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PARTE III Ao andar pelas ruas, canso de deparar-me com a indiferença. São muitos olhares repugnantes a me olharem. Flecham minhas retinas, num desejo desmedido de quererem olhar a minha culpa. Eles sabem que é lá, no fundo dos meus olhos, que está a resposta deste incômodo que os rodeia todos os dias. Miram nos meus olhos castanhos claros para julgar-me com a máxima exatidão. Sabem eles, mais de uma vez, que são em meus olhos que estão expostas as minhas vísceras sociais e os meus cancros suburbanos. Querem, com isso, apagar as minhas pegadas, para que não fique, sequer, uma só fuligem de meus passos. Querem tornar-me invisível aos seus olhares. Desejam, apenas, o meu silêncio e a minha transparência corporal. Ocultam-me, desgraçados carentes de mínima filologia! Ah, ignorantes plebeus de um certo Dom João, que passou por essas terras e semeou o analfabetismo cultural! Burros e imbecis, como pode o burro ser mais fidalgo que vocês? Agora, querem me expulsar? Não aceitam transeunte mórbido de ferida aberta passear numa bosta de pocilga, que vocês chamam de urbe? Rararaá, terão que suportar-me. Sois uma carne humana exposta ao relento de suas narinas. Irei seguir, queiram ou não, o meu destino desde menino. O sol está quente, mas preciso comer. Não seria a hora de procurar uma sombrinha ou água fresca. Preciso comer. Comer significa matar, não os animais, mas a fome que me mata. Meu instinto assassino se assevera nessas horas. Calma, gente, não sou assassino de almas. O lixo basta. Lá, as almas de seus donos já estão mortas e putrefatas. Assim mesmo, encaro o que vem como resto. Afinal, o outro lado do meu aparelho digestivo necessita complementar o que não foi preenchido pela manhã. Isso é um trabalho árduo de todos os dias. Não tem descanso. Não consigo adivinhar o que devo comer. Seria mordomia demais para quem vive a esperar uma podre maçã e desejar uma alcachofra à parmegiana. Eu, jamais teria esse direito. Seria um sonho não permitido. Proibido, eu diria. Devo contentar-me com a minha maçãzinha largada pelas mãos de Deus. Evoco o nome de Deus nessas horas. É como se fosse uma palavra mágica do tipo “abra-te, sésamo!”. Não sou devoto de quem me teima em condenar-me. Mas, mesmo sendo ingrato como sou, apelo para os seus poderes mediúnicos que me trazem a comida de todos os dias. Um dia, eu terei uma conversinha séria com essa Criatura tão temida pelos homens. Será no pé do ouvido, para que ninguém ouse escutar. Preciso queixar-me do tratamento diferenciado que estou submetido. Não acho razoável, como sendo seu semelhante, viver sem lógica racional. Ora, se tenho pernas, braços, tronco e cabeça, eu não deveria ter sido expulso da Arca! Um dia, Deus, vamos prosear ali, na beira do rio, jogando pedrinhas na água? O calor continua insuportável. Derrete a minha pele. Encharcar-me de suor. A sensação térmica é de Saara. Como não sou nenhum beduíno, evito enfrentá-lo. Agora ando pela sombra em busca de água fresca. Descalço, saio pinoteando o chão que virou fogueira, é brasa pura. A sola de meu pé é casco, mas está longe de ser de jabuti. Ferradura seria o ideal, mas ainda não inventaram importante ferramenta para esse tipo de gado. Ainda não tiveram a sabedoria de patentear o que hoje preciso. Certo dia, numa dessas minhas caminhadas em busca de uma sobrevivência, esbarrei-me numa negra, dessas bem Xica da Silva. Parecia-me ser a vaidade em pessoa. Unhas pintadas por um vermelho carmim. Madeixas, simetricamente, despenteadas. Usava um vestido colado para realçar as bandas partidas de sua senzala. Lábios grossos e carnudos vermelhos, mas sem batom. A negra parecia ser daquelas alcoviteiras. Chamava a atenção de quem passava. Logo em quem fui esbarrar! Eu, corpo franzino, fui jogado ao chão com o nosso indesejado tropeço. Claro, levei a pior. Ela, de sapatos pontiagudos, pisou em uma de minhas finas pernas. Gritei de dor. E uma multidão veio em nossa direção. Por um instante pensei que, enfim, a compaixão viesse ao meu encontro e me pediria perdão pelos pecados que nunca foram meus. Infelizmente, meus humildes sentimentos foram enganados com as bordoadas e bolsadas em meu pobre dorso e em minha cabeça já achatada na origem de minha nascença. Os golpes eram-me desferidos sempre ao brado do surrado “pega ladrão”. A histeria humana é mesmo insana e insensata. O medo e o preconceito a transformou assim. Não há tolerância e nem o perdão para o que os meus antepassados fizeram. Tudo persiste ser descontado neste pobre revel que vos fala. É, pra mim, a repetição do inferno de Dante. A negra, aquela alcoviteira de uma figa, sumiu em meio às pessoas que, àquela altura, estava ensandecida para curar suas mazelas de origens lusitanas. Consegui desvencilhar-me daquele “tropecinho” escuro. Segui minha caminhada pelos becos e bueiros como se eu fosse uma antiga ratazana malufista ou essas atuais, que ainda aguardam súplicas protelatórias. Tive a sorte de não ser pego pelo ódio social. Discreto, voltei a andar no meio da multidão e, novamente, tornei-me invisível ao olho nu, rezando, é claro, para não encontrar nunca mais aquela estonteante negra alcoviteira, sei lá o que. (Paulo Henrique Abreu)
Posted on: Wed, 04 Sep 2013 07:44:08 +0000

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