PSICANÁLISE, SUBJETIVIDADE E ENUNCIAÇÃO. Margareth Schãffer - TopicsExpress



          

PSICANÁLISE, SUBJETIVIDADE E ENUNCIAÇÃO. Margareth Schãffer (UFRGS) 1. Do “Entre” da enunciação: muthôdes? Contar a história das idéias, das teorias, dos feitos pode, por um lado, ser à moda de Tucídides - simplesmente verdadeira, como procura da verdade e do dizer certo (científico?) e, nessa direção, só podemos confiar no olho (opsis), que é o que nos leva a um conhecimento claro e distinto (a orelha nunca é segura); por outro lado, pode ser a moda de Heródoto, onde a orelha (akoê) e o olho (opsis) compõe a base do método. Assim, “a investigação apóia-se primeiro no olho - a autópsia (o fato de ver em pessoa) -, em seguida, na orelha, recebendo oralmente informações de pessoas que “sabem” ou que se considera que saibam. Se a orelha substitui o olho, quando a autópsia encontra seus limites no espaço e, ainda mais rápido, no tempo, não cumpriria, no entanto, concluir disso que, para Heródoto, o gênero de conhecimento proporcionado pela autópsia seja, por sua natureza, “mais verdadeiro” do que permite a akoê. (Hartog, 1993: p.379. In: Dicionário das Ciências Históricas, Org. por André Burguière). Heródoto é chamado o pai da história. Entretanto, Tucídides, que só acredita no olho, chamou-o praticamente de mentiroso, já que o classificou entre os contadores de histórias (logográphos). Deste modo, parece ser mentiroso aquele que, além de confiar no olho, confia no ouvido para contar histórias. Assim, contar algumas histórias sobre/do sujeito, da linguagem e da enunciação, pode ser à moda de Tucídides ou à moda de Heródoto. Parece-me que a via do mentiroso, ou seja, a do contador de histórias (historiê/pesquisa) - onde olho (opsis) e a orelha (akoê) fazem o método - parece-nos uma via interessante para ser utilizada na travessia da linguagem e da enunciação na educação. Na Educação, como na maior parte das áreas das Ciências Humanas, olho e ouvido fazem o caminho do método; não recusamos os prazeres da orelha, tal como Tucídides. Quando este critica o conceito jônico de historiê utilizado por Heródoto, diz que os utilizadores de tal método cedem ao prazer da orelha e, portanto, são fundamentalmente viciados. Pejorativamente, Tucídides denomina os que fazem historiê de muthôdes, “algo que nem é, francamente, muthos, como fazem os poetas, nem, obviamente, outra coisa” (Idem), ou seja, não é nem ciência, nem verdadeiro, nem poesia. E não é disso que a área de Humanas é freqüentemente acusada, ou seja, não é nem isso e nem aquilo. Nesse sentido, nos situamos no entre-lugares (Homi Bhabha), na interseção, no entre-dois. E o método desse entre? A moda de Heródoto, eu diria que o método é aquilo que não é nem ciência e nem arte, mas é muthôdes. Uma enunciação que tem como método o muthôdes, o olho e o ouvido. É através de tal método que nos propomos a pensar a tragicidade do sujeito, dividido entre enunciado e enunciação e, inapelavelmente colocado em um “entre”. Através do “entre-dois”, do “entre-lugares”, apresentaremos algumas reflexões a partir da próxima seção, realizando travessias que passam pela psicanálise, pela filosofia, pelas teorias da cultura para, enfim, pensarmos o sujeito e a educação no espaço indeterminado da enunciação. 2. Tragicidade do sujeito: entre enunciado e enunciação. Nas palavras de Birman (1994), a tragicidade e o paradoxo do sujeito é precisar nomear-se, mas não poder nomear-se, sob pena de desaparecer no próprio ato de nomeação. Essa incontornável opacidade na relação do sujeito consigo mesmo introduz uma fratura radical no sujeito humano. Assim, no enunciado o sujeito é plenitude e concretude, mas no ato de sua enunciação ele desaparece para dar lugar somente aos seus efeitos. Deste modo, o sujeito não pode enunciar-se enquanto Um e, a partir disso, derivar uma reflexivização sobre si mesmo. Devemos, talvez, lamentar esse “destino”, já que ele, marotamente, nos joga a incerteza do entre-lugares, para usar uma expressão de Bhabha (1998), ou mesmo nos confronta com o nosso duplo, minando nossa possibilidade, quer de identificação total com um Ser Sujeito, quer de identificação total com um Ser Objeto. Pensando com a