Excelente, imperdível!! A pele que (não) habitamos Por - TopicsExpress



          

Excelente, imperdível!! A pele que (não) habitamos Por Paulo Gleich Comemora-se nesta quarta-feira, dia 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra. É uma data comemorativa bastante nova: foi criada em 2003 como parte do calendário escolar, e faz apenas dois anos que figura no calendário oficial do país. Em muitas cidades e estados decretou-se feriado; não é nosso caso aqui em Porto Alegre, ao menos por enquanto. A data foi escolhida por ser o dia em que morreu Zumbi dos Palmares, líder quilombola que lutou pelos direitos dos negros no século XVII, dois séculos antes desses direitos começarem a existir, pelo menos legalmente. A escravidão foi oficialmente proscrita no Brasil há mais de cem anos, mas os efeitos de sua existência durante séculos não se extinguiram com ela. Libertos das correntes, um abismo seguiu separando, na maioria dos casos, negros de brancos. Livres, porém à margem da cidadania, a maioria dos ex-escravos e seus descendentes encontrou a única forma de seguir viva no trabalho braçal e mal-remunerado, quando não na delinquência. Se antes ter um escravo era luxo para poucos, dispor de mão-de-obra para os afazeres domésticos passou a estar ao alcance de muitos. A senzala virou dependência de empregada, o pelourinho foi substituído pela ameaça do desemprego e da miséria. Na história do Brasil, os negros cumpriram não apenas o papel concreto de mão-de-obra dos privilegiados. Psiquicamente, constituíram um dos lugares de dejeto, daquilo que como sociedade negamos e convenientemente depositamos em determinados grupos ou indivíduos para manter branca e limpa nossa consciência. Ao longo da história, os negros carregaram, além dos fardos de cana-de-açúcar e das crianças bem-nascidas, qualidades socialmente indesejadas: malemolência, promiscuidade, falta de confiabilidade, incapacidade intelectual, e por aí vai. Houve períodos – e ainda não estamos livres desse perigo – que sua suposta inferioridade foi inclusive corroborada pela ciência, justificando a manutenção de sua condição de marginalidade. A condição de dejeto se fazia explícita na linguagem, na forma como socialmente eram referidos os negros. Não faz muito tempo, frases como “negro de alma branca” e “é negro, mas é boa gente” eram proferidas e escutadas sem causar estranhamento. O mesmo acontecia com formas mais ou menos explícitas de discriminação, de xingamentos a piadas. Essas e outras práticas discriminatórias passaram a ser crime inafiançável somente na última Constituição do Brasil, no final do século passado, cem anos após a Lei Áurea. Mas temos assistido ultimamente a um retorno desse bullying explícito, na voz de comediantes que se valem do coro contra o “politicamente correto” para praticá-lo. O argumento do cerceamento à liberdade de expressão de que lançam mão é falacioso: não se trata de fazer humor com um tema tabu para interrogar seus meandros – que é o que o “politicamente correto” pode acabar inibindo. Apenas repetem-se as ofensas que foram proibidas e que todos os demais, não-comediantes, continuamos não podendo fazer sob pena de sermos condenados pela lei. Essas atitudes, porém, têm sido criticadas; quem pratica esse racismo “engraçadinho” tem descoberto que o manto do humor não confere a imunidade que lhe atribuíam. Mas é preciso ir além de condená-los: precisamos interrogar o que estão a dizer da questão étnica na atualidade. Acredito que esses humoristas são porta-vozes de algo que, por ter sido calado, não deixou de existir: o racismo segue correndo, mais ou menos conscientemente, em nossas veias. As mudanças psíquicas não seguem o ritmo das sociais, o que se proíbe com as leis não é eliminado das subjetividades. Podem-se banir as práticas discriminatórias mais explícitas, mas isso não extingue o racismo, que segue existindo de formas mais quietas, insidiosas, não por isso menos nocivas. Tive notícias disso no começo de minha formação como psicólogo. Estagiei em um serviço público de saúde mental que, portanto, atendia majoritariamente pessoas sem condições de pagar por tratamentos particulares. Trabalhar com a loucura ensina, entre muitas coisas, sobre as feridas no tecido social, sobre as doenças, muitas vezes silenciosas, que fazem parte da coletividade. Um dos fatos que mais me chamou a atenção foi que a cor da pele era um elemento frequente em delírios de pacientes negros e pardos. É assim que se apresentam as insuportáveis dores da loucura: de tão sofridas, não podem ser faladas e compreendidas, aparecem como se viessem de fora, através de alucinações e ideias delirantes. O retorno insistente da questão da cor da pele fazia pensar que, longe de ser uma questão resolvida, o racismo é uma dessas patologias insidiosas que seguem vivas, mesmo que não mais tão faladas. Não é só o “politicamente correto” que vem enfiando tolerância goela abaixo aos que ainda insistem em pensar a questão da desigualdade racial apenas a partir de seus umbigos, estes geralmente brancos. O sistema de cotas raciais, já menos polêmico que à época de sua implantação, vem inserindo um colorido no monocromático que reinava até então nas universidades públicas – aquelas que são supostamente para todos, mas cujas cadeiras eram quase que exclusivamente ocupadas por brancos, ao menos em nossa cidade. Não é uma solução para a questão da desigualdade, mas o que foi obtido talvez tivesse demorado mais cem anos, se não mais, se deixássemos seguir seu “curso natural”. Com medidas como essa não se trata, porém, apenas de assumir frente aos descendentes da escravidão uma posição reativa, motivada pela culpa e, pelo avesso, perpetuadora da diferença entre uns e outros, algozes e vítimas, cada qual com seu peculiar gozo. Mudanças sociais profundas levam tempo, doem aqui e acolá e precisam da sustentação do poder público como “educador”, na falta da reflexão espontânea como seu motor. As medidas que vêm sendo encontradas comportam falhas e críticas, mas protelar a ação enquanto não se descobre uma forma “ideal” de mudar é manter, pela omissão, o status quo. Criticam-se as medidas como sendo apenas paliativas, esquecendo que os paliativos são às vezes o único recurso possível para tratar uma doença cuja cura ainda não foi descoberta. Um dos norteadores dos direitos humanos é o ideal de igualdade, de que independentemente de qualquer peculiaridade de sua condição, qualquer ser humano tem os mesmos direitos que os demais. Esse ideal não almeja apenas condições sociais iguais para brancos e negros, e sim um horizonte onde a cor da pele seja apenas uma característica qualquer, como a cor dos olhos, e não uma marca carregada de dor que, em seus casos mais extremos, precisa da loucura para encontrar expressão. A inclusão do Dia Nacional da Consciência Negra em nosso calendário talvez não mude muito na concretude da situação, mas pode ajudar a lembrar que essa é uma questão longe de estar resolvida. Entender o outro, o diferente, vai muito além de nos imaginar em seu lugar – até porque isso é impossível, jamais saberemos como é vestir a pele do outro: é preciso dar voz e ouvidos ao que ele experiencia. Mas, sobretudo, é preciso escutar, e muito atentamente, o que a presença do diferente faz falar em nós: ele sempre carrega muito mais de nós mesmos do que, à ligeira, imaginamos. Em tempo: está em cartaz na cidade Lore, um filme sobre o encontro de uma filha de nazistas com um rapaz judeu. Um belo exemplo sobre a fragilidade do preconceito, sempre uma maneira de evitar o encontro radical com o outro e consigo mesmo. Paulo Gleich é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre- APPOA; jornalista.
Posted on: Wed, 20 Nov 2013 23:16:00 +0000

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