Depoimento da Fernanda*, ex aluna, sobre o abuso que sofreu do - TopicsExpress



          

Depoimento da Fernanda*, ex aluna, sobre o abuso que sofreu do pai, um pai que deveria dar carinho, mas foi além, foi além dos carinhos paternos e usava do medo para ela não sair dessa situação. Forçada, não podia fazer nada contra, o pai batia na mãe, e, ela tinha um irmão. Com a liberdade, ela ousou, ou melhor, preferiu ser ela mesma, enquanto o irmão, motivo de orgulho, repreendia colegas por atitudes machistas. Aposto, que, ao lerem vão se sentir tocadas pelos pais, vão se sentir repreendidas. * Fernanda: nome fictício para preservar o anonimato "Não vou revelar meu nome nem meu rosto, mas não pense você que é por vergonha da minha história. A única razão para eu fazê-lo é não querer tornar-me heroína. Não aconteceu só comigo; não sou mais especial por isso. Mas também não sou menos, e quero contar a vocês a minha história. Durante toda a minha infância eu não fui mulher. Eu não fui menina. Muitas vezes eu nem criança fui. E por mais que eu tente, ainda hoje não consigo esquecer este pedaço de mim que falta, e este pedaço de história que, juro, se eu pudesse, jogaria numa lata de lixo. Como acontece com qualquer menina ou menino que foi violentado. Estupro? Não, não “chegou a acontecer”. Nem por isso foi mais fácil. Se querem saber, meu hímen permaneceu intacto até o dia em que permiti que fosse rompido. Nem por isso foi mais fácil. E também não é nenhuma novidade. Sim, a violência partiu de dentro de casa. Meu pai, pra ser exata. Até certa idade, eu, menina, criança inocente, não percebia, não maldava os olhares maliciosos que recebia. Até eu entrar na puberdade.É aquele momento em que os seios começam a crescer. Formam pequenas saliências cutucando a camisa. Nada de mais. Lindo, pelo ponto de vista poético. Uma menina que se prepara para começar a viver a vida. Do ponto de vista DELE: uma mulher. Não, não mulher no sentido verdadeiro desta palavra. MULHER em seu sentido deturpado pela mente machista. MULHER enquanto objeto de prazer do homem. Dissimulado, ele nunca me arrastou para um quarto, nunca me pegou a força, nunca foi mais explícito que suas tentativas de disfarce permitiam. Pra quem já leu Nabokov, eu era uma Lolita sem consentimento. E também é bem provável que este disfarce se devesse a minha mãe. Sim, ela sabia, percebeu muito antes de mim. Se omitiu? Não, jamais. Ela é a grande heroína desta história. Sem termos para onde ir ou do que viver, foi ela quem suportou de tudo para que eu e meu irmão tivesse pelo menos o direito de comer. Ele não a deixava trabalhar, batia nela, e mesmo que tentasse, ela não conseguia emprego. Foi um inferno suportado para proteger meu irmão e especialmente a mim. Ela nunca deixou que ele me violasse. Mas nem por isso foi mais fácil. Logo que entendi o que acontecia, logo que entendi do que minha mãe falava, um sentimento horroroso brotou dentro de mim. Chamar de asco é eufemismo. Chamar de pânico também. Pois eu não tinha paz. Eu vivia sob o teto de uma pessoa que me destrinchava por partes com a intenção. “Abraços” que deveriam ser ternos, pois vinham de um “pai”, na realidade tentavam acariciar-me a pele e tocar-me os seios ou a bunda, quando não vinham por trás, a típica encoxada. Eu tentava me livrar. A pior parte é ter de dissimular-se também, pois qualquer reação minha poderia resultar em duas coisas terríveis: ele poderia finalmente “tomar uma atitude”, no impulso da raiva, e estuprar-me sem ressalvas; ou todo o peso de sua ira recairia sobre minha mãe. A instabilidade da situação era aterradora. Por toda a minha adolescência eu fui privada da minha própria vaidade. Sabe o que é olharno espelho e não ter o direito de se achar bonita? Sabe o que é ter medo de ter orgulho de si mesma? Sabe o que é não poder vestir uma camisola mais confortável