psicanálise , não há lamento a ser feito dessa desintegração de uma estabilidade do sujeito. Não há por que insistirmos em um modelo reflexivo que, por conta de seus excessos, tentou sistematicamente nos dizer o que seria um sujeito. Existem outros modos de reflexibilidade. É bem verdade que esses novos modos solapam nossa pretensão de sujeitos livres para escolher e remodelar nossa “identidade”. Recorrendo a Lacan, descobrimos que, para além da problemática da identidade, é o próprio sujeito que está em suspensão e, se falamos dele, é somente para dizer que ele está fora de toda captura teórica e de toda análise discursiva. Entretanto, esse estar fora de toda captura reflexiva não nos impede – e este é o paradoxo – de nos perguntarmos sobre o que seja o sujeito e quais são as condições possíveis de subjetividade na atualidade. Insistimos na questão, mesmo sabendo que a resposta virá pela colocação de novas perguntas, circunscrevendo, assim, o mal-estar que sempre surge quando se trata do “sujeito”. Birman, na leitura que faz do texto de Freud Mal-Estar na Civilização, diz-nos que no discurso do mestre da psicanálise o poder é o elemento que constitui o sujeito, e a relação deste com o poder é marcada pela tragicidade e pelo paradoxo. O sujeito, ao mesmo tempo que se institui na relação com o poder, terá que se opor a este, para se estabelecer como sujeito da singularidade e da diferença. Relação paradoxal, contraditória, pois ao se inserir em um código simbólico de um sistema de poder – cultura, linguagem, o Outro –, o sujeito tende a perder sua singularidade. Entretanto, é no diálogo e confronto com “o lugar do poder que o sujeito realiza a sua produção e reprodução como sujeito da diferença” (1994, p.111). Vemos, assim, que o reconhecimento da singularidade e diferença do sujeito passa, necessariamente, pelas relações de poder. Há necessidade de tomar a questão do poder como pressuposto mas, ao tomá-la, exige-se uma ruptura com esta para que o singular aí possa surgir. Para Birman, essa ruptura pode levar o sujeito a “entrar na ‘extravagância’ e ‘excentricidade’ presentes na loucura, ou então possibilitar ao sujeito formar seu estilo e fazer de sua vida uma obra” (1994, p.184). E tal possibilidade de estilo parece situar-se no campo da enunciação, questão de que passo agora a tratar. 2. Sujeito: Enunciado e Enunciação. Lacan, para especificar a relação que o sujeito falante mantém com o inconsciente e com o desejo, discrimina a vertente do enunciado do discurso do ato de enunciação que produz este enunciado. Recorrendo ao campo lingüístico para estabelecer uma certa precisão, temos que o enunciado pressupõe uma seqüência finita de palavras emitidas pelo locutor. O fechamento de um enunciado é geralmente indicado pelo silêncio que o sujeito falante produz para pontuar sua articulação. O enunciado é produto de uma enunciação, enquanto esta última é produto de um ato individual da língua que evidencia o processo de fabricação – o ato de criação de um sujeito falante. Lacan acentua, entretanto, que não se trata de dois sujeitos – o do enunciado e o da enunciação – mas, sim, que se há algum lugar de onde o sujeito pode surgir, este é o lugar da enunciação. É no processo de enunciação que um sujeito se produz e é produzido. A recorrência à distinção entre enunciado e enunciação e a localização do sujeito na situação de enunciação não é exclusividade da psicanálise. Bhabha (1998), ao insistir sobre a especificidade da diferença cultural, propõe o terceiro espaço da enunciação – “espaço indeterminado dos sujeitos da enunciação”. São as condições discursivas da enunciação que garantem que o significado e os símbolos da cultura possam não ser fixos, sendo lidos e retraduzidos de outro modo. O “espaço-cisão da enunciação” é o que permite evitar as polaridades e constitui-se como o fio cortante da tradução e da negociação. De um outro modo e a partir de outros objetivos, Lacan nos abre o caminho para pensar o sujeito nesse mesmo espaço-cisão de enunciação. Assim, é no próprio ato de articulação significante, na enunciação, que o sujeito pode advir. Encontramos nos Escritos (1998) essa idéia reafirmada, quando Lacan se refere à presença do