Em Defesa das - TopicsExpress



          

Em Defesa das Flores O amor que acende a lua Rubem Alves Lua Nova Em Defesa das Flores Quero lhe fazer um pedido, disse a voz feminina do outro lado da linha. Era uma voz agradável, musical, firme - de uma mulher ainda jovem. Sim? - eu perguntei de forma Iacônico-psicanalítica, não sem uma pitada de medo. Muitos pedidos estranhos me são feitos. Eu queria que o senhor escrevesse uma crônica em defesa das flores ... - Sorri feliz. As flores fazem parte da minha felicidade. Do outro lado da linha estava uma pessoa que amava as flores como eu. Na minha imaginação apareceram campos floridos: tulipas, girassóis, margaridas, trevos (sim, essa praga!). Versinho da Emily Dickinson: Para se fazer uma campina É preciso um trevo! uma abelha, um trevo, uma abelha e fantasia ... Masfaliando abelhas Basta a fantasia ... Sim, com trevos se fazem campinas floridas! - qualquer tipo de flor vale a pena ... Aí ela se explicou: Tenho dó das flores nas coroas funerárias. Eu queria que algo fosse feito para protegê-las, para impedir que aquele horror se fizesse a elas. Minha imaginação passou das flores livres dos campos para as flores torturadas dos velórios. Concordei com a Carolina (esse era o nome da mulher - jovem de oitenta anos). Não conheço nada de maior mau gosto que os velórios. Ali tudo é feio. Tudo é grosseiro. As urnas funerárias - falta a elas a simplicidade de linhas. Parecem-se com essas mulheres que se cobrem ele bijuterias - pensando que assim ficam bonitas. Os suportes metálicos, então, são horrendos. O saguão elo velório do Cemitério da Saudade, até a Última vez que fui lá, estava cheio de frases graves e amedrontadoras do tipo: Eterno e silencioso é o descanso dos mortos. Que coisa horrível! Pior que as piores visões do inferno! No inferno pelo menos há movimento. Mas no tal descanso eterno tudo é silencioso. A música e os risos estão proibidos. Eu ficaria louco na hora, teria impulsos suicidas. Mas a desgraça é que, estando eu já morto, me seria impossível dar cabo de minha vida. Aos múltiplos horrores estéticos junta-se o horror das coroas de flores. Comparem a beleza de uma flor, uma única flor, um trevo azul de simetria pentagonal, com o horror de uma coroa. Olhando para a florinha do trevo meus pensamentos ficam leves, flutuam. Olhando para uma coroa meus pensamentos ficam pesados e feios. Numa coroa todas as flores deixam de ser flores. Elas não mais dizem o que diziam. Não mais são o que eram. Amarradas, contra a vontade, num anel artificial, do qual pendem fitas roxas com palavras douradas. São, as coroas, de uma vulgaridade espantosa. Ali as não-flores só servem de enchimento para os nomes. Eu tenho uma teoria para explicar o horror estético dos velórios. Quem me instruiu foi a Adélia Prado. Diz ela: No cemitério é bom de passear. A vida perde a estridência, o mau gosto ampara-nos das dilacerações. E eu que nunca havia pensado nisso, na função terapêutica do mau gosto! Nem Freud pensou. A gente vai lá, com a alma doída, coração dilacerado de saudade, e o mau gosto nos dá um soco. A saudade foge, horrorizada, por precisar da beleza para existir - e o que fica no seu lugar é o espanto. Pronto! Estamos curados! O mau gosto exorcizou a dilaceração. Foi precisamente isto que aconteceu com uma amiga minha. Foi ao velório de uma pessoa querida para chorar. Aí o oficiante (se foi padre ou pastor não vou dizer) começou a falar. E as coisas que ele disse foram de tão horrível mau gosto que sua alma foi se enchendo de raiva por ele, e a dor pela amiga morta se foi. Os velórios são ofensas estéticas que se fazem aos mortos. Velórios deveriam ser belos. Camus, no seu estudo sobre o suicídio, diz que o suicida prepara o seu suicídio como uma obra de arte. Não sei se isso é verdade. Mas sei que cada um deveria preparar o seu velório como uma obra de arte. “Beber o morto” - essa é a expressão que se usa em algumas regiões do Brasil para designar o ato de beber um gole de pinga em homenagem ao falecido. Costume certamente inspirado na eucaristia, que é o ritual no qual se bebe um copo de vinho em homenagem a Jesus Cristo. Acho que um velório deveria ser assim, uma refeição antropofágica em que se servem aquelas coisas que o morto mais amava. Poderíamos, assim, definir um velório como um ritual no qual se serve a beleza que o morto gostaria de servir. Os vivos, amigos, têm de garantir que a sua vontade seja realizada......
Posted on: Tue, 26 Nov 2013 01:40:41 +0000

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