COMO SE EU FOSSE O WALDEMAR GARCIA O jornalista Magela Lima - TopicsExpress



          

COMO SE EU FOSSE O WALDEMAR GARCIA O jornalista Magela Lima imaginou, certa vez, fazer uma entrevista com Waldemar Garcia (Crato-1902/ Fortaleza-1985), encenador, pintor, cenógrafo, pianista, maquiador e aderecista que durante as décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970 influenciou as artes cênicas do Ceará, não apenas com o seu trabalho mas também com o seu pensamento crítico. Por eu ser autor de Rá!, uma aula-espetáculo sobre essa personalidade do nosso teatro, fui escalado pelo repórter para dar respostas às perguntas. Aceitei, então, a proposta. Eis a entrevista que o jornal Diário do Nordeste publicou nas proximidades da Semana Santa de 2005. - Bem sei que o senhor não gosta de paparicos, que tem horror a trique-triques, mas queria, desde já, agradecer pela sua atenção e me desculpar por lhe incomodar aí no sossego do além. Para começar, queria saber do que mais o senhor sente saudade do plano de cá? - Olhe, meu filho. Eu não paparico ninguém nem gosto que ninguém me paparique. Eu sou é da rede rasgada e por qualquer coisinha arrombo logo a fivela. Só decidi lhe dar esta entrevista por dois motivos. Primeiro, porque não é pra televisão. Se fosse, não daria, porque não gosto de expor minha figura nem em retrato e muito menos em fita. Se você quiser botar minha cara no jornal que seja em retrato antigo. Segundo, porque me disseram que você como entrevistador promete, é bonzinho. Lhe digo isto mas não se empavone, porque pavão tem aquela cauda bonita e vistosa só pra disfarçar os pés de peru! E quanto à sua pergunta sobre saudade, sou franco em dizer: saudade profunda mesmo eu só tenho do Crato, do Teatro Zé de Alencar e do meu cubículo no Edifício Jalcy, onde eu tinha meu piano e meus pincéis. Também, de vez em quando, me dá vontade de comer uns biscoitinhos Aymoré, umas bolachas Maria e beber o quissuq que Nenzinha Galeno me oferecia todo sábado na Casa de Juvenal Galeno. Mas o que me dói é a saudade de Mário Kaúla, Newton Rodrigues, Ary Sherlock, Adrienne e alguns outros poucos amigos. - Ao contrário do que muitos julgam como certo, o senhor, como seguidor dos fundamentos de Kardec, tem a devida noção de que as despedidas podem não ser tão definitivas assim. Caso reencarnasse, lhe agradaria viver de teatro mais uma vez? - Nunca vivi de teatro; sempre vivi para o teatro. Sobrevivi com alguns trocados que me sobraram na minha atividade teatral, como figurinista, cenógrafo, aderecista, maquiador e diretor. Depois, já velho, no tempo de Antônio Martins Filho, o Zé Maria, que inventou de ser B. de Paiva, me arrumou, sem eu pedir, um emprego de tocador de piano para as aulas de ballet que Tereza Bittencourt dava no Curso de Arte Dramática da Universidade. Passei de meses sem nem ir buscar o salário, porque tinha de entrar em fila pra receber e não gosto de fila. Um dia, arranjaram um jeito de me pagar sem tanto fuzuê e eu fiquei recebendo minhas migalhas. Nunca fui de ter apego à matéria. Se às vezes me pegavam escondido num canto, contando dinheiro, é porque eu não sabia lidar com depósito de banco nem com papel de cheque. E , além do mais, o dinheiro era minguado e quem tem dinheiro pouco tem mais é que controlar pra não faltar no fim de mês. Nunca cobrei pelas aulas que dava aos meus discípulos nem pelas vezes que arranhei meu piano em festa e recital. Vendia uns quadrozinhos aqui e ali e ia escapando com os caraminguás da aposentadoria. Entretanto, lhe digo: quando eu reencarnar - se é que vou - que seja outra vez no Crato e que eu faça de novo teatro, cumprindo todo o carma que me for dado cumprir. - O senhor costumava dizer que teatro não é pra quem já sabe, é pra quem não sabe, pra quem vai sabendo. Como é que se fez o Waldemar Garcia, que referências o senhor teve para se tornar esse mais expressivo faz-tudo do teatro cearense? Olhe: não se aprende teatro vendo um abestado gastar cuspe ou escrever esquema de lousa. Teatro se faz é com tarimba e se aprende a fazer fazendo. Durante 50 anos, eu fiz tentativas de aprender. Hoje um menino desses que só sabe fazer munganga assiste a uma aula, dá um pinote e no dia seguinte se acha um gênio, o grande Garrik da Inglaterra. Sempre disse aos amadores que passaram pelas minhas mãos: Você acha que já sabe tudo? Então, abandone o Teatro, porque teatro não é pra quem já sabe; teatro é pra quem vai sabendo. É assim: a gente tenta aprender fazendo, fazendo, até um dia fazer sem pensar no que aprendeu pra fazer. - Em 1943, o teatro brasileiro tem uma guinada das mais significativas de sua história, com a montagem de “Vestido de Noiva”, texto de Nelson encenado por Ziembinski. Como esse processo reverberou cá pelo Ceará? - Quando esta peça estreou, eu