inconsciente e diz que este, por se situar no lugar do Outro, deve ser procurado, em todo o discurso, na enunciação. Lugar onde o sujeito nunca é mais do que suposto. O sujeito do enunciado representa o “eu”, é o “eu”, é o schifter; e, para falar deste sujeito, não precisamos ir além das categorias lingüísticas de código-mensagem. Entretanto, cabe salientar que o sujeito da enunciação não se constitui como o substrato do sujeito do enunciado, ou seja: não basta levantar o véu encobridor e surgirá o sujeito da consciência; não se trata de tradução, nem de interpretação. Também não se trata de uma divisão entre um eu/enunciado e o inconsciente/enunciação ou de uma irrupção de um no outro, mas trata-se sim do ato de assumir tal divisão, pois, para Lacan, sempre se é responsável por uma posição de sujeito – é uma questão ética que está em jogo. Tal processo de subjetivação não pode ser calculável a priori, pois só se saberá algo deste a posteriori, em um “só depois”. A ética concernente a esta posição parece “esquecida” e, por conta disto, colocamo-nos, muitas vezes, a “calcular” loucamente os destinos do sujeito . Pode-se perguntar, afinal de contas, para que tanto “cálculo”, tanto controle? Em prol da felicidade do sujeito, responde-nos uma “certa” modalidade de campo psi. No seminário sobre a Ética (1995), Lacan, ao referir-se ao sujeito em situação de análise, diz-nos que este vem em procura da Felicidade. Entretanto, para o autor, não pode haver satisfação de ninguém, fora da satisfação de todos, e a psicanálise não apresenta uma disciplina da felicidade, tal como encontramos em Aristóteles. Mas, então, o que pode fazer a psicanálise frente a essa demanda de Felicidade? O que pode enunciar a psicanálise acerca do controle do sujeito e de sua Felicidade? Para o autor, a psicanálise não pode garantir que o sujeito vai encontrar de qualquer maneira o seu bem, pois isto é uma trapaça, um devaneio burguês. Não podemos esquecer que, na sociedade atual, o bem de felicidade está atrelado ao plano político e isso gera conseqüências. Salienta o autor que a moral do poder, a serviço dos bens é – “Quanto aos desejos, vocês podem esperar sentados” (Idem, p.378). E a ética da análise não está atrelada ao serviço dos bens. Esta parece ser a resposta às questões enunciadas acima, bem como parece ser a resposta àqueles que, em nome da Felicidade, estabelecem a verdade concernente a esta. 3. - Sujeito, Outro e enunciação. Pensar o sujeito, para além do enunciado e de um ideal de Felicidade, significa saber operar com significantes: que diferem, que significam, que não significam , que são puros. Deste modo, o sujeito, não é da ordem de um “ver”; ele permanece o efeito de um processo – dos significantes que uma cultura lhe dispõe – que sempre o faz diferente e o põe em conflito com uma alteridade sem apelação, a mesma alteridade que o constitui, o Outro. Aliás, o próprio “ver”, como nos ensina Didi-Huberman (1998), só vale, só vive, “em nossos olhos pelo que nos olha”. Está aí um boa forma de se dizer o que é o Outro na sua significação lacaniana. “O que vemos, o que nos olha” diz, de um outro modo, da imperfeição do olho perfeito da verdade binária, pois não há o que escolher entre o que vemos e o que nos olha – o sim e o não, o bom e o mau. “Há apenas que se inquietar com o entre” (Idem, p.77) Este é um momento que “não impõe nem o excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica)” (Idem). A produção dessa estranheza inquietante, dessa desorientação, implica, ao mesmo tempo, sermos dilacerados pelo outro e sermos dilacerados por nós mesmos. É a ameaça da ausência que está aí. “Ora, paradoxalmente, essa cisão aberta em nós – cisão aberta no que vemos pelo que nos olha – começa a se manifestar quando a desorientação nasce de um limite que se apaga ou vacila, por exemplo, entre a realidade material e a realidade psíquica” (Idem, p.131). Às vezes, é necessário fechar os olhos para ver o limiar – aí está o sujeito, nesse limiar. Para pensar o sujeito, o leitor poder-se-ia perguntar a razão dessa recorrência a um autor que se debruça sobre os problemas da arte, tal como Didi-Huberman. Uma possibilidade de resposta a esta questão é que, muitos