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Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 O que é Ágape? Da exegese a uma síntese antropológica passando pela Teologia * Olivier Bobineau ** Resumo O texto busca refletir, a partir de uma perspectiva ontológica, sobre a relação do conceito de ágape (amor cristão) com outras dimensões humanas. Para isso, recorre a quatro perspectivas: a exegese do termo, a história das primeiras comunidades cristãs, o ponto de vista da Teologia - diferenciando-o da noção de Graça - e a abordagem antropológica, associando-o com a noção de dádiva, numa abordagem maussiana. Palavras chave : Ágape, Cristo, dádiva, Teologia, Antropologia Abstract The text aims at reflecting, from an ontological perspective, on the relationship between the concept of agape (Christian love) and other human dimensions. In order to do so, it resorts to four perspectives: the exegesis of the term, the History of the first Christian communities, the Theology point of view – that distinguishes the notion of agape from that of Grace – and the Anthropological approach – which associates said notion to that of Gift, as comprehended by Mauss. Keywords : Agape, Christ, Gift, Theology, Anthropology Qual é a especificidade do ágape frente às outras relações humanas? Para responder a essa questão, de ordem ontológica no sentido aristotélico 1 , quatro tempos perfazem este * Tradução: Tatiana Machado Boulhosa; revisão: Marcelo Camurça. ** Mestre de conferências na Faculté de Sciences Sociales et Economiques do Institut Catholique de Paris e da Sciences-Po Paris. 1 Aristóteles escreveu em sua Metafísica (Livro I, I): estudar o ser enquanto ser. Nosso desejo é o de precisar os fundamentos da ordem das coisas do ágape, outra forma de dizer que se propõe os princípios primeiros (Aristóteles 1991:123). pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 70 Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 artigo. O primeiro se interessa pela exegese do termo ágape. O segundo evidencia o contexto das primeiras comunidades cristãs segundo os historiadores do período. Por extensão, o terceiro salienta alguns traços destacados do ágape do ponto de vista teológico, diferenciado-o da noção de graça. Por fim propõe, como síntese, uma abordagem antropológica do ágape e da graça na perspectiva maussiana. Da exegese A exegese coloca em evidência duas maneiras de definir o ágape, uma positiva e outra, nela embutida, negativa. Para a definição positiva, a obra de referência é o trabalho de Ceslas Spicq: O Ágape no Novo Testamento. Análise de textos . No final da década de 1950, esse dominicano, professor da Universidade de Friburgo, na Suíça, escreveu esse estudo magistral em três volumes, ao longo dos quais analisou todos os empregos do termo ágape e seus derivados, contextualizando-os um a um ao longo dos textos neotestamentários. Para esse trabalho pouco conhecido, chama-nos a atenção Émile Poulat na conclusão de seu último livro, nos seguintes termos: essa caridade à qual o padre Ceslas Spicq dedicou aos estudos acadêmicos (POULAT 2009:26). Seguindo a leitura dessas três obras de autoridade sobre o ágape, eis aqui algumas características importantes para nossa argumentação. O termo ágape aparece 117 vezes no Novo Testamento e três vezes no Velho Testamento. O primeiro volume trata particularmente o ágape nos Sinóticos e nos Atos dos Apóstolos; o segundo se interessa por esse mesmo tema nos escritos epistolares de Paulo, de Pedro e de Judas; o último analisa em particular o ágape no Quarto Evangelho e nos escritos joaninos. Se não cabe aqui reconstituir o conjunto dessas reflexões, é possível, porém, destacar algumas de suas características principais, importantes para nosso estudo. O ágape é uma noção bastante complexa, posto que os Evangelhos utilizam a mesma palavra para a predileção do Pai por seu Filho, a compaixão do bom Samaritano, o respeito e a ligação do centurião pela nação judaica, o gosto dos fariseus pelos primeiros lugares e a virtude por excelência dos discípulos de Jesus Cristo. Assim sendo, o ágape se apresenta como o mais nobre dos amores em duas direções: para com Deus e para com os homens nos escritos neotestamentários, variando conforme o texto. pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 71 Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 Nos Evangelhos Sinóticos, o ágape é uma ligação inata, lúcida e manifesta; gratuita da parte de Deus e, por sua vez, completamente impregnada de reconhecimento por parte dos homens; espontânea, desinteressada e terna vis-à-vis ao próximo (SPICQ 1966a:173-174). Ela conhece seu ponto supremo de perfeição no amor aos inimigos , no perdão . Querer o bem para seus inimigos, rezar por eles e prestar-lhe serviço é uma generosidade perfeitamente gratuita que não motiva nenhuma amabilidade no próximo. A partir disso, vemos que a caridade não é nem uma paixão, nem uma simpatia qualquer. Ela se enraíza, antes, no coração, é um “desejo pelo bem puro e bastante espiritual . Nesse último caso, o caridoso é aquele que está imbuído do ágape, que quer e faz o bem para aqueles que lhe querem e lhe fazem o mal (SPICQ 1966a:170, 174). Nos escritos de Paulo, o ágape, de origem divina, inserido no ser do cristão no dia de sua regeneração batismal, é o valor essencial que se liga ao pneuma, ou seja, à faculdade religiosa mais elevada do homem, aquela precisamente destinada à comunicação com Deus, a receber suas luzes, sua graça, seu dom de vida (SPICQ 1966b:283-284, 287). No quarto Evangelho e nos escritos joaninos, o ágape é amor de respeito , amor delicado , amor de predileção , amor de intimidade , amor de misericórdia e amor de dom entre o Deus Pai e o Deus Filho, entre Jesus e seus discípulos e também entre Deus e o mundo, porque Deus é amor (SPICQ 1959:313-324). No fundo, o ágape no Novo Testamento designa ao mesmo tempo esse amor de Deus pelo homem e esse amor fraternal entre os homens, e constitui uma exortação a amar tanto a seu próximo quanto a seu inimigo. Esse é o ponto de partida da mensagem de Jesus, inovando, dessa forma, o Judaísmo. De fato, nós encontramos o pedido para que se perdoe o inimigo (Eclo 28, 6), para que não se lhe recuse o pão (Pv 25,21), para que não se responda o mal com o mal (José e Aseneth 28,14) e para que se lhe faça o bem (Testamento de José 18, 2), mas não a exortação a amar seu inimigo. A radicalidade desse apelo parece não ter precedente no mundo judaico. Sobre essa exigência incondicional, Jesus embasa, entretanto, sua palavra e sua legitimidade, recorrendo à partilha fraternal, à divisão do pão (MARGUERAT 2000:38-39). A esse respeito, Ceslas Spicq ressalta que, nas primeiras comunidades cristãs, pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 72 Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 era costume oficial da Igreja exprimir a caridade de todos seus membros através de dois atos, não equívocos de sua ternura religiosa e de sua união; por um lado, eles se saudavam uns aos outros e se abraçavam amorosamente 2 ; por outro, eles se reuniam para comer ao redor de uma mesa comum, tomando consciência de sua fraternidade. Porque é a caridade que inspira essa reunião e essa comunhão, suas refeições são chamadas de ágapes 3 (banquetes/comunhão) 4 (SPICQ 1996b:362-363). Intrínseca à definição positiva do ágape, que exorta o fiel a colocá-la em obra, há uma definição negativa apontada pela exegese. A ausência do ágape leva, efetivamente, a uma sanção, a um julgamento definitivo: trata-se de algo que pode ser visto em todos os casos que analisam essa ética de partilha das primeiras comunidades cristãs (MARGUERAT 2007:271). Assim, nos Atos dos Apóstolos atribuídos a Lucas e redigidos ao redor do ano 80 de nossa era, duas crises atravessaram a idade de ouro das primeiras comunidades cristãs. Elas tiveram um ponto comum: ambas se originaram de uma situação econômica que dizia respeito ao dom comunitário - não doar tudo afasta a salvação. Por um lado, houve o caso dos helenistas, grupo que, aparentemente, surgiu depois que os hebreus se recusaram a doar para as viúvas de língua grega que passavam necessidades. Segundo os helenistas , eram as viúvas deles menosprezadas na distribuição diária das esmolas (At 6, 1) 5 . Por outro lado, houve o desvio de Ananias e de sua esposa Safira (At 5, 1-11). Em que consiste isso? Quando as pessoas desejavam se tornar membros da comunidade cristã, eles deviam vender seus bens e depositar o montante adquirido com a venda aos pés dos 2 Ver Primeira Epístola de Pedro (5, 14), escrita ao redor de 70-80. 3 Ver Epístola de Judas (verso 12), escrita ao redor de 80-90. 4 O termo banquete, quando empregado para as refeições comunitárias das primeiras comunidades cristãs, em francês é agape , um homônimo do termo agapè , termo de origem grega sobre o qual versa o artigo. O jogo de palavras é perdido com a tradução, mas deve ser levado em conta durante a leitura (N.T.). 