nem morava na Fortaleza. Só vim do Cariri, de vez, em 1947. Antes, eu estava no Crato, trabalhando com o Grupo Teatral de Amadores Cratenses. No nosso repertório estavam Amor e Pátria, de Joaquim Manuel de Macedo, Yaiá Boneca, de Ernani Fornari, Maria Cachucha, de Joracy Camargo, A Cigana Me Enganou, de Paulo Magalhães e outras mais. Nesse tempo, o Crato contava com dois jornais de porte: A Gazeta do Cariri e A Ação, Havia também grêmios literários por toda parte, a Escola de Música Branca Bilhar e o Cine Moderno que foi deixando de exibir cinema mudo para exibir cinema falado. Muitas companhias teatrais passavam pelo Crato, se apresentando no palco do Cine Cassino: Barreto Júnior, Marquise Branca, Zely Curvelo, o Grupo Gente Nossa, de Recife, bem como Cláutenes Andrade, Andrade Júnior e Fernando Silveira, artistas da Fortaleza. Desse dito Nelson Rodrigues só ouvi falar nos idos da década de quarenta. Por aí. Foi, aliás, um grupo que dirigi , o Centro de Cultura Teatral, que fez a primeira montagem cearense de uma peça dele: A Mulher Sem Pecado, com João Ramos e Thiago Otacílio de Alfeu. Em 48, o Manuelito Eduardo publicou uma peça que - dizem - lembra o Vestido de Noiva. Era O Demônio e a Rosa que nós encenamos pelo Teatro Universitário do Ceará em 1950. - A estréia de “O demônio e a Rosa”, de Eduardo Campos, com sua direção, em 1950, é apontada como o similar local, em termos de inovação, de “Vestido de Noiva”. O senhor se sente, de fato, o pai do moderno teatro cearense? Seria lhe adular demais, se lhe chamasse de Ziembinski do Cariri? - Ziembinski do Cariri ? Rá! Você está me jogando muita pluma. Eu fui só eu mesmo, fui o que fui. O que eu fiz foi dar uns conselhos aos meus pupilos. Repetia sempre: texto não pode ser dito como cantiga de grilo. Tem de ter nuance. A fala no teatro não pode ser como as rezas das beatas do Juazeiro tirando novena. Tem de ter variedade de ritmo, de inflexão, de entonação, de impostação. E o ator não deve estar em cena como se tivesse na cozinha da sua casa. No palco não se vive; se representa. Todo ator tem de aprender de novo a andar, a sentar e a dizer as palavras, sem engolir as sílabas e as letras, porque se não for assim, a barriga vai ficar cheia de esses e erres. Então, articule! Em cena, você não pode ter voz de formiga se afogando. É preciso manter a postura e a projeção. E mais: ator que é ator não decora o papel feito um papagaio; aprende o texto. Ator tem de saber o seu papel como quem sabe o caminho de casa. E no caminho de casa você vai no rumo da venta mas não pensa no trajeto. Será que dizendo essas coisas eu estava sendo moderno ? Não sei. Pra mim, isso no teatro é o que há de eterno. - Por fim, eu gostaria, se não fosse pedir demais, que o senhor lembrasse um pouco dos pupilos que teve enquanto por aqui viveu. Alguns deles, andam por aí a fazer uso de seus mandamentos ainda hoje. O senhor se foi achando que tinha cumprido sua missão ou faltou tempo para o senhor fazer tudo aquilo que desejava, para dar vida a todo o teatro que tinha correndo nas veias? Seus seguidores estão dando conta do trabalho que o senhor começou? - Eu desencarnei quando Deus achou que era bom tempo. Mas quando a gente se despede dessa carcaça velha, que é o corpo, nunca se acha que é conveniente a hora. A vida terrena é como uma boa peça de teatro: por mais que tenha três, quatro, cinco atos, a gente sempre quer inventar mais um, pra retardar o epílogo. Mas a peça acaba. É a vi-da! Morre um , nasce outro, morre esse outro, nasce mais outro que também vai morrer quando baixar o pano. Quando chegou minha vez de sair de cena, fui pros bastidores esperar a hora de reencarnar, com a impressão de ter sido regular no papel que me coube representar no enredo. Mas agora, depois da morte, eu sei que tudo que vivi foi só um ensaio antes da estréia, pois, pra quem tem muito o que fazer. todo o tempo é sempre pouco tempo. Por isso eu digo aos que ficaram aí, pelejando: o teatro tem pressa e não pode perder tempo nem com diletante nem com pedante. Que cada um faça mais e melhor do que aquilo que pensa que é capaz de fazer e cumpra a sua marca, dando a deixa pros outros que ainda virão. Bem, já chega de tanto blablablá. Hoje é domingo da Semana Santa e vai já começar a última sessão do Mártir do Calvário que eu ensaiei com os amadores daqui. No elenco tem um tal de Jesus que está divino no papel de Cristo. Quando ele entra em cena, eu assisto de joelhos! E quando ele se retira, eu lhe digo: olhe, Jesus, você promete, você é bonzinho, mas não se empavone! ( nas fotos, Waldemar Garcia e placa de sala em sua homenagem afixada nas dependências do Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará)
Posted on: Sun, 29 Sep 2013 05:47:22 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015