teóricos da atualidade, ao se referirem ao esgotamento da noção de sujeito da razão, apontam a arte, a estética, a ética como possibilidades de transcender a ótica estreita que o modelo da razão tem imprimido ao sujeito. Outra possibilidade de resposta situa-se na própria apresentação do autor referido, pois ele é um leitor tarimbado de Freud e Lacan, bastante atento às relações entre linguagem e visualidade e que nos apresenta, para pensar o sujeito, a categoria de ambivalência – a ambivalência entre o que vemos, o que nos olha. Didi-Huberman analisa a inquietante ambivalência das imagens e, tomando de empréstimo alguns conceitos de Walter Benjamim, analisa estas como “dialética em suspensão”. E é através dessa dialética que o autor pensa as relações entre modernidade e mito, sem ceder, é verdade, à razão cínica do capitalismo e ao irracionalismo arcaico. Recorre também ao conceito de duplo de Freud (1985), objeto originariamente inventado contra o desaparecimento do “eu”, mas que acaba por significar esse desaparecimento mesmo – nossa morte – quando nos aparece e nos olha. Tal recorrência parece não ter outro objetivo senão aquele de ilustração de um duplo que sempre nos olha de maneira singular, mas cuja singularidade se torna estranha, pela “virtualidade, mais inquietante ainda, de um poder de repetição e de uma ‘vida’ do objeto independente da nossa” (Didi-Huberman, 1998, p.229). Recorrendo a imagens para pensarmos como se concretiza tal extravazamento da noção de sujeito, poderíamos caminhar pela exposição de Arte Moderna de São Paulo até encontrarmos a obra de Nazareth Pacheco “Miçangas, cristais e giletes: o vestido de Nazareth” (1999), que recebeu o Grande Prêmio Embratel na edição do Panorama de 1997. A obra é um vestido feito todo de giletes que, segundo a artista, inspira sedução; mas as giletes tornam a peça fatal. Para a autora, a obra reflete a crise de identidade no próprio corpo e pretende denunciar o “fio da navalha” que separa interior e exterior. A gilete é uma metáfora que a autora emprega para falar da identidade e da alteridade, do que agregra e do que corta, do que não tem como se identificar, porque o “corpo é transfiguração, indeterminação, perturbação da busca frustrada da identidade, de uma referência fixa dentro ou fora de si mesmo” (Idem, p 10). A obra parece anunciar uma busca de identidade, mas, ao chegarmos perto dela, logo esta transforma-se em uma arma mortal – as giletes são lindas, brilham e cortam; jogo incessante que vai para além da vida e da morte, do identitário e da alteridade, vai mais além do princípio do prazer, nos diria Freud (1994) em seu artigo de 1930. Essa busca de uma definição identitária que, logo ao ser encontrada, se desvanece, nos fala de um outro modo das desditas de um sujeito que deve, incessantemente, buscar a si próprio, não mais somente dentro de si, mas na exterioridade interior, no jogo da presença-ausência, do dentro e do fora, não para situar-se em um ponto fixo das extremidades do jogo, mas sim para colocar-se no lugar ambivalente do entre o que vemos, o que nos olha, dir-nos-ia Didi-Huberman; no fio da navalha, dir-nos-ia Nazareth; em suma, no espaço indeterminado da enunciação do sujeito na cultura, dir-nos-ia Lacan. Talvez seja este o momento de problematizarmos a relação entre sujeito e cultura, tantas vezes já assinalada neste texto. 4. Sujeito e cultura no espaço da enunciação. O sujeito ocupa, na cultura, lugares dissimétricos. Na sua teoria do discurso, Lacan mostrou como o simples fato de que nós estejamos presos na palavra e na linguagem determina lugares. Mas como a cultura retorna ao sujeito? Tal questão se põe na medida em que, a partir da psicanálise, a aparente oposição entre individual/sujeito versus coletivo/cultura não se sustenta mais . Em Lacan, temos a afirmação de que todo laço social, que é um laço discursivo, somente se sustenta a partir de um sujeito. Sujeito e Outro são referenciais interligados, determinados pela sustentação do campo cultural, que só se mantém pela transmissão da linguagem. Mas, diriam alguns teóricos, a linguagem, no sentido lacaniano, difere daquela apresentada pela lingüística – é alíngua, como Lacan a