Entrada 1 Sinto-me estúpido a escrever neste caderno de capa preta. Nunca tive diários, nem em adolescente mas no último jantar de Natal do laboratório, fizemos uma coisa intimista e a minha amiga secreta foi a miúda americana, a Jennifer. Ofereceu-me este caderno. Há mil pensamentos na minha cabeça, por isso, peguei na esferográfica mas em vez de ordenar as ideias e explaná-las como tinha planeado dou por mim a pensar nas mensagens que Jennifer troca com Armand no laboratório. Eles julgam que não percebo porque sou distraído. Gostava de saber se eles estão apaixonados ou se o fazem para passar o tempo. Talvez se trate de um jogo, talvez a minha assistente se sinta sozinha em Paris e as mensagens preencham o oceano da solidão que a separa dos Estados Unidos e da família (esta frase ficou pirosa, não consegui evitar. Sempre que quero escrever qualquer coisa com estilo, saem-me tiradas vulgares). O Armand é um amigo, trabalhamos juntos há anos, talvez por isso eu esteja curioso. Nunca lhe conheci uma amante, um caso que fosse, aliás o meu amigo é muito discreto e nunca discutiu assuntos íntimos comigo. Mas isso não significa que ele tenha uma vida secreta. Como é que eu sei? Vamos a factos: a) Trabalhamos juntos no laboratório há mais de dez anos e passamos mais de dez horaspor dia a testar hipóteses à exaustão. Imagino a reacção das pessoas que peguem neste caderno e tentem decifrar a minha caligrafia miserável. Vão perguntar se eu sei para onde vai Armand depois do trabalho, com algum sarcasmo talvez. b) Invariavelmente, desde que nos conhecemos ele telefona à Isabel (a Isabel é a mulher dele) antes de sair para combinarem o que vai ser o jantar. Se o meu amigo tivesse amantes ou alguma coisa a esconder não ligava à mulher a denunciar diariamente o horário de saída. Admito que não sei da vida dele ao fim-de-semana mas as estatísticas mostram que a maioria dos casos amorosos ocorrem entre colegas de trabalho. Muitas vezes o Armand reencaminha-me links de estudos de colegas de outros países ao fim-de-semana. Costuma, também, contar-me as actividades de lazer ou os livros que lê nos tempos livres. Sei que passa tempo em casa e quando sai fá-lo com a Isabel. Já tive oportunidade de confirmar com ela. Não encontro uma explicação racional para as mensagens que o Armand troca com Jennifer no laboratório mas serão extra profissional. Não era sobre este assunto que eu queria escrever a minha primeira entrada no diário de capa negra que a rapariga Americana me ofereceu. Este diário devia começar assim: (vamos esquecer as mensagens dos meus colegas do laboratório, para já). Ontem Antoine Brevet tocou à campainha da minha casa. Apareceu sem se fazer anunciar. Tive que o enganar com a verdade, com uma parcela considerável de verdade. Ele contava criar-me embaraço suficiente para me obrigar a revelar os segredos do programa Frente e Verso.
Posted on: Sun, 29 Sep 2013 16:13:14 +0000
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