorre da singular posição geográfica: o Ribatejo é, antes de tudo, área de transição. Está a meio caminho entre o sul e o norte, entre a planície e as serras, entre o litoral e o interior — ou entre o poente e o levante, no parecer dos bardos. Regado pelas águas do Tejo, pelo lirismo dos poetas e por influências diversas, o Ribatejo, em contrapartida, é desdenhado, visto pelos invejosos como lugar sem identidade. Acusam os detratores: “Não tens nada de vosso”. Rebatem os ribatejanos: “Pois temos tudo de vosso; e dos demais, também”. Alheio às desavenças, cabe ao visitante aproveitar-se de estar no centro da rosa-dos-ventos e no entroncamento de culturas regionais. Acomodado na sela e ouvindo o trotear, haverá de descobrir por si mesmo: tanto quanto as águas do Tejo, é ele, o cavalo, o traço de união dessas paragens. Com efeito, em qualquer lugarejo do Ribatejo, entre uma taça e outra, a conversa recai sobre tordilhos, alazões, castanhos, baios. Além disso, ao longo das veredas, o visitante vai deparando com criações de cavalo, seja em haras requintados — aqui chamados coudelarias — ou mesmo em sítios espartanos à beira de estrada. Nessa região, cavalgar vai além do estrito lazer. Muito além. O fato de Portugal ter permanecido ao longo dos séculos um país agrário — e, além disso, refratário à mecanização do campo —, fez do cavalo um aliado abnegado e fundamental no trabalho da lavoura. Neste mundo interiorano, ele sempre foi transporte, negócio, meio de vida. Nos dias correntes, não só. Tornou-se tambem arte, teste de habilidade, orgulho, começo de conversa, esporte, afirmação de identidade, símbolo de status, alegria e tristeza, sujeito e objeto. Resumo ilustrativo dessa relação é a vila de Golepã, nomeada pelo governo federal a Capital Nacional do Cavalo. O povoado soma 9 mil almas, vivendo um cotidiano tão modorrento quanto um recesso parlamentar. À primeira vista, parece um fim demundo, similar a outros tantos, sem nada de especial. Só parece. Basta reparar nas placas de ruas, no nome de bares e dos hotéis para notar: tudo em Golegã, absolutamente tudo, remete à prática da montaria. Essa fixação se projeta ainda mais na segunda semana de novembro, com a radiante feira hípica, capaz de granjear 800 mil aficionados, ou 90 vezes a população do vilarejo. Outra das atrações comuns ao Ribatejo são as touradas — e também nesse caso a montaria tem papel essencial. Na tourada à portuguesa, o toureiro exerce seu ofício a cavalo. Vestindo um traje de nobre do século 18, ele adentra a arena todo pimpão, apoiado por um séquito. A comitiva agrega dois cavaleiros, os peões de brega — nada a ver com a música popularesca, aqui chamada de pimba —, e outros sete auxiliares a pé, os forcados. A esses últimos cabe de fato o trabalho braçal. Os prestimosos forcados pegam o touro a unha, após o combalido animal ter recebido sete farpas, espetadas por aquele cavaleiro janota, vestido de Luís XV. Entre as vilas promotoras de touradas estão Cruz, Cartaxo, Vila Franca de Xira. Em todas, os touros são chamados de toiros; e os potros, de poldros — cousas, ou melhor, coisas desse idioma inigualável, imune a reformas ortográficas. No caso dos povoados menores, a riqueza do espetáculo se limita ao traje do toureiro. A rigor, para assistir corridas de touro de maior pompa e maior monta recomenda-se entrar em Santarém, a principal cidade do Ribatejo. Será preciso exigir mais aplicação da montaria. Cercada por muralhas medievais, Santarém estende-se sobre um planalto. Sua topografia incomum no Ribatejo foi estratética para retomar Portugal dos grilhões dos mouros, já se vai meio milênio. Pode ser curioso visitar a casa de Pedro Álvares Cabral — hoje transformada em consulado honorário do Brasil. Mais ainda, assistir os espetáculos de arte eqüestre, legado de D. Pedro Coutinho, o Marquês de Marialva, pai da moderna equitação portuguesa — e, segundo fontes viperinas, também o pai de Dom Miguel, filho da princesa Carlota Joaquina e irmão do nosso D. Pedro I. O melhor de Santarém, seja como for, é perder-se nas sinuosas vielas, travêssas travessas do Centro. Exceção em todo o roteiro, o cavalo não terá acesso à parte mais movimentada da cidade. Restará o Rio Tejo, visto de um terraço natural. Ele, o Tejo, agora refletindo cada lembrança de uma viagem por um Portugal eterno
Posted on: Sun, 06 Oct 2013 23:45:07 +0000

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