"Eu me despedi de meu amigo. Meu amigo bonito, que tem olhos - TopicsExpress



          

"Eu me despedi de meu amigo. Meu amigo bonito, que tem olhos castanhos. Olhos bons, porque refletem sua bondade infindável, mas bons também porque olham o mundo com bondade, com tolerância, com amor. * Eu me despedi de meu amigo depois de muitos e muitos cafés, depois de muitos cigarros, depois do tanto que foi dito, do tanto que não foi. Porque meu amigo e eu não dizemos tudo, nós nunca dizemos tudo, nunca, como num filme, como num filme, como num filme, há o que, por não ser dito, cresce ou se fortalece, meu amigo e eu nunca dizemos tudo. * Meu amigo me permite silêncios, o silêncio ao lado de quem se ama é tão necessário - e revelador – quanto a conversa, as gargalhadas, meus pequenos rituais para acender e apagar o cigarro, o meio sorriso que entorta sua boca enquanto me debato: "ele gostou, ele não gostou, ele está com sono, ele está de saco cheio". Eu me despedi de meu amigo moreno, seus doces olhos castanhos, sua boina parisiense, boa demais para esta cidade suja, e embarquei no meu carrinho velho, baço, barulhentinho, senti o volante com as mãos e me esqueci de para onde eu deveria ir. Eu deveria ir. Eu deveria mesmo ir. * Eu ia para casa. A minha casa que já não existe, as prateleiras que já não tenho, o jardim que nunca fizemos, os quartos, as portas, paredes derrubadas e erguidas, os prédios que já eram outra cidade vistos da janela de nossa sala, as coisas que iríamos fazer. Nunca vou me perdoar por ter me permitido tanta segurança, tantas certezas. Quero a bondade de meu amigo e acreditar no poeta que ele ama, que esta é a vida que você, sonhando, inventa para mim. Mas, você sabe, não sou boa, nunca pude ser, e se amo o mesmo poeta que meu amigo, não posso acreditar no que ele acredita. Eu não posso. Eu não posso. Mesmo. Eu não posso. * Eu me despedi de meu amigo, fiquei com vergonha de chamá-lo para minha aventura de dirigir a esmo, fiquei com vergonha de ser tão banal, tão jeca e de gostar de passear de carro sem destino, tão tola. Tive vergonha de meu amigo, de contar para ele que sou tão dispensável – não tenho para quem ou para quê voltar. Tive vergonha de dizer isso a ele. * Entrei no carro e não tinha para onde ir. Naveguei pela avenida tão velha, tão iluminada, pensei tanto em você enquanto chorava na Avenida Paulista ontem de noite, as luzes acesas, todo mundo tão bonito, e eu dirigindo a esmo, sabe, eu ali, sem ter para onde ir. Dirigi pela Lapa, por Perdizes, subi, desci a Vila Madalena e Pinheiros, subi e desci pelas Marginais, queimei uma gasolina louca, falei muito sozinha, cantei um monte de vezes a mesma música, pensei na minha amiga Silvana, ela vai gostar dessa música, eu pensei, e pensei em você, em como passou tudo tão rápido, em como tudo acabou e no tanto que já dissemos, em tanto que dividimos. * Meu amigo havia me perguntado onde eu gostaria de viver se tempo, dor, dinheiro e governo não fossem um problema, e eu não soube responder. Eu não soube. Não soube dizer se gosto de casa, de apartamento, se de campo, se de mar, se dum resort, se dum submarino, se do castelo prometido pela revista ou dum sobrado no Brooklyn. Eu não gosto de nada, disse a ele, eu não gosto de nada e não quero ir a lugar nenhum. Meu amigo, que além de bom, ainda é, ele mesmo, um poeta, disse que isso é porque eu e meu coração não estamos no mesmo lugar. * E quando foi que estivemos, quando? Quando foi que tive meu coração e a mim mesma na mesma sala, no mesmo espaço, no mesmo mundo? Só quando pude, só quando pude, só quando pude encostar meu ombro ao seu, olhar na mesma direção, beber suas palavras, aprender seus códigos, entender suas piadas, olhar a vida através de suas lentes, cantar as suas notas, viver do seu sonho e inventariar suas sardas, meu bem, meu bem, meu bem."
Posted on: Sun, 18 Aug 2013 05:45:13 +0000

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