Eichmann na jaula dos réus Zevi Ghivelder À pouca - TopicsExpress



          

Eichmann na jaula dos réus Zevi Ghivelder À pouca distância da defesa ficava a bancada da promotoria, chefiada pelo jurista Gideon Hausner, que cinco anos depois do julgamento escreveu um livro admirável, intitulado Justice in Jerusalem. Nascido em 1915 na cidade de Lemberg, que pertencia ao império austro-húngaro, emigrou com a família para a antiga Palestina em 1927, formando-se em direito na Universidade Hebraica de Jerusalém. Foi membro da Haganá, lutou na Guerra da Independência, atuou como promotor e presidente da Corte Militar de Justiça e, no ano anterior ao julgamento de Eichmann, foi nomeado Procurador Geral do Estado. Eleito para o Parlamento em três legislaturas sucessivas, serviu como ministro sem pasta no governo de Golda Meir. Antes da abertura oficial dos trabalhos, Servatius levantou uma premissa: o julgamento de Eichmann deveria ser anulado e considerado ilegal porque era conseqüência de um seqüestro, ato inaceitável em face do direito internacional. Além disso, se o acusado tivesse praticado qualquer crime, este não ocorrera no Estado de Israel, ou seja, havia o impeditivo da jurisdição. Jurista experiente, Hausner antecipara que a defesa apresentaria essa premissa. Passou, então, a relatar uma série de processos oriundos de seqüestros, em diferentes países, e cujas validades haviam sido aceitas. Não me recordo dos pormenores daquela extensa e complicada argumentação, mas lembro de um caso que Hausner citou, referente a um bandido americano que cometera um crime na Califórnia e se refugiara no México, onde foi capturado por agentes americanos e levado a julgamento nos Estados Unidos, sem nenhum empecilho legal. A tentativa de Servatius de anular o julgamento não foi bem sucedida. Após breve recesso, o juiz-presidente Moshe Landau voltou ao recinto e leu o veredito que dava à corte israelense plena autoridade para julgar Adolf Eichmann. Quando terminou, levantando ligeiramente os olhos do papel que tinha na mão, disse para o tradutor em hebraico: “Ordene ao acusado que se levante”. Eichmann atendeu com obediência espartana. O juiz prosseguiu, sem olhar para o réu: “Ordene ao acusado que tire o fone dos ouvidos”. Essa operação demorou alguns segundos a mais do que o necessário. Os fios do fone ficaram presos nos óculos de Eichmann e só por causa deste pequeno incidente houve um clima de expectativa. A voz de Landau fez-se novamente ouvir: “O réu compreendeu as acusações proferidas no primeiro dia do julgamento? – “Sim”. O Dr. Servatius deu uma leve batida com sua caneta sobre a mesa e desviou os olhos da jaula de vidro. Hausner tinha o corpo ligeiramente afundado na cadeira e fitava os juízes. Landau perguntou: “Considera-se culpado, ou não, no que se refere ao primeiro item da acusação”? Eichmann respondeu: “No sentido da acusação, inocente”. Sua voz não demonstrava qualquer tremor e até fez um certo esforço para aprimorar a dicção. Declarou-se inocente pela segunda vez, sem alterar a voz. Na terceira oportunidade, valeu-se do tempo gasto com a tradução do hebraico para o alemão para uma rápida anotação. Depois, voltou à posição anterior, semelhante à do primeiro dia do julgamento: olhar fixo nos juízes e no emblema do Estado de Israel acima da mesa da presidência. Suas negativas duraram 7 minutos e 26 segundos. O discurso acusatório de Gideon Hausner tornou-se célebre: “Não estou aqui sozinho perante os senhores, juízes de Israel, para acusar Adolf Eichmann. Cercam-me, neste momento, seis milhões de acusadores. Mas eles não podem apontar para esta jaula de vidro e exclamar para o homem que está ali dentro: “Eu acuso!”. Suas cinzas estão nas colinas de Auschwitz e os rios da Polônia as espalharam por toda a Europa. Serei, portanto, o porta-voz desses mortos e é em nome deles que pronunciarei a acusação”. Naquele momento, Eichmann apertou os lábios. Foi uma reação quase imperceptível. Hausner prosseguiu: “A história do povo judeu sempre foi marcada por lágrimas e sofrimentos”. Ele falava sem gesticular. Mantinha as mãos cruzadas atrás das costas, fazendo com que projetasse seu corpo para frente: “O assassinato é inerente à raça humana desde que Caim matou Abel. Não é um fenômeno novo. Mas tivemos que esperar até o século vinte para testemunhar, com os nossos próprios olhos, uma