Entre a “comunicação” e o “trabalho” Não é um - TopicsExpress



          

Entre a “comunicação” e o “trabalho” Não é um discurso novo. Aliás, é o que leva a confrontar, grosso modo, duas concepções sobre o capitalismo contemporâneo no amplo espectro do pensamento de esquerda, e que podem ser sintetizadas na oposição entre os paradigmas da produção e da comunicação: o primeiro considera a permanência da luta de classes, que tem como centro a questão do trabalho; o outro a despreza e sugere que a categoria de “exploração” não se aplicaria mais às sociedades avançadas. É uma longa discussão, que não cabe neste espaço, mas é importante ressaltar que esse paradigma da “comunicação” – e, por extensão, da “cultura”, desvinculada do “trabalho” – faz muito sucesso em vários setores da academia, notadamente nas escolas de Comunicação. “Comunicação” e “cultura” são conceitos que apelam a sensibilidades, subjetividades, afetos – em suma, são tudo de bom e sugerem liberdade, enquanto “trabalho” é algo associado a sacrifício. Não é agradável pensar que tudo o que produzimos e consumimos custa trabalho. Melhor ignorar. Embora seja difícil pensar em “ressignificar” a situação muito objetiva de quem está desprovido de seus meios de subsistência. Além dessa questão de fundo, impressiona a facilidade de adesão à ideia de que o Fora do Eixo estaria inaugurando relações de convívio comunitário. É no mínimo uma injustiça para com o ideário hippie e da contracultura dos anos 1960-70. Isso se não quisermos invocar exemplos que remontam a utopias do século 19. As ilusões da transmissão “em fluxo” Como já comentei neste Observatório, o jornalismo produzido pela Mídia Ninja tampouco é algo novo, embora tenha sobressaído na cobertura das manifestações de junho e julho ao recuperar o melhor da tradição da reportagem de rua, testemunhando e transmitindo ao vivo os conflitos e a violência durante as manifestações. Nesse sentido, atuou como fundamental elemento de denúncia contra a truculência policial. E, ao assumir claramente um lado, contestou na prática a hipocrisia da imparcialidade como valor para o jornalismo, assumido formalmente – mas apenas formalmente – pelas grandes empresas de comunicação, e há muito tempo contestada em estudos acadêmicos. No entanto, o entusiasmo com que se vem acolhendo essa iniciativa tende a levar a uma falsa dicotomia entre a “velha” mídia e esse admirável mundo novo de múltiplos celulares de última geração a documentar e disseminar em “tempo real” o turbilhão de acontecimentos. Como se o jornalismo se resumisse ao testemunho e ao imediato. Pelo contrário: jornalismo exige apuração – que obviamente vai muito além do testemunho – e edição. Editar é fazer escolhas criteriosas: exige distanciamento para avaliar e dar algum sentido ao que se passa. Editar exige bem mais que o ímpeto e a coragem de se misturar à multidão: exige qualificação. E dá trabalho. Muito trabalho. A defesa de uma transmissão sem edições, “no fluxo”, se baseia na ilusão de que não haveria filtros, quando o primeiro filtro, elementar, está no próprio lugar de onde se documenta qualquer cena. Valeria a pena, aliás, recordar exemplos em que a mídia tradicional atuou nesse fluxo contínuo, como o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, a prisão do casal Nardoni, em São Paulo, e o sequestro e morte da jovem Eloá Pimentel, em Santo André: em todos esses casos multiplicaram-se as críticas à espetacularização dos acontecimentos. Não caberia a mesma crítica agora, especialmente quando certos grupos mascarados produzem imagens impactantes em suas performances pirotécnicas? Ou a crítica varia conforme a natureza dos acontecimentos? O que significa, afinal, esse movimento de trazer o espectador para “dentro” da cena? A ética e o mundo das redes Há quem diga, entretanto, que ações como a dos Ninjas – apesar do significado do “J” do acrônimo – não devem ser reivindicadas como jornalismo (ver aqui), pois são “narrativas” que transbordam o exercício da reportagem. Talvez o problema, aí, esteja no que se classifica como reportagem: talvez se esteja lidando com cânones estreitos demais para enquadrar essa atividade. Além disso, é preciso considerar o status que protege, ou deveria proteger, o trabalho jornalístico: não é casual o grito de “imprensa!” diante da violência policial ou da ameaça de prisão durante as manifestações. O problema é que, quando se pretende fazer jornalismo, é preciso respeitar determinados princípios éticos. E aqui reside talvez a principal questão com a qual nos confrontamos nesses tempos de “nova mídia”. Há tempos, tratei desse tema em artigo acadêmico reproduzido neste Observatório (ver “Encruzilhadas da ética em tempos de ‘nova mídia’“): de fato, vivemos num contexto em que a imprensa perdeu a exclusividade no relato dos acontecimentos que podem ter influência pública. Isso costuma ser comemorado por todos os que, com razão, condenam a deturpação das informações pelos grandes conglomerados de mídia, mas o outro lado dessa história é preocupante: se “todos” podem divulgar “tudo” através da tecnologia digital, perdemos os parâmetros de referencialidade que a imprensa anteriormente prometia. De fato, hoje, qualquer informação – verdadeira ou falsa, fidedigna ou não – pode circular amplamente e produzir efeitos, às vezes deletérios. A nova realidade das redes não cancela os velhos mecanismos de formação de opinião, que terão tanto mais sucesso quanto menor for a capacidade de discernimento de quem se expõe ao que circula no espaço virtual. São questões que não podemos esquecer quando tentamos compreender o mundo contemporâneo e vislumbrar para onde caminhamos. ### Em Tempo: Na noite de segunda-feira (12/8), outra manifestação em frente ao Palácio Guanabara acabou em violência. A Mídia Ninja transmitiu em quatro links. “Caralho, galera! Vai dar merda, hein? Bomba de gás, spray de pimenta! Caralho, galera!”, era como um dos rapazes transmitia. A galera, naturalmente, só podia intuir o motivo de tudo aquilo. Dentro do palácio, após audiência com o vice-governador, um grupo de professores da rede estadual, em greve desde quinta-feira (8/8), resolveu ficar. Acabou expulso pelos policiais. Um dos ninjas estava lá. “Tá meio tenso, mas tá tudo bem. (...) Estão jogando pedra aqui dentro, aparentemente...” No meio da gritaria, sobressai a voz de uma mulher, mais exaltada. “Tá empurrando por que, cara? Não empurra! Larga ela! A violência começa de vocês! Covarde! Co-var-de!”, e logo a seguir o coro: “Fas-cis-ta! Fas-cis-ta”. E o ninja: “Estão batendo aqui nos professores, aqui no Palácio da Guanabara (...), Mídia Ninja apanhando, policiais batendo no Mídia Ninja, estão empurrando a gente aqui, Mídia Ninja apanhando, sendo expulsa...” O trecho do vídeo foi divulgado no Facebook, mas as imagens não permitem ver nada além de um tumulto, que não se entende por que começou (ver aqui). É assim, entre exclamações de espanto e protestos, que se constrói a narrativa “independente”. Afinal, o que se passa? Tumulto, agressões, violência – mas por quê? Explicar o que acontece parece dispensável. Basta mostrar e excitar-se, para excitar e provocar uma indignação difusa em quem vê. Pensando bem, quem diz que as narrativas da Mídia Ninja não são jornalismo tem razão. Não são mesmo. Aquele “J” do acrônimo, o que faz ali? *** Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Posted on: Wed, 14 Aug 2013 01:49:28 +0000

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