denominou. Mas, pergunta-se Arrivé, se não é a mesma, se não tem nada a ver com a linguagem tal como descreve o lingüista, “será preciso admitir então que existem duas linguagens, certamente homônimas, mas totalmente disjuntas?” (1999, p.23). Pergunto-me: não será isto um grande cinismo epistemológico? E o que dizer então do famoso aforisma lacaniano “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”? Mas qual linguagem? Arrivé acaba assinalando um diferencial, seguindo o próprio caminho trilhado por Lacan, e este é o problema fundamental do equívoco (propriedade fundamental dessa “uma linguagem”, modelo sobre o qual é estruturado o inconsciente). Lacan, na obra L’Etourdit (1973), nos diz que o inconsciente pode ser “estruturado como uma linguagem”, isto é, a alíngua que ele habita, está sujeita ao equívoco do qual cada uma se distingue. “Uma língua entre outras não é nada mais do que a integral dos equívocos que a sua história deixou persistir” (Idem, p.47). Entretanto, na mesma obra, ele diz “Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse por -.” (Idem, p.45) E se o significante, de certa forma, é signo, ele “é signo de um sujeito, mas sujeito no sentido específico de sujeito do inconsciente. O sujeito não é jamais senão pontual e evanescente, pois ele só é sujeito por um significante, e para outro significante” (Idem, p.93). Mas o que é um significante? Para Lacan, o significante não se limita ao seu suporte fonemático; não é uma concepção exclusivamente verbal do significante; não é a palavra; mas é o quê? No Seminário 3 (1988), que trata sobre as psicoses, Lacan nos diz que o significante é um sinal que não remete a um objeto, mesmo sob a forma de rastro, embora o rastro anuncie, no entanto, seu caráter essencial. Não podemos deixar de sublinhar que, apesar da importância que Lacan concede à linguagem, desfaz-se de toda equivalência que possa haver entre o pensamento e o recurso linguageiro. Ele joga, na verdade, com o “cristal da língua” e, bem sabemos o quanto o cristal é frágil. Assim, para Arrivé, na esteira de Freud e Lacan, “o estilo é o sujeito tomado e torturado pela linguagem, pela alíngua” (1999, p.200).. Falar em linguagem significa falar em cultura, sem que estas sejam homônimas. Aliás, analisando certas concepções de cultura, percebemos que “a cultura”, na linguagem, torna-se um neutro: “o cultural”. Em suma, não é sobre essa linguagem, sobre essa cultura que a psicanálise se debruça. Tratar a cultura como um neutro é o mesmo que dizer que ela se caracteriza como um não-lugar onde todos os investimentos são possíveis, onde pode circular o que quer que seja. Michel De Certeau (1995), de uma forma bastante perspicaz, sublinha que “o discurso cultural” cai nas generalidades e reaplica resíduos doutrinais (políticos, filosóficos, religiosos). Retornemos às questões de linguagem. Não é a psicanálise que detém a verdade plena (Lacan já nos dizia que a verdade é não-toda) sobre a linguagem . O que ela faz é demarcar seu entendimento sobre a linguagem, apontando-nos algo para além da própria palavra dita, para além do enunciado, ou seja: para a situação de enunciação de um discurso. Se assim não fosse, indaga De Certeau (idem), a psicanálise seria então um novo esperanto cultural, fornecendo ao Ocidente o repertório, também ele metafórico, daquilo que se torna nossa linguagem? De um outro modo, De Certeau coloca-nos a necessidade de realizar uma distinção entre o enunciado (o dito) e a enunciação (o dizer em sua fabricação). Para a psicanálise, tal como vimos anteriormente, reside neste último aspecto, as condições de produção de um discurso. De Certeau, assim como Bhabha, aplicam tal distinção na análise dos processos culturais. A psicanálise, por sua vez, assinala, no que respeita à clivagem do sujeito, essa mesma distinção – o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Retomar, neste texto, a divisão entre enunciado e enunciação justifica-se pela própria insistência de Lacan em relação a essa questão. Uma das formas de distinção – apresentada por Lacan no seminário 17 (1992) – é aquela que diz que a enunciação é um enigma, e que sua conversão em enunciado depende da singularidade em questão, do sujeito que