PARTE NR. 3 - UMA VIOLÊNCIA SILENCIOSA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A - TopicsExpress



          

PARTE NR. 3 - UMA VIOLÊNCIA SILENCIOSA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERVERSÃO NARCÍSICA CONSIDERAÇÕES FENOMÊNICAS Um indivíduo pode conseguir destruir o outro por um processo de contínuo e atormentador assédio.” (HIRIGOYEN, 2002, p. 9) A perversão narcísica expressa-se por um assédio: o agressor, continuadamente mas sobretudo em momentos de crise, ataca moralmente os pontos fracos da vítima, que se abala narcisicamente, pondo-se em questão de forma crescente, podendo em alguns casos chegar à depressão, ao suicídio ou à morte por doença degenerativa grave. As características das vítimas são, em geral, aproximadamente as mesmas: uma pessoa de perfil reparador, com força, vitalidade e vivacidade, que preza a tolerância, que crê ‘entender’ o agressor e que cobra de si mesma não se abalar tão fortemente quanto se abala com as agressões sofridas. O agressor encontra, como cúmplices, também pessoas que como ele sentem dentro de si um núcleo ruim, e que vêem na submissão ao agressor uma possibilidade de sustentação egóica – neste caso, o quadro toma contornos sado-masoquistas, e a vítima torna-se, em geral, agressor de terceiros. O par agressor-vítima, contudo, como no primeiro exemplo, não é exatamente um par sado-masoquista, uma vez que, embora haja um sadismo da parte do agressor, a vítima não se compraz em sofrer, isto é, não tem necessidade psíquica do sofrimento, mas sim acredita que é forte o suficiente para entender o agressor e vir a não sofrer; e uma vez constatada a reincidência de seu sofrimento, acredita que conseguirá convencer o agressor de que não é bom para ninguém que ele agrida. E se, convencido de que não terá êxito em ajudar o agressor (que a vítima entende como alguém que tem limitações psíquicas e que sofre com isso), a relação chega a uma ruptura, experimenta um grande alívio, da retirada de um enorme peso sufocante e opressor. O grau de masoquismo que poderíamos observar presente na vítima da relação perversa seria advindo, não propriamente, de um prazer no sofrimento, que não há, mas da percepção do sofrimento infligido como indicando um desafio a ser aceito e vencido, um obstáculo a ser superado. Quero dizer, o sofrimento infligido pelo agressor é sentido pela vítima como narcisicamente engrandecedor, no sentido de uma provocação a sua força. Não é o caso, portanto, de que ele goste do sofrimento, mas sim, porque sente prazer no desafio que a agressão representa. Digamos que o masoquista se veria, no sofrimento, como uma vítima, enquanto que a vítima do assédio vê-se no sofrimento, antes, como um herói chamado a um grande embate no qual suas virtudes reparadoras poderão ser postas à prova. A agressão mobiliza as forças da vítima desafiando-a a confirmá-las naquele embate, face à dificuldade de lidar com a situação e de transformá-la, certamente alimentando um desejo de transformar o outro. O paradoxo é o de que a vítima se enreda e se torna vítima, justamente por julgar-se forte, ao menos no fundo; por julgar-se capaz de superar o sofrimento advindo da agressão injusta, e obter, ao final, a grande recompensa de sua capacidade de resiliência, persistência e habilidade sobre o outro: recompensa que é, precisamente, o amor do agressor que até então acena com este amor seduzindo-a, mas na prática a desprezando mais do que supostamente a ama. Ou ainda, a recompensa esperada pela vítima seria o reconhecimento, por parte do agressor, do amor que ele, na verdade e no fundo, sentiria pela vítima, mas não sabe, ou não consegue expressar, devido a suas dificuldades afetivas e relacionais. O jogo do agressor consiste, assim, em dar a entender que ama a vítima, mas em não declarar, não enunciar este amor, ou fazê-lo cada vez menos ao longo da relação, e sempre de maneira ambígua, ambivalente, fugidia. E em alternar entre seduzir a vítima, e, nos momentos de crise, agredi-la fortemente com palavras que tocam seus pontos fracos e a desestabilizam. As vítimas obedecem ao agressor “primeiro, para dar prazer a seu parceiro, [...] pois ele tem um ar infeliz. Depois, [...] por medo” (HIRIGOYEN, 2002, p. 110). Nem que seja por medo de seu mau humor. “A submissão é aceita como necessidade de reconhecimento e parece preferível ao abandono” – reconhecimento que não virá nunca, ou se vier, virá sempre mitigado e parcial. “Como um perverso dá pouco e exige muito, uma chantagem implícita ou, pelo menos, uma dúvida torna-se possível: ‘Se eu me mostrar mais dócil, quem sabe ele poderá, enfim, me apreciar ou me amar.’ Busca sem fim, pois o outro não estará jamais satisfeito” (idem). A vítima fica paralisada “pela recusa em ver que ela é rejeitada” (ibidem, p. 111) ou para evitar o constrangimento e o desgaste de um conflito – pois sabe que qualquer contrariedade fará com que o agressor deflagre um conflito. Assim, “o agressor mantém no outro uma tensão que equivale a um estado de estresse permanente” (idem). Se isso fica explícito na relação de casal, algo análogo ocorre também em relações dentro de grupos sociais ou profissionais. Enquanto que o ego do agressor se caracteriza por um narcisismo perverso, o ego da vítima é um ego paradoxalmente forte, não fraco, mas frágil e carente: não dependente da aprovação do outro, mas desejoso desta aprovação. É um ego desejoso de dar, de auxiliar, pois servir faz sentir-se dando ao outro aquilo que ele desejaria receber. Daí – de sua força, no sentido de resistência ao desamor – vem sua fragilidade que o faz colocar-se em relação com alguém que não lida bem com o receber, pois considera que a mãe, e portanto, o outro, o ambiente e o mundo, lhe deve algo, numa dívida sem fundo e sem fim. Um deseja dar amor ao ponto de buscar aquele que demasiadamente não o teve, enquanto que este cobra um amor que não existe, permanecendo insatisfeito. Ao invés de reconhecer o amor do outro, sente necessidade em desmerecê-lo. Quanto mais um se dedica ao outro, mais o outro despreza esta devoção. E trata de manter a relação manipulando-a através do assédio, aceito pelo outro na intenção de este findar, de superá-lo, de vencer as dificuldades da relação e se fazer amar. Trata-se de uma relação entre um ego sem concern e cuja culpa é paradoxalmente suspensa pela depreciação da vítima, e outro ego com demasiado concern e tolerância e cuja culpa inconsciente, que sente, é de forma geral escamoteada pelo desejo de superar o desamor do qual é objeto, e pela responsabilidade que sente pelo bem-estar do outro. Enquanto um esquece todas as agressões recebidas, considerando-as sempre aceitáveis, o outro coloca lentes de aumento nas reações agressivas daquele, considerando-as inaceitáveis e não as esquecendo jamais, de modo a poder lançar mão delas em suas acusações. É justamente o fato de as acusações feitas não corresponderem à realidade que faz com que a vítima, embora se abale fortemente com elas (e aí está sua fraqueza, percebida inconscientemente e não perdoada pelo agressor), tente desconsiderá-las, pois, pensa, se não correspondem à realidade, não a deveriam estar abalando, e o agressor pode um dia vir a reconhecer que não são verdadeiras, mudar sua atitude, e tudo estará resolvido. Afinal, excetuadas as acusações, o agressor é sedutor, e o convívio entre eles é bom. Para o agressor, por sua vez, esta tolerância da vítima as suas palavras, tão cortantes e injustas, aparece por um lado como revelando a força da vítima, força que é um dos motivos de sua raiva, e por outro como revelando sua fraqueza, inaceitável aos seus olhos, no sentido de uma generosidade irritantemente boba de um fraco que não deveria aceitar ser assim ofendido – fraqueza que, para o agressor, é merecedora de menosprezo, desprezo e desdém, justificando assim para si, a posteriori, a agressão. As vítimas “tentam compreender e sentem-se responsáveis” (HIRIGOYEN, 2002, p. 10). Não se sentem responsáveis pela agressão em si, mas por compreendê-la e por vir a fazer com que o agressor não sinta mais necessidade de agredir. Fica claro para