Médicos do Brasil: os colegas cubanos e a defesa do SUS (1) - TopicsExpress



          

Médicos do Brasil: os colegas cubanos e a defesa do SUS (1) Ter mais médicos no SUS, inclusive nas localidades onde hoje não existe médico algum, facilita a luta pelas demais condições, até porque a falta dessas condições fica mais evidente quando há médicos. Ter mais médicos do SUS também facilita a luta contra a privatização do setor, porque torna esta publicamente mais indefensável CARLOS LOPES Em debate no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), no último dia 4, o professor Paulo Hilário Nascimento Saldiva, titular de patologia da Faculdade de Medicina daquela universidade, afirmou, em sua excelente intervenção, que nas manifestações contra a chegada dos médicos cubanos, "existe um viés inclusive de racismo; médicos caíram na armadilha e começaram a vaiar cubanos; posso dizer, eu fiquei com vergonha de ser médico aqui. Se você quer vaiar, vai vaiar o andar de cima, esse pessoal que não molha os pés quanto tem uma enchente. (…) Esse pessoal do andar de cima vive num mundo que não diz respeito à maioria dos brasileiros". É verdade. No debate, não houve quem negasse essa chaga para a qual apontou o professor. Saldiva, que é patologista – e que tem, entre as suas qualidades, a de possuir um humor tipo Buster Keaton: é capaz de contar uma piada sem o mais leve vestígio de sorriso ou de que esteja falando algo engraçado – localizou o problema do SUS em sua constante sabotagem através da privatização: "A mesma privatização que ocorre na segurança quando você decide instalar uma guarita na rua porque tem medo da violência; quando a escola é ruim, você paga uma particular; quando o transporte ruim, o melhor é comprar um carro. Na Saúde, tem os planos de saúde. Esse processo de privatização branca vem desmontando o SUS". Diríamos até mesmo que o professor foi moderado em seu diagnóstico: sem nenhum demérito para a sua intervenção, o que está ocorrendo – e há pelo menos duas décadas – é, em nossa opinião, bem mais grave do que aquilo que ocorreu, por exemplo, na área da segurança. A privatização – do setor e da cabeça de alguns médicos – reflete-se no seguinte: "... quando se examina o percentual do gasto público em saúde verifica-se que ele é muito baixo e incapaz de garantir que a norma constitucional se materialize na prática social de modo a garantir o princípio da universalidade do SUS. (…) todos os países que estruturaram sistemas universais de saúde (...) apresentam uma estrutura de financiamento em que os gastos públicos em saúde são, no mínimo, 70% dos gastos totais em saúde. Por exemplo: Alemanha, 76,8%; Canadá, 71,1%; Itália, 77,6%; Holanda, 84,8%, Noruega, 85,5%; Reino Unido, 83,2%. No Brasil, o gasto público como porcentual do gasto total em saúde é de, apenas, 47%, inferior aos 53% que constituem o porcentual de gastos privados em saúde. Em geral, a segmentação dos sistemas de saúde se dá quando os gastos públicos são inferiores a 50% dos gastos totais em saúde. Nos Estados Unidos, país emblemático do sistema segmentado, esse valor é de 48,2%, bem próximo ao gasto público brasileiro. Com a estrutura vigente de gastos públicos em saúde não se pode pretender consolidar o SUS como direito de todos e dever do Estado" (cf. Eugênio Vilaça Mendes, entrevista a Samir Salman, "25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios", Estudos Avançados 27 (78), 2013, p. 31). O dr. Vilaça Mendes é, atualmente, conselheiro da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e foi secretário-adjunto da Saúde de Minas Gerais no governo Tancredo Neves. O que ele chama de "segmentação do sistema de saúde" é sua divisão em dois sistemas: um de baixa qualidade para as classes menos favorecidas e um "resseguro para procedimentos de alto custo para as classes médias e para os ricos". Completa ele: "Os gastos públicos em saúde em nosso país são muito baixos quando comparados com outros países em dólares americanos com paridade de poder de compra. O gasto total em saúde é de US$ 1.009,00, mas o gasto público per capita em saúde é de apenas US$ 474,00. Esse valor é muito inferior aos valores praticados em países desenvolvidos, mas é inferior a países da América Latina como Argentina, US$ 851,00; Chile, US$ 562,00; Costa Rica, US$ 825,00; Panamá, US$ 853,00; e Uruguai, US$ 740,00. A razão para esse baixo gasto público em saúde no Brasil está no fato de que os gastos em saúde correspondem a 10,7% do gasto do