O Catalão Era mestre-curtidor, no curtume de meu pai, em Belém - TopicsExpress



          

O Catalão Era mestre-curtidor, no curtume de meu pai, em Belém do Pará. Eu tinha oito anos, ele teria trinta e cinco ou quarenta - não sei. Chamavam-no "o Catalão". Usava um grande avental de couro que lhe batia nas pernas e quando se referia a meu pai dizia: "el burgués". Manquejava um pouco, resultado de um ferimento recebido num comício ou num atentado. Pois o meu Catalão, naqueles longínquos anos de 19, já era um refugiado. Não poderei dizer se era alto ou baixo, feio ou bonito. Aos meus olhos era um gigante, terrível, belo e sábio. Fomentava motins na fábrica, quase sempre contra o gerente - o meu finado primo Álvaro, cearense magricela, neurastênico e minucioso como uma solteirona. Bastava o Catalão erguer a voz, enquanto remexia os couros, no tanque, logo uma corrente elétrica percorria o pobre Álvaro. Mas embora hábil em fazer-se escutar, o meu herói desdenhava a amizade dos companheiros - sempre só, "áspero e intratável" como o cacto do poeta. Não sei por que, tomou por mim uma estranha amizade. Talvez porque eu era a única criança que andava ali por perto; talvez porque, enojado dos homens só tolerasse a companhia das crianças. Muitas vezes partilhei do seu almoço - às escondidas, é verdade, enquanto papai, que me trouxera à fábrica, se perdia em contas nervosas com o Álvaro, na gerência. O Catalão punha dentro de uma caldeirinha de ferro peixe seco, carne, feijão, couve e muita água. Pendurava a caldeira numa corrente, deixava-a ferver horas e horas na boca da fornalha. Depois, quando os outros operários saíam ele ficava a comer sozinho a sua sopa, com uma negra colher de ferro na mão, sentado no rebordo de um dos tanques de tanino. Para mim, o catalão pairava acima de todos os homens por sua sabedoria, a sua coragem, o seu desdém pelos grandes - e desdém pelos pequenos também. Quando movia as mãos curtidas como a sola com que lidava, de unhas roídas e escuras, quando escandia os versos de uma cantiga que cantava a sós comigo, quando dizia palavrões sobre "el burgués" e baixava para mim os olhos, sorrindo - "Perdona chica" -, quando passava entre as correias das polias, entre o bojo rodante das turbinas - atrevido, sereno, claudicante -, eu, que nunca ouvira falar em Vulcano nem em mitologia, tinha entretanto a receosa emoção que deveriam sentir os heróis de Homero ante a presença visível de um deus. Não sei se era anarquista, republicano, ou o que era. Mas odiava os ricos, os curas, o rei. Ensinava-me a dizer: "Morra Alfonso!" E cantava comigo aquela canção que ninguém mais sabia. Quando, em fins de 19, vendida a fábrica, nos preparávamos para deixar o Pará, fui procurar o Catalão e despedir-me. Era na hora solitária do almoço e por isso mesmo eu a escolhera. O catalão passou-me a colher de sopa, ficou a comer o pão molhado no caldo. Contei que ia embora, falei no Ceará. Ele não sabia onde era o Ceará, quase não sabia onde era lugar nenhum, nem queria saber. Para ele só existia a Catalunha. "Morra Alfonso!" Mas falei enfaticamente na "minha terra" e isso o impressionou. Indagou onde ficava a minha terra. Infelizmente as minhas noções geográficas eram mais vagas do que as suas. E apenas pude estender a mão em direção ao mar e dizer com os olhos cheios de água: - Longe... O Catalão ergueu-se, foi a uma prateleira num recanto da fábrica, onde guardava o chapéu e o paletó. Trouxe de lá um livro de capa vermelha que ainda conservo, em minha casa. Era um guia de turismo, La ciudad de Barcelona, cheio de fotografias e lindos nomes de ruas. Aquele era o seu livro de estimação, eu o sabia. Entregou-me o presente, bateu-me no ombro, empurrou-me de leve para a porta: - No me olvides, chica. E saiu resolutamente para lavar a caldeirinha na torneira dos fundos da fábrica. Muitos anos depois, nas notícias de guerra da Espanha, li a descrição da morte de dois jovens, fuzilados pelos franquistas. Morreram cantando um hino revolucionário, dizia o repórter, e citava dois versos da canção heróica. Meu coração bateu com força, lendo aqueles versos: eram os da antiga canção do Catalão. (Rio, novembro de 1943) Rachel de Queiroz
Posted on: Sat, 20 Jul 2013 14:55:08 +0000

Recently Viewed Topics




© 2015