aí se toma; é algo que o próprio sujeito tem que “se virar” para decifrar. Entretanto, a mitificação do sujeito pela linguagem é o outro lado da moeda, pois se, por um lado, a linguagem nos emancipa das limitações da nossa biologia, por outro, um sujeito condenado ao significado nunca deixa de correr perigo. Lacan mesmo, de diversas maneiras, nos alerta para o modo como a linguagem nos subjetiva perigosamente, pois o corpo se articula por signos só para se descobrir traído por eles. A palavra – Palavra das palavras – não é um discurso firme como a carne, tal como o romantismo desejava. Extremamente deslizante, nunca literal como querem alguns teóricos da linguagem, a palavra não permite que o sujeito seja livre, a menos que pretendamos que o sujeito seja livre de si mesmo, seja livre daquilo mesmo que o constitui enquanto tal. Nesse sentido, a linguagem, enquanto dimensão social da subjetividade, é constitutiva do sujeito. O resgate dessa dimensão social da subjetividade é uma das vias apontadas por Eagleton para “evitar tanto o equívoco humanista de simplesmente modelar a solidariedade política com base em um único sujeito audodeterminante, agora coletivizado como deveria mas, em diferentes circunstâncias, quase todo inalterado. Como a miopia de um sujeito que suspeita da solidariedade em si como se fosse um consenso opressivamente normalizante” (1998, p.40). Entretanto, o próprio Eagleton sublinha que qualquer “solução” meramente teórica debate-se com as limitações atuais da linguagem, o que “equivale a dizer, evidentemente, as limitações atuais do nosso mundo político” (Idem). Se pudéssemos obter a concordância de todos os psicanalistas, afirmaríamos, com Arrivé (1999), que a psicanálise, como uma prática social entre outras, é um exercício de “linguagem”. Tomando esta afirmação como verdadeira, como evitar uma conexão entre linguagem e psicanálise, entre lingüística e psicanálise, pergunta-nos Arrivé? Como evitar de perguntarmo-nos sobre a necessária ambivalência que a linguagem carrega consigo? Bauman, na sua obra Modernidade e Ambivalência (1999), diz-nos que a ambivalência não é produto da patologia ou do discurso, mas um é aspecto normal da prática lingüística, sua condição normal. Se concordarmos com Bauman, chegaremos à afirmação de que a ambivalência é a companheira permanente da linguagem. E, retomando as afirmações de Eagleton, bem como as da própria psicanálise, temos que a linguagem é constitutiva da subjetividade do sujeito. Seguindo esta linha de raciocínio, temos, como conseqüência, que o próprio sujeito, porque constituído pela linguagem, carrega consigo toda ambivalência da mesma, o que resulta na seguinte fórmula: o sujeito é ambivalente por sua própria constituição. Em linguagem psicanalítica, chamamos este sujeito de clivado, dividido entre uma linguagem que ordena/classifica e sua companheira que produz o sentido ambíguo, a duplicidade, que tira da ordem. Solução? Pouco provável, já nos alertavam Freud e Lacan. Para Bauman, isso deve encetar uma discussão, já que “descobrimos que o conceito é carregado de ambigüidade, ao passo que seu referente é opaco no miolo e puído nas beiradas” (Idem, p.12). O problema é que por sermos, muitas vezes, apaixonados pela precisão semântica, somos, em conseqüência, muito intolerantes com a ambivalência. Em outras palavras, somos muito intolerantes com o próprio sujeito, constituído que este é pela ambivalência. Assim, “na medida que a ânsia de pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é a intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver)” (Idem, p.16). A tolerância para com o outro, sutil e astutamente, reafirma a inferioridade do outro, com intenções de abolir de vez a alteridade aí insurgente. De uma certa forma, o que temos, através da in/tolerância, é um horror às misturas, um horror às ambivalências. A tragédia dessa situação para a era moderna é que a própria atividade ordenadora/classificadora, fundamento da lógica desta época, se constrói como ambivalência. Construímos, assim, o medo horripilante da “infusão da bruxa”, misturas que só “ela” entende – misturas em excesso, diriam alguns; misturas desconhecidas diriam outros. Aliás, foi esse