orçamento total dos governos, um valor muito abaixo do praticado em âmbito internacional, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Estima-se que o faturamento per capita do sistema de saúde suplementar brasileiro é três vezes superior aos gastos per capita do SUS". Voltaremos a esta questão, mas o importante a reter é que isso é o resultado de uma política de privatização, implantada ferozmente por Collor, Fernando Henrique, Serra et caterva, apesar da resistência dentro do SUS e entre os médicos - que redundou, inclusive, na demissão do professor Jatene do Ministério da Saúde. Jatene foi um dos participantes do debate no IEA-USP, no dia 4. UMA NOTA Porém, essa política de privatização é, também, uma política de privatização das mentalidades. Do mesmo modo que Saldiva, sou médico há 36 anos – mais exatamente, 35 anos e meio. É verdade que estou fora da clínica há alguns anos. Mas, numa profissão que é conhecida pelo enorme contingente dos que se dedicaram a outros afazeres, até que cliniquei bastante tempo. Cliniquei mais que o velho Clemenceau, que não foi apenas aquele primeiro-ministro francês reacionário (aliás, "radical-socialista") da I Guerra Mundial. Foi, também, o editor do L’Aurore que publicou o "Acuso", de Émile Zola, contra a farsa do julgamento e a condenação do capitão Alfred Dreyfus. Clemenceau era médico, eu sou médico, e o leitor ranheta, provavelmente, dirá: "e daí? O Antonio Carlos Magalhães também era – e pediatra, por mais que isso pareça inconcebível. Qual a importância que isso tem?". Pois é, leitor, o esforço de escrever sobre assuntos diferentes, às vezes exige um andaime – ostensivo, pois sempre há os ocultos – para a construção do texto. Não é filosofia de literato, amigo leitor, é a pura verdade prática. Sendo assim, comecemos e terminemos logo com essas recordações pessoais, que são apenas uma tentativa de obter alguma concentração mental. Já que estamos nessa fase, acrescento mais um parágrafo do gênero: sou da famosa turma de 1977 da Faculdade de Medicina da UFRJ (a bicentenária Nacional de Medicina, onde sou, hoje, o ex-aluno número 072130318, segundo o registro publicado pelo atual diretor, Roberto de Andrade Medronho). Sou, portanto, da turma que se recusou a comparecer às aulas de moral e cívica da ditadura (foram substituídas, lá pelo quinto ano, por um curso, até que interessante, de "problemas brasileiros"); que acabou com o bullying em cima dos calouros em 1973 (só acha que isso é frescura, quem não sabe o que aconteceu em 1972, aliás, com toda a proteção da ditadura); que saiu às ruas, com suas co-irmãs da UERJ, Medicina e Cirurgia e UFF, em 1976, na primeira passeata, desde a decretação do AI-5; que recusou-se a usar beca na formatura, como forma de mostrar sua identificação com o povo, em dezembro de 1977 (a turma colou grau com os mesmos jalecos e calças (ou saias) brancas que usava nos estágios de pronto-socorro, na quadra da Faculdade de Arquitetura, no Fundão); e, para terminar, a turma que tem vários integrantes da Academia Nacional de Medicina, um ministro da Saúde, uma grande atriz, um talentoso designer, dois dirigentes nacionais de partido político, dois campeões de tênis de mesa (favor não chamar de ping-pong), um ás do xadrez, um ex-prefeito, alguns escritores, artistas, professores de medicina e, naturalmente, algumas centenas de clínicos notáveis em todas as especialidades. Não havia SUS naquela época, mas tudo o que posso dizer é que a mentalidade privatista em Saúde nos parecia tão estranha que, quando aparecia um exemplar da espécie, todos concluíam que se tratava de um doido ou de um idiota. Por todas essas razões, achei estranha a nota da Congregação da Faculdade de Medicina da UFRJ sobre o Programa Mais Médicos. A Congregação, a propósito, não é formada pelos 476 professores da faculdade, mas por apenas 48 deles. Diz a nota que a congregação "considera equivocada a redução do complexo problema da saúde pública no Brasil à falta de médicos" e faz a seguinte consideração: "A essência da crise na saúde em nosso país deve-se fundamentalmente ao subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS), deficiências na gestão do sistema, problemas de organização e de infraestrutura da rede de assistência à saúde, ausência de uma política de pessoal adequada, associados ao estímulo que o Estado brasileiro confere ao setor privado de saúde, via isenções fiscais". O que está no parágrafo acima é verdade. A questão, portanto, é: existe ou não