a vítima que “tanta maldade só pode provir de muito sofrimento” (ibidem, p. 11); mas, enfatiza Hirigoyen, “é exatamente por isso” que o agressor manipula a vítima. ‘Por isso’ em dois sentidos: porque, de fato, o agressor sofreu antes e quer vingar-se no companheiro, e porque usa a compaixão da vítima para manipulá-la. Quanto mais o agressor se torna maldoso em suas palavras, mais a vítima se torna solícita, mais se adapta, mais cede, se restringe, adapta-se, mais tenta evitar o mau-humor, a ‘cara amarrada’, a censura ou a contrariedade, ou mesmo a tristeza, do agressor. Em sua manipulação, o agressor faz “recair sobre o outro a responsabilidade do que sucede de errado: ‘Não sou eu, é ele o responsável pelo problema!’” (idem), diz a si próprio, e à vítima – sem questionar-se em momento algum. “Mesmo que sua perversidade passe despercebida por algum tempo, ela se manifestará em toda situação em que ele tiver que se envolver e reconhecer sua parte de responsabilidade” (ibidem, p. 11-12), observa Hirigoyen. De fato, os ataques mais cortantes e agressivos ocorrem quando o agressor sente-se acuado, perdendo o domínio do outro, contestado em seu poder, e vê ameaçada a conservação da situação atual que o favorece. O ataque é de fato uma defesa contra a possibilidade de a vítima insurgir-se contra essa vampirização por parte do agressor, contra seu controle e manipulação, contra a situação por ele tão lenta e duramente estabelecida que favorece a manutenção do quadro fixo de dominação em que ele se sente seguro. É neste sentido que a perversão é uma “incapacidade de considerar os outros como seres humanos” (HIRIGOYEN, 2002, p. 12), considerando-os como um meio para atingir seus fins – e aqui vemos o quanto a perversão narcísica, esta perversão que tem como mote o poder, é comum nos dias de hoje, usual, banalizada, difundida e, até mesmo, indiretamente incentivada pela mídia. Estes fins podem ser casar-se, subir na vida social, ‘simplesmente’ ter alguém que o sirva ou a quem dominar etc. Mas a finalidade psíquica, que guia estes objetivos pontuais, será sempre a de apoiar-se em alguém, cuja vitalidade o agressor sente faltar a si mesmo e que, por isso, é fonte de inveja e que se torna vítima de sua vampirização, tomada por ele como justa. Esta vitalidade vampirizada não é utilizada em proveito próprio no sentido de uma apropriação que pudesse dar resultados, uma vez assimilada. Ao contrário, não há assimilação ou apropriação – e é isso que caracteriza-a como vampirização: a necessidade contínua de manter o outro na condição de submissão. Justamente porque não há uma potencialização real do agressor, ele não se torna independente de sua vítima e necessita dela para se apoiar, acusando-a de ser a responsável por seu fracasso. Nos casais, no pacto inicial estabelecido informalmente, mas em geral, verbalmente, pelos parceiros, é importante para o agressor ter a promessa do outro de que a relação será estável, pois, diz o agressor, ele sofre com a instabilidade das pessoas, com os outros querendo se aproveitar dele, com a maldade e a volubilidade das pessoas e das relações. Empenhada a palavra da vítima pela estabilidade do casal, o agressor a tem como presa para suas agressões, cobranças e acusações, e toda reação contra a teia que se estabelece será tomada como falta à palavra dada, que será cobrada como se fosse incondicional, isto é, como se não se condicionasse a um tratamento suficientemente cordial de um para com o outro. Certo, toda relação implica interesse de ambas as partes. Não há como não ser assim, e também não seria desejável que fosse de outro modo. Em boas relações, o que há é uma parceria na qual ambas as partes crescem, se fortalecem, se potencializam. Em relações neuróticas ‘normais’, certamente mais comuns, há dependência e pode haver graus de explorações de parte a parte. Mas o que caracteriza a perversão narcísica é a mobilização de uma das partes para imobilizar a outra.
Posted on: Sat, 26 Oct 2013 03:54:10 +0000

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