horror que dirigiram a Freud em sua época: “Diziam de Freud que ele profanou o passado, envenenou o presente e matou o futuro” (Idem, p.178). Freud teria sido um traidor, pois profanou o que de mais sagrado havia – a tradição, a ordem, o perpétuo. Contraditório, pois hoje Freud é considerado, por muitos, a própria tradição, a própria ordem, o próprio conservador. Leituras do passado e leituras do presente que, sem examinar a configuração social de sua produção, não poderemos entender. Tomando como referência algumas “palavras mágicas” deste mesmo texto – sujeito, enunciação, ambivalência, entre-lugares –, como poderíamos pensar a produção de subjetividade na educação? Aliás, o uso do termo “palavras mágicas” não seria apenas mais um eufemismo ou um recurso para não ter que utilizar a palavra “categorias”? Deixando em aberto a questão, passamos a tratar de um tema que nos concerne diretamente – o sujeito e a educação. 5. Sujeito, educação e enunciação. O que passo a colocar em questão, particularmente a partir do ponto de vista da psicanálise, é a retórica sobre o sujeito da infância/da educação. Tal retórica, neste contexto, diz respeito ao problema do enquadramento da criança, do aluno, em ideais sociais. Tal enquadramento, por exemplo, aparece claramente na demanda escolar à clínica de atendimento psicológico ou psicanalítico. As demandas que advêm do lugar escolar assentam-se na noção de desvio – desvio de comportamento, desvio da norma, desvio da inteligência, ou seja, aquilo que conhecemos como problemas de aprendizagem ou de comportamento na escola: aluno desatento, indisciplinado, agressivo, lento, voado; e uma infinidade de outros significantes que fazem série. Entretanto, não podemos descurar, nas análises sobre a demanda escolar à clínica, que esta é sobretudo social, e que a necessidade de “tratamento”, muitas vezes, advém do confronto da criança com o ideal social. A questão ética aí posta é crucial pois se, por um lado, não damos “ouvidos” a essa queixa escolar, poderemos estar recusando alguém que realmente precisa de uma outra escuta, para além da escuta escolar; por outro lado, tem-se vivenciado uma encruzilhada dolorosa no que diz respeito à escola enquanto um lugar que a criança deveria fazer laço social – ela, a criança, é “des” qualquer coisa: desatenta; com distúrbio; desordeira. E o significante por aí desliza. O sujeito então é tomado como um entulho a ser jogado diretamente na clínica: “veja o que vocês podem fazer com ele”. Ferreira faz um alerta interessante no que concerne a esta questão: “...a relação do sujeito ao saber é, estruturalmente, problemática e nem tudo que advém desta relação deve ser inscrito no registro do patológico, como fazem alguns desavisados, recorrendo ao campo “psi” quando algo do sujeito se precipita” (1999, p.92). Observamos que um dos discursos que se contrapõe a inscrever o sujeito no registro do patológico é o do “sujeito do desejo”, ou seja: que o sujeito deseja o desejo do outro. Considero, entretanto, tal discurso um tanto problemático. Vejamos: o discurso do “desejo de saber”, de forma inadvertida, acabou transformando-se em fórmula mágica na nossa área. Lacan, no livro 17, ao falar sobre os quatro discursos, refere-se ao discurso de Hegel e a “barbaridade chamada de saber absoluto”. Questiona-se o que pode querer dizer “saber absoluto” em função das “barbaridades verdadeiramente intoleráveis que ouvimos dos psicanalistas no que concerne ao desejo de saber” (1992, p.21). E é por conta de tal questionamento que Lacan afirma de forma incisiva que o desejo de saber não tem qualquer relação com o saber, “a menos, é claro, que nos contentemos com a mera palavra lúbrica da transgressão. Distinção radical, que tem suas conseqüências últimas do ponto de vista da pedagogia - o que conduz ao saber não é o desejo de saber. O que conduz ao saber é – se me permitem justificar em um prazo mais ou menos longo – o discurso da histérica” (Idem). Lacan, nas palavras acima citadas, está a nos alertar que é uma questão ética que está em jogo, já que o sujeito, na educação, não pode ser reduzido a um conhecimento e a um saber. A finalização da discussão acaba no terreno da ética, prerrogativa