Já fui a favor à vinda de médicos cubanos, já fui contra o - TopicsExpress



          

Já fui a favor à vinda de médicos cubanos, já fui contra o “Mais médicos”, agora chegou a hora de ser Raphael. Os médicos representam uma classe vista como elitista e conservadora, que muitas vezes como um todo (chamo de todo aquilo que emerge da soma das partes e não é igual às partes) acaba defendendo um modelo de saúde que coloca sua própria figura no centro da equipe de saúde, um modelo paternalista que só consegue dizer o “tu deves” ao paciente e um modelo que privilegia a superespecialização e o atendimento hospitalar e ambulatorial, em detrimento do atendimento na atenção básica e do uso dos demais recursos de saúde. Elitista pelos próprios componentes predominantes da classe, pessoas com poder aquisitivo maior que a média da população, que estudaram em escola particular e tiveram mais chances de passar no vestibular. É possível fazer uma analogia entre a reação da classe médica aos “Mais médicos”, e vinda dos cubanos, com a revolta paulista de 1932. Uma revolta de uma classe dominante, uma oligarquia, frente à perda de poder. As entidades médicas muitas vezes parecem colocar os interesses da classe acima dos interesses da população como um todo. Assemelham-se por vezes a ordens medievais fechadas, detentoras de um saber que só podem compartilhar parcialmente com os demais, e dizem “isso é coisa do médico, isso outras pessoas não podem fazer”. A posição de detentora de um saber supremo autoriza então a classe médica a legislar sobre o que os outros devem ou não devem fazer, o que podem ou não podem comer, como devem dormir, como devem acordar, como devem transar. O poder que sente é de tal ordem que vende a ideia de que o sofrimento do dia a dia pode ser curado com uma pílula. O médico é aquele que luta contra “a natureza”, e, em última instância, luta contra a principal certeza que temos na vida, a morte. Mas também é aquele que, ao não reconhecer os seus limites, deprime por perceber que não é onipotente. No Brasil temos uma imensa massa de médicos que, ao final da sua formação (seja em instituição pública ou particular), opta por dedicar mais tempo a sistemas privados de saúde, por motivos diversos. Uma massa que já na sua própria formação encara trabalhar no SUS como um favor que faz à sociedade ou uma caridade, não uma obrigação, ou melhor, uma parte do seu próprio trabalho. Cuba tem um sistema de saúde fortemente baseado na atenção primária e poderia nos ensinar um pouco como eles fazem a sua medicina de família e comunidade. Temos uma imensa carência médica no interior do país, que poderia ser minimizada com a vinda de profissionais de lá. Profissionais esses que dedicam toda sua carreira a um único sistema de saúde e conseguem ter uma carreira estatal que propicie o trabalho em causas humanitárias. Com a chegada dos médicos cubanos temos então uma admissão de que os brasileiros não foram competentes e/ou suficientes para suprir a demanda de nossa população, abrindo uma ferida narcísica. O “Mais médicos” representa um grande acontecimento na política de saúde pública nesse país. Tinha 5 anos quando o SUS nasceu e 11 quando começaram a implementar o Programa Saúde da Família, portanto, essa é a maior discussão sobre saúde pública que consigo acompanhar ao vivo. Desde que ingressei na medicina, não me lembro de outro momento em que o governo tenha de fato feito um programa em larga escala focado na atenção primária e propagandeado tanto isso. Além disso, a vinda dos cubanos põe em xeque uma série que coisas que haviam sido naturalizadas. Como o fato de que médico tem que pertencer a uma elite, deve ser branco, bem sucedido e andar em carrões, e o fato de que quem é mulher e negra tem “cara de empregada”. Com toda essa discussão e (possível) desidealização da figura do médico, passa a ser questionado então se ela seria detentora de todo o saber mesmo ou se é mesmo uma espécie de divindade acima do bem e do mal. Questiona-se também o privilégio dado pelos médicos à atenção privada. Por outro lado, o programa “Mais médicos” não é isento de críticas. Junto ao programa veio uma propaganda pesada de demonização da figura médica, passando-a assim do céu ao inferno e isso trouxe consequências. Ao considerar o todo como igual às partes, a crítica passou a ser dirigida a todos os médicos. Passamos a ter então médicos, que gostam de trabalhar no SUS e que sentem que se sacrificam diariamente em prol de um bem maior, desmotivados, pois se viram acusados de serem playboys desalmados e mercenários. A consequência dessa desmotivação eu vi pessoalmente com a saída de médicas da unidade onde trabalho. A sensação de muitos é a de que não vale a pena lutar pelo SUS ou trabalhar na atenção básica, pois só receberão cobranças e nenhum reconhecimento. (Bom, isso eu vejo também com os outros profissionais de saúde nos grupos terapêuticos que faço com auxiliares de enfermagem e agentes comunitários...) Uma das médicas que saiu da unidade foi também vítima de uma reportagem sensacionalista promovida por uma emissora de televisão que não procurou ouvir o seu lado. Penso então: que fábrica de mercenários é essa, a chamada faculdade de medicina, de onde saem Che Guevara e Guimarães Rosa? E também: será que só as entidades médicas que são classistas? Os sindicatos de outras classes defendem o que? O programa foi lançado, também, em um momento em que o governo Lula/Dilma enfrenta