falta de médicos no SUS? Evidentemente, ao dizer que o "complexo problema da saúde pública no Brasil" não pode ser reduzido "à falta de médicos", a Congregação admite que há falta de médicos. Então, o problema passa a ser o seguinte: quem está reduzindo o problema somente à falta de médicos? Ou, dito de outra forma: em que colocar mais médicos para atender à população impede que se lute para resolver os outros problemas? Ou, ainda, de forma mais genérica: por que os problemas na área da Saúde não podem admitir soluções ou melhoras parciais? Será a Saúde a única área do governo (e talvez da vida) onde somente são admissíveis as soluções totais? Mas, se assim for, a Saúde estaria condenada a jamais ter solução nenhuma, ou melhora alguma, para todo o sempre. Aqui, não se trata nem mesmo da inversão esquerdista padrão, segundo a qual é somente resolvendo o problema total e final que se resolvem os problemas parciais - o velho desprezo pelos acúmulos quantitativos (conquistas parciais), que leva inevitavelmente a lugar nenhum. No caso, obviamente, ter mais médicos no SUS, inclusive nas localidades onde hoje não existe médico algum, facilita a luta pelas demais condições, até porque a falta dessas condições fica mais evidente quando há médicos. Ter mais médicos do SUS também facilita a luta contra a privatização do setor, porque torna esta publicamente mais indefensável. Sob um ângulo um pouco diferente, foi o que defendeu o professor Saldiva: "... a saúde passa por um processo de privatização branca. (…) Eu sou otimista. Embora eu seja patologista, eu sou otimista. Essa situação é insustentável. O que vai acontecer se o programa der certo? Ele será renovado? Nós vamos [continuar a] importar tudo? Se a gente virar as costas para o governo nesse momento, a gente vai estar falhando com a gente mesmo - e principalmente com o país". O segundo ponto da nota da Congregação ("seis anos são suficientes para uma formação de qualidade, sendo fundamental a inserção precoce no SUS com integração ensino e serviço, conforme proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, reforçando o compromisso social na formação de médicos generalistas e com visão humanista") pode ser discutido quanto à forma (o número de anos da graduação médica), mas não ao conteúdo, que parece idêntico ao da proposta inicial do governo. Como este já desistiu, através do ministro Mercadante, de aumentar o número de anos da graduação, nem vamos discutir esse aspecto. Aliás, o governo devia ter avisado que a proposta de aumentar a graduação médica em dois anos não era para valer – assim, teríamos economizado um pouco mais de energia para outras polêmicas... As propostas avançadas pela Congregação não são ruins: "1. Iniciar amplo processo de negociação para fortalecer o SUS, priorizando os graves problemas de saúde das populações com maior vulnerabilidade social. 2. Ampliar o orçamento da saúde e da educação, destinando à saúde 10% do PIB. 3. Criar um Plano de Cargos, Carreira e Vencimentos, e admissão mediante concurso público, para todos os profissionais de saúde do SUS, com estímulo para a fixação nos locais de maior vulnerabilidade social e isolamento geográfico. 4. Criar diretrizes, estratégias e meios para regulamentação e fortalecimento da relação das Universidades com o SUS nos distintos níveis de atenção, visando à formação de pessoal da área de saúde. 5. Ampliar as vagas para os cursos de medicina mediante o investimento em infraestrutura e recursos humanos das instituições públicas. 6. Ampliar as vagas para residência médica e multiprofissional, priorizando a formação em atenção primária e de especialistas necessários ao bom funcionamento do sistema de saúde. 7. Ampliar o acesso a equipes de saúde com infraestrutura adequada, priorizando as áreas de maior vulnerabilidade social." No entanto, existe um problema nessa nota, pela omissão: no momento em que alguns reacionários ou simplesmente histéricos desensarilham um anticomunismo que já era antiquado no período triássico – além do racismo, como bem lembrou o professor Saldiva – não é lícito refugiar-se em questões gerais para fugir do assunto que realmente está na berlinda. Conheço alguns dos membros da Congregação – nenhum deles, ao que eu me lembre, têm, pelo passado, direito a fugir dessa questão. IEA-USP Na última edição da revista do próprio IEA-USP, diz o professor Gílson Carvalho, ex-secretário de Saúde, por duas vezes, da Prefeitura de São José dos Campos: "Antes da discussão dos embates do financiamento quero fundamentar a assertiva de que o governo federal vem subfinanciando a saúde e que o Brasil gasta recursos insuficientes. (...) "Faço o demonstrativo de três evidências a partir de dados concretos mostrando o constante desfinanciamento federal. "1ª Evidência: o gasto federal per capita caiu entre 1997 e 2008 e só aumentou depois diante da ameaça da gripe suína. Em 1997 eram R$ 294 per capita. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, R$ 234, e em 2008, R$ 289. "2ª Evidência: entre 1995 e 2011 caiu o gasto percentual em relação à Receita Federal. Em 1995 o Ministério da Saúde teve disponível para suas atividades 11,72% da receita corrente bruta da União. Em 2011, esse percentual caiu para 7,3%. "3ª Evidência: a participação federal no financiamento da saúde pelas três esferas de governo veio caindo e aumentando a participação de estados e municípios. Em 1980 a participação federal era de 75%, a estadual, 18%, e a municipal, de 7%. Em 1991, 73% da União, 15% dos Estados e 12% dos municípios. Em 2001 a União continua diminuindo seu gasto agora representando 56%, os Estados, 21%, e os municípios, 23%. Já em 2011, a União apenas contribuiu com 47%, os Estados, com 26%, e os municípios, com 28% (cf. Gilson Carvalho, "A saúde pública no Brasil", Estudos Avançados 27 (78), 2013, p. 20/21). O professor Gilson participou da feitura do programa de Saúde na primeira eleição de Lula ("... depois de oito anos de mandato de FHC, as pessoas progressistas estavam prenhes de esperança de que o país mudasse e a saúde pública tomasse os rumos legais. Muitas foram as discussões e os debates sobre programa de governo para a saúde quando Lula se pôs em caminho. Não foram iluminados que fizeram o programa de governo do Lula, mas centenas de mãos, as mais diversas que tinham um objetivo comum: a construção do SUS constitucional"). Portanto, compreende-se a sua irritação ao analisar a situação dos "últimos 10 anos", mas, como ele mesmo diz, "a decepção é sempre diretamente proporcional ao tamanho da expectativa positiva que se tem". Nem por achar que o professor subestima um pouco as dificuldades que Lula enfrentou, estamos autorizados a não ouvir o que ele tem para dizer, até porque trata-se de um conhecido defensor do SUS. Sua conclusão sobre o desfinanciamento da Saúde é a seguinte: "Só não aconteceu o pior na saúde pública porque diante do subfinanciamento federal os municípios foram aumentando seus recursos muito acima do piso legal (15%) chegando a mais de 20%, e os Estados se aproximaram do piso legal de 12%" (art. cit., p. 24). Ele acrescenta alguns exercícios de raciocínio como evidências indiretas do que chama de "desfinanciamento" federal à Saúde: "Outro argumento que sempre mostro em meus estudos é sobre o baixo volume de recursos para a saúde pública das três esferas de governo. Faço algumas comparações que acabam sendo evidências do baixo gasto com saúde. Os dados brasileiros são de 2010 e os de outros países, de 2009, obtidos no anuário Estatístico da OMS – Organização Mundial de Saúde. "1a Evidência: podemos comparar os recursos gastos com saúde pública e os gastos per capita dos planos de saúde com seus beneficiários. Os planos de saúde gastariam R$ 298 bi para atender a toda população brasileira usando o mesmo per capita e sem oferecer todas as ações oferecidas pelo SUS, como as de vigilância, vacinação etc. Se o SUS em 2010 gastou R$ 138 bi, estariam faltando R$ 160 bi. "2ª Evidência: o gasto médio público como percentual do PIB dos países da OMS foi de 5,5%. O Brasil tem um gasto de apenas 3,7%. Se fôssemos usar o mesmo percentual seriam necessários R$ 210 bi, ou seja, mais R$ 72 bi dos atuais R$ 138 gastos. "3ª Evidência: se usarmos como ponto de comparação os gastos per capita dos países mais ricos do mundo, o Brasil teria necessidade de R$ 910 bi, ou seja, o sonho inatingível de serem necessários R$ 772 bi a mais de recursos. "4ª Evidência: se usarmos o per capita de países da Europa precisaríamos de R$ 543 bi, ou seja, R$ 405 bi a mais que os R$ 138 bi atuais. "5ª Evidência: se usarmos o per capita médio das Américas precisaríamos de R$ 538 bi, ou seja, R$ 400 bi a mais que os atuais R$ 138 bi". Se o problema fosse somente orçamentário, seria gravíssimo. Mas, na próxima edição, veremos que ideologia esteve colada a esse descalabro financeiro. Continua na próxima edição
Posted on: Thu, 12 Sep 2013 03:08:44 +0000

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