5 Para as passagens bíblicas, segue-se a tradução porposta por Huberto Rohden em Novo Testamento (São Paulo: Martin Claret, 2006) (N.T.) pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 73 Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 apóstolos, que o distribuíam na comunidade. Foi o que fizeram Ananias e Safira, mas eles conservaram uma parte do montante si. Pedro, sabendo disso, interrogou a um e depois a outra e, como eles não responderam, um e depois a outra morreram no campo. Foi então que vivo temor se apoderou de todos os que tal ouviram (At 5, 5). Essas duas crises situam-se no texto logo depois do autor dos Atos desenvolver seu ideal de comunidade cristã: Os crentes, porém, estavam unidos e tinham todas as coisas em comum. Vendiam suas propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um (At 2, 44-45) ou A multidão dos crentes era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade sua nenhuma das coisas que possuía, mas tudo era comum entre eles. [...] Distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade 6 (At 4, 32; 4, 35). Para o exegeta Daniel Marguerat, ao narrar essas duas crises, Lucas faz saber a seus leitores que o pecado original na Igreja é um pecado de dinheiro. A relação dos crentes com seus bens adquire uma dimensão escatológica. Trata-se de instituir a ética da ágape no seio das condutas cristãs nas primeiras comunidades: à luz do julgamento de Ananias e Safira, prefiguração do julgamento escatológico, a ética da partilha dos bens reveste-se de gravidade extrema. Mammon (Lc 16,13), destruidor da vida, é também destruidor da Igreja (MARGUERAT 2007:272-273). Nas primeiras comunidades cristãs Quid justamente a prática do ágape (banquete/comunhão) no cotidiano das primeiras comunidades? As primeiras comunidades cristãs conheciam uma racionalização dos ritos, uma organização regulamentar segundo duas direções e cujo modelo era o que se passava em Jerusalém. Mesmo que disponhamos de poucas informações e textos para refazer os primeiros passos da Igreja, o que chama a atenção dos observadores e dos historiadores é a rapidez com a qual os primeiros fiéis de Jesus se organizaram em comunidades (DHEILLY 1964). 6 Teria Marx, além de sua leitura do santo simonismo e do Filho Pródigo, em mente essa passem dos Atos quando descreveu seu ideal de sociedade comunista , na qual podemos escapar de vez do estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá escrever em suas bandeiras: De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades!? (Marx 1963: 1420) pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 74 Revista de Estudos da Religião setembro / 2010 / pp. 70-88 ISSN 1677-1222 Para o historiador Victor Sazer, o culto e a liturgia de todas essas primeiras comunidades cristãs exerciam dois domínios sobre o cotidiano. Em primeiro lugar, havia a eucaristia ou a divisão do pão. Ela se inscrevia, por um lado, na continuidade da tradição judaica, mas, por outro, inovava-a. Continuidade entre a refeição judaica, a mais privilegiada sendo a da Páscoa, e a eucaristia dos cristãos, porque em ambos os casos havia a divisão ritualística do pão e a ação de graças , benção ou berakha . Inovação porque a eucaristia acontecia fora do espaço da refeição nas primeiras comunidades cristãs. Em segundo lugar, essas primeiras comunidades cristãs adaptavam seus cultos conforme anunciavam o Evangelho entre os pagãos, a fim de lhes converter. A dimensão querigmática tornou-se um motor privilegiado das práticas cristãs (SAXER 2000:437-489). Para Étienne Trocmé, a vida nas comunidades cristãs marcou-se, desde suas origens, por dois tempos marcadamente cotidianos: em primeiro lugar, dividir o pão de maneira cotidiana; em segundo lugar, as reuniões promovidas nas casas comportavam uma proclamação da palavra, um ensinamento dado pelos dirigentes à comunidade (TROCMÉ 2000:65). Para Vittorio Fusco, os primeiros cristãos organizaram por sua vez, uma comunidade material com serviços, servidores ou diáconos . Nessa comunidade, a refeição cotidiana e a prática da proclamação da palavra eram primordiais. A questão não é apenas criar novos fiéis com uma organização eficaz (partilha de bens e de propriedades, transmissão de uma mensagem), mas também testemunhar a fé através dos atos interpessoais de caridade (FUSCO 1995). Para Charles Perrot, duas atividades religiosas, duas modalidades cotidianas de expressão da comunidade, dois tipos de serviços distinguem-se a cada dia: aquele da palavra e aquele das mesas (PERROT 2000:158). Por um lado, há a implantação e o apoio ao ensino, à transmissão de uma mensagem; por outro, há a comunhão fraternal presente nos banquetes, ou seja, o dom-partilha da refeição, a divisão do pão cotidiano 7 . 7 O batismo, igualmente, é um rito praticado regularmente nessas primeiras comunidades, mas ele não se repete, a cada dia, por toda a comunidade, ao contrário da divisão do pão e do ensino, o anúncio da palavra. pucsp.br/rever/ rv3_2010/t_bobineau.pdf 75
Posted on: Sun, 10 Nov 2013 13:46:08 +0000

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