que, no momento atual, não parece ser somente de Lacan. Retomando a discussão sob a perspectiva do sujeito “que não aprende”, que é “des” qualquer coisa, temos a seguinte situação: o “não aprender”, muitas vezes, é considerado como um sintoma, um sinal de uma doença que deve ser tratada. Entretanto, pensando a partir da perspectiva lacaniana, o sintoma é, antes de tudo, um enigma: “nós nos perguntamos ‘o que me acontece’?; ‘o que isso quer dizer’?, e então nos endereçamos a alguém que é um suposto-saber e que não é nada além de um suposto-saber” (Pinto, 1999, p.61) Vemos, deste modo, que o saber é sempre suposto e que o sujeito é o sujeito da palavra. Dar a palavra ao sujeito que “não aprende” parece ser uma das dificuldades que nos defrontamos no cotidiano pedagógico. Assim, em nome de um saber, excluímos o aluno do mesmo. A referência ao sujeito que “não aprende” exige uma problematização que ultrapassa o campo do patológico, ou seja: será que esse “não aprender” é realmente um problema de aprendizagem? Não estaria em questão, também, a forma como a sociedade está regulada e que só permite uma forma singular de reprodução do saber que, obviamente, esses alunos não estão conseguindo “apreender”? Parece, muitas vezes, que a subjetividade do aluno torna-se um “isso”, um “nisso”, uma “coisa” que não se sabe lidar. A distância que existe entre o tratar o sujeito como um “isso” e seu processo de exclusão da escola é muito pequena. Penso um pouco como Jerusalinsky (1988), quando esse faz um alerta sobre o significante escola: a escola é um lugar de reconhecimento social, é um lugar “normal”, na nossa cultura, de a criança estar. Assim, ser reconhecido no social engloba reconhecer que pertence a uma cultura, se identificar, ser reconhecido, ser diferente, poder se comunicar, até mesmo as experiências psíquicas. São, segundo o autor, condições necessárias para o ser humano sobreviver. O problema é que tal reconhecimento passa, muitas vezes, pelo lugar do “des” qualquer coisa. Assinalar os modos como o sujeito é tomado na educação deve-se, a princípio, a uma questão que considero importante, para fins de reflexão. Esta diz respeito ao lugar que a escola ocupa hoje: lugar de um fogo cruzado de discursos que aí circulam: o discurso da diferença; o discurso do conhecimento; o discurso da ideologia; o discurso do poder; o discurso do desejo, entre outros. Todos esses discursos, à revelia ou não dos paradigmas que os sustentam, chegam à escola assinalando para esta um aspecto de normatividade (não porque esses discursos veiculem tal normatividade, mas porque assim são tomados), do que deve ser feito, ou do que não deve ser feito. Tanto o “deve” como o “não deve” podem ser igualmente tirânicos. Afinal, qual o lugar da escola e do sujeito na contemporaneidade? Qual a sua função? Tais perguntas são obrigatórias para quem se propõe a pensar os processos de subjetivação para além dos modelos de reflexibilidade existentes. Enfim, creio que não podemos esquecer que tudo que chega à escola, justamente por conta de esta ser uma instituição atravessada por normas, é transformado em proposições normativas. Por conta dessa situação, o sujeito, rapidamente, sofre o enquadre, só que agora com o aval dos próprios discursos que denunciavam os processos de “modelagem” da subjetividade pela educação. Ambivalência constitutiva do sujeito, ambivalência constitutiva dos próprios discursos que o tomam como “objeto”, desconhecendo a impossibilidade de fazê-lo. Penso, retomando as considerações iniciais acerca da problemática de muthôdes, que o que está em questão são os cuidados que devemos ter para que não haja um apagamento entre o sujeito real e o sujeito ideal, ou seja, que estes não sejam identificados a um só, em nome de um ideal de sonhos didáticos-metodológicos. Em outras palavras, que a enunciação seja uma via de fato para pensarmos a complexidade do sujeito na educação e, por conta de tal via, tanto o olho (opsis) como a orelha (akoê) guiem os passos do método. Muthôdes exige que não congelemos o sujeito no olhar de um Ideal que é da ordem de um “impossível”.
Posted on: Fri, 19 Jul 2013 20:29:19 +0000

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