no calor, pois é um pouco mais decotada? Não falo de não conseguir, falo de não poder, sequer ousar se sentir bem consigo mesma. Não ter o direito de simplesmente “ser”. Tudo, tudo para evitar chamar a atenção. Tudo para se manter o mais imperceptível possível. Tudo para não “instigar” ainda mais. Sabe o que é não conseguir dormir a noite, porque sabe que estão te observando? Sabe o que é o pânico de ficar sozinha em casa, contando os segundos para sua mãe chegar do mercado, porque ele chegou mais cedo do trabalho, e só tem ele e você dentro de casa, e mais ninguém? Sabe o que é temer a pessoa que deveria te proteger? Sabe o que é ter medo todo o tempo? Eu tinha. E era obrigada a me esconder, como um bicho acuado, impotente. Mas como eu disse, minha mãe é a heroína desta história. Pois mesmo diante de tudo isso, além de me proteger e me apoiar, ela me ensinou o que significa ser MULHER. Porque mesmo que na situação que vivíamos (e na época não tínhamos opções), ela sempre me fez entender que a culpa não era minha. Que mesmo que eu tivesse que me privar da minha vaidade, eu o fazia pra me proteger de um agressor, mas que eu não devia ter vergonha de meu corpo. Que se tinha um culpado, esse alguém era ELE. Ele e todos os homens que subjugam o direito da mulher ao próprio corpo. Sempre ficou muito claro pra mim que eu era senhora de mim mesma, e mesmo que andasse por aí completamente nua, homem nenhum tinha o direito de invadir meu corpo e minha privacidade. Este era um erro DELES. Feminista desde sempre, criada numa época em que as mulheres eram “feitas” para cuidar do marido e da família, infelizmente minha mão não teve um destino de sorte. Mas não deixou de pensar como sempre pensou. Hoje, mais do que nunca, eu entendo as atitudes dela. Já vi feministas criticarem minha história, e principalmente ela, dizendo que “deveria ter feito alguma coisa”, mas lamento informar que a vida é muito mais cruel do que isso. Hoje entendo que aqueles anos terríveis foram estrategicamente suportados, com muita dor, claro, mas também com muita inteligência. Vale ressaltar que aqui é uma situação incomum, e muito adversa. “Tomar uma atitude” muito provavelmente significaria meu estupro. Sair de casa significaria virar sem-teto, e além de passarmos todos fome, adivinha a que circunstâncias eu, ela e também meu irmão estaríamos vulneráveis? Sim, ao estupro. Foi ruim? Foi terrível! Mas tudo indica que teria sido pior. E enfim, chegou o dia em que este pesadelo acabou. A sorte surgiu, as condições apareceram para quem sempre procurou por elas e soube estar de olhos abertos para a fração de segundos em que elas surgissem e então, aproveita-las, e as algemas foram arrebentadas. No primeiro sopro de liberdade, vesti um vestido curto, cortei os cabelos e saí por aí sendo eu mesma, mulher, livre, vaidosa, sem pudores, sem precisar me esconder. Cantadas eu recebo sempre. Mas nenhuma delas me intimida. Ninguém nunca mais vai me oprimir. Hoje eu, minha mãe e meu irmão somos feministas engajados na causa. Meu irmão já sofreu entre os colegas por repreender suas atitudes machistas e agressivas. Tenho orgulho dele. Tenho muito orgulho da mulher forte que é minha mãe. E tenho orgulho de mim. Tenho orgulho de todas as mulheres que ousam se libertar. Tenho orgulho de todos que ousam contrariar estes dogmas opressivos. Tenho orgulho de todos que ousam ousar. Como eu disse, não conto minha história pra me fazer de glórias de conquistas e superação. Trata-se apenas de um relato de opressão e subjugo, e do direito de toda mulher e toda pessoa de ser livre e autônomo de seu próprio corpo, de sua própria mente, de seu próprio ser. Ousem respeitar o direito dos outros. Ousem buscar o respeito pelos seus. Ousem libertar-se. Ousem."
Posted on: Sun, 29 Sep 2013 16:00:12 +0000

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