nova forma de assassinar. Neste julgamento também encontramos um novo tipo de assassino. O indivíduo que cumpre o seu ciclo de sangue sentado em uma escrivaninha e ocasionalmente comete um crime com as próprias mãos”. Eichmann, de súbito, pegou uma caneta e começou a escrever. O quê? Onde foram parar suas anotações? Até hoje não se sabe. As palavras do promotor enchiam o recinto do tribunal: “Esses assassinatos levaram ao conceito de um crime desconhecido nos anais da humanidade, mesmo em seus períodos mais tenebrosos: o crime do genocídio”. Creio ter sido no dia seguinte que Gideon Hausner levou um gravador para o tribunal. Quando mais uma vez, ao ser questionado por Servatius, o réu repetiu “eu estava cumprindo ordens”, o promotor pediu um aparte e botou o aparelho para funcionar. A voz de Eichmann ecoou no tribunal: “Eu mataria meu próprio pai se recebesse uma ordem para isso”. Hausner completou: “Isto é a revelação do que pensa um nazista não arrependido”. Em outra ocasião, Hausner de novo se valeu de um gravador ligado ao equipamento de som do tribunal para transmitir trechos do interrogatório conduzido por Avner Less. É a voz de Eichmann que se ouve: “O general Mueller me disse que estava havendo extermínio de judeus em Minsk e Lvov. Ordenou que eu fosse para lá e lhe remetesse um relatório. Em Minsk, vi como os soldados atiravam nas pessoas que caíam numa fossa. Senti meus joelhos tremerem”. – “A fossa estava cheia de cadáveres?” – “Sim, estava cheia. Voltei a Berlim e fui falar com Mueller. Disse-lhe que aquela não era a solução para o problema judaico. Não sei quem deu a ordem para que aquilo acontecesse. Só pode ter sido Himmler, que, decerto, recebeu instruções diretas de Hitler”. Preocupado em perceber em Eichmann qualquer sinal de emoção, um tremor de lábios que fosse, observei-o atentamente. Olhei para a galeria e o que vi foi de enternecer e apavorar ao mesmo tempo: um homem levanta os óculos até a altura da testa e enxuga as lágrimas que lhe escorrem pela face; ao lado, uma mulher soluça. Voltei-me na direção de outras pessoas que se enfileiravam na galeria. Era triste. Não havia um só rosto que conseguisse esconder o profundo sentimento causado pelas recordações que se avivavam na voz do carrasco, narrando com espantosa simplicidade os horrores de que havia participado. Pairou, então, sobre o tribunal uma indagação generalizada. Por que Hausner estava apresentando gravações nas quais Eichmann se defendia com tanta eloquência? Mas, o promotor sabia onde queria chegar. Quando os sobreviventes começaram a depor, a arenga de Eichmann ruiu. Ali estavam os homens e mulheres que haviam conhecido Adolf Eichmann como o assassino de Auschwitz ou de Treblinka, que tinha sido diretamente responsável por um número incalculável de crimes. – “Por que vocês não reagiram?” O promotor Gideon Hausner fez esta pergunta para todas as testemunhas sobreviventes dos campos de concentração. As respostas eram irrelevantes. Mas era necessária a indagação para mostrar à juventude nascida em Israel que a passividade não tinha sido absoluta. Depoentes narraram o que foram as rebeliões do gueto de Varsóvia, do gueto de Vilna e do campo de Sobibor. Os atos de bravuras, os sacrifícios até as últimas gotas de sangue despertaram nos sabras um inusitado sentimento de admiração por seus irmãos exterminados pelo nazismo. Cumprida esta etapa, a promotoria pôde dar por concluída a sua missão. Ao todo, fiquei seis semanas em Jerusalém cobrindo o julgamento de Eichmann. Tive raiva de mim mesmo quando percebi que a sua fisionomia e postura já me eram familiares. Afinal de contas, o que concluí a respeito dele? Que era um homem sem consciência fiel à sua consciência. Assim eu o vi durante o tempo em que estive a poucos metros da sua jaula de vidro. Estava nervoso? No primeiro dia, acho que sim. Procurou disfarçar o nervosismo? Nem por um segundo. Se em algumas ocasiões deixou-se dominar pela emoção, também não procurou disfarçá-la. Quanto aos trágicos depoimentos das testemunhas, considerou-as com um verniz de interesse ou, então, com total apatia. Karl Adolf Eichmann foi condenado à morte e enforcado no dia 1º de junho de 1962. Não descansa em paz. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista
Posted on: Thu, 07 Nov 2013 20:33:18 +0000

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