a maior manifestação de insatisfação popular da sua história e em que uma das demandas sociais é por saúde de qualidade. Manifestações que parecem ter pegado a classe política de surpresa e sem saber como agir, lançando assim propostas improvisadas. Fica assim essa impressão de ser eleitoreiro, pois após todos esses anos no poder só agora se resolveu falar em grande escala sobre atenção básica e sobre assistência às populações carentes de saúde. Além disso, o programa fere a CLT e propõe um contrato de trabalho precário aos que quiserem aderir. Então se questiona como é possível fixar o profissional no interior com um contrato com prazo de validade de 3 anos, sem garantias trabalhistas básicas e com tantas incertezas. Temos um histórico em que médicos vão para o interior com a promessa de receber grandes salários e então recebem calote e de que as regras do jogo mudam dependendo do plano eleitoral. Portanto, faz sentido a insegurança dos que relutam em aderir. Será que mais médicos não participariam do “Mais médicos” se o contrato de trabalho fosse outro ou se fosse proposto um plano de carreira? E aí, seria justificada a vinda de 4.000 cubanos? Temos também nessa história toda que o mesmo Estado que defende a saúde pública é conivente com a privatização dos serviços de saúde através das OSSs. Elas também deterioram as relações de trabalho com o SUS. Eu penso em trabalhar na área da saúde pública desde os tempos de faculdade, mas, para entrar hoje em uma favela e levar alguma assistência, tive que virar um “colaborador”. A sensação de pertencimento ao SUS fica prejudicada. Para quem trabalho? Para uma instituição privada ou para o Estado? Quais princípios devo seguir primeiramente, os da instituição israelita ou os do SUS? As OSSs reforçam a lógica do capital na área da saúde, em que funcionários viram colaboradores de uma empresa e devem torná-la lucrativa. Na lógica do capital, saúde deixa de ser um direito, não é para quem quer, mas para quem pode (pagar). A lógica do capital também se instala na saúde pública quando esse mesmo Estado cede ao lobby dos planos de saúde e permite que diretores da ANS tenham conflitos de interesse e relações íntimas com os planos. Lobby esse que faz com que a saúde suplementar torne-se a principal e o SUS um apêndice dela. Que naturaliza o fato de que o que é público é ruim, não funciona, e que para ter acesso à saúde de qualidade deve-se ter um plano de saúde. Que diz que o que é administrado pela iniciativa privada é sempre melhor. Porém, na hora do vamo vê, o usuário dos planos também se depara com longas filas, além de um atendimento que visa mais a quantidade, em detrimento da qualidade. Como os planos de saúde não conseguem dar conta das demandas mais complexas, acabam encaminhando-as para o SUS e parasitando o mesmo. Parasitismo que se dá também no subsídio oferecido pela dedução fiscal. Se todos (ricos e pobres) pagam impostos, seja de forma direta (IR) ou indireta (produtos), por que só os que podem pagar um plano recebem esse benefício da dedução? No fim os mais pobres estão pagando parte da conta dos serviços de saúde dos mais ricos. Outro ponto criticável do programa proposto pelo governo é o montante de dinheiro enviado a Cuba. Se vivemos em uma república democrática, por que financiamos e incentivamos uma ditadura? Por que se critica tanto a exploração de trabalhadores na China e não se pode criticar o salário pago aos médicos cubanos? Não existe mocinho ou bandido. Médicos brasileiros, médicos cubanos, governo, capital, nada disso é bom ou mal em si. Não existe o Bem e o Mal absolutos (Deus e o Diabo). As coisas são boas ou ruins para algo ou para alguém. Acho a analogia entre a reação médica e 1932 interessante. O que foi 1932, uma revolta da oligarquia, que queria retomar o poder perdido, ou uma revolução que combatia um potencial ditador e exigia uma constituinte? Talvez as duas coisas. Uma vez iniciado o programa “Mais médicos”, não acho que ele deva ser interrompido, mas sim melhorado. Seria uma brutal falta de sensibilidade prometer assistência médica a quem não tem e, de repente, voltar a negá-la. Por que falo mais mal do que bem do governo Dilma? Oras, porque defendo a candidatura de Marina Silva para a presidência, pois acho que seria a alternativa mais viável frente à dupla PT-PSDB. Quando, após as manifestações de junho, a presidenta teve sua popularidade rebaixada e parecia perdida, pareceu-me um bom momento para criticá-la e enfraquecê-la. Assim é a política. Uma comparação possível é com uma luta de boxe ou MMA, quando o oponente leva um golpe e baixa a guarda é a melhor hora para tentar nocautear. No caso dos médicos cubanos, logo que anunciariam sua vinda (antes das manifestações) senti certa esperança de que algo melhor para saúde das populações periféricas poderia estar acorrendo. Depois os invejei, pois os vi se disponibilizando a irem para locais onde eu mesmo gostaria de ir novamente. Tive saudades do tempo em que estava na Amazônia e sentia que fazia algo de útil com a minha existência. Se estou arrependido com as escolhas que fiz? Não. A vida é feita de escolhas. Tenho hoje consciência que se os desejos podem ser infinitos, a capacidade de realiza-los e a vida não são. Porém, ao tomar um caminho, nada me impede de olhar para o lado e ver outros caminhos que poderia ter tomado.
Posted on: Wed, 04 Sep 2013 23:51:19 +0000

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