Se tiver paciencia le ai Quando o sangue empoça Luiza - TopicsExpress



          

Se tiver paciencia le ai Quando o sangue empoça Luiza Furquim Maria Clara Mattos Dois homens são levados ao cofre pelo gerente para recolher o que o malote deixou ainda pela manhã. São três e meia da tarde e o banco já não está tão cheio como na hora do almoço. Dos três homens, o que enverga o terno parece ser o mais assustado. Treme como uma vara verde. Só os mais observadores perceberiam o verdadeiro motivo de seu nervosismo: foi ele quem deu a fita. Quando for fazer o B.O. vai colocar alguns números a mais do que os ladrões realmente levaram. Golpe do seguro. As sirenes sinalizam a chegada da polícia. Todos se entreolham. Horas de negociação e o primeiro tiro. Horas de negociação e o primeiro tiro. Depois de uma seqüência interminável de chumbo trocado, sinto meu braço esquerdo quente. Fui baleado, mas ainda tenho forças para me esconder e atirar. Se eu matei alguém? Não sei. Posso ter matado, afinal era eu ou eles. A morte é solução para muitos problemas. ************* Esta é a história de homens que o acaso, por motivos que não nos compete discutir, colocou de lados opostos da lei. Ocorre aqui nomeá-los de acordo com um delicado eufemismo para que não se sintam ofendidos. Os conhecedores do crime. Seja para praticá-lo ou para combatê-lo, cada qual está armado com argumentos em defesa de sua legalidade. Sem taxar lados ou opostos, apresentemos aqui os personagens. Deputado Conte Lopes, ex-capitão das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota); o cantor de rap Djalma Oliveira Rios, conhecido na periferia como Cascão, que cumpriu oito anos de cadeia por assalto a banco, e um terceiro senhor que prefere não ser identificado, cuja assinatura se encontra em 14 mortes que ainda não caducaram. Cabe aqui esclarecer que é tão improvável essa reunião de personalidades que só pode existir no armistício forjado pelas palavras. Caso se encontrassem fora desses limites, é provável que se matassem. Passemos então aos pormenores e, nas palavras de um homem cínico, que nos seja permitido tirar o melhor partido de um mau assunto. O ex-capitão por duas vezes condecorado pela Rota hoje passa boa parte do dia entre seu gabinete, no segundo andar da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e o plenário, embora quisesse ser jogador de futebol quando mais jovem. Os anos de sedentarismo não lhe foram particularmente favoráveis. Gordo, com o terno claro e o relógio de ouro, sua figura está mais para um político por excelência do que para um policial. No móvel à direita de sua mesa, acomodado em uma maleta escura, encontra-se o inseparável Taurus prateado, “um ponto 40”, seja lá o que isso significa. Na parede do gabinete, ao lado da porta, um quadro com a fotografia ampliada de Conte com Thabata, de apenas dois meses, em seu braço. O caso do “bebê refém” aconteceu em 18 de fevereiro de 1987, em Mogi das Cruzes. Nesse dia, dois estudantes de engenharia do ITA (Eiji Ishisaki e Pascoal Katmusi Ishii) colocaram em prática o seqüestro de Luciana Lima Eroles e da filha Thabata Larissa. O plano, que ia bem, começou a dar errado quando o irmão de Luciana chegou à casa acompanhado de policiais. Teve início a operação policial, que durou cerca de oito horas, parte delas debaixo de um temporal violento. A tática do major em comando era forçar a rendição por cansaço. Até o bispo da cidade estava no local. Foi quando Conte chegou, em trajes civis, misturando-se à multidão. Os estudantes estavam trancados em um quarto, com a porta fechada, quando ele entrou na casa. No livro Matar ou Morrer, o deputado relata que um dos seqüestradores atirou contra ele à queima-roupa, mas acabou errando. “Apontei-lhe minha arma e acionei o gatilho. Ouviu-se um estrondo. Com o impacto do projétil, o corpo do seqüestrador foi lançado para trás antes de cair ao chão. O tiro atingiu-lhe a face, de baixo para cima.” O outro estudante, com o punhal apontado para a criança, seria o próximo a morrer, com evez um tiro na cabeça. Antes disso, o bebê havia sido esfaqueado e as vísceras começavam a aparecer. A foto na sala de Conte mostra que Thabata sobreviveu. O jornalista Caco Barcellos conta uma versão um pouco diferente em Rota 66 – A História da Polícia que Mata. Um dos capitães envolvidos na operação disse-lhe que os estudantes não chegaram a disparar o revólver. “A iniciativa do ataque partiu de Conte Lopes. De repente ele sacou a arma que levava em uma bolsa tiracolo e atirou a curta distância contra o homem com uma máscara no rosto (...) o deputado voltou a disparar a arma para acabar de matar o homem que estava no chão já gravemente ferido”, escreve. Se considerarmos essa segunda versão, Conte Lopes teria cometido um crime. O que se pode dizer é que o policiamento constantemente coloca seus autores em situações nas quais o bem nem sempre resulta só do bem ou mal só do mal. Existe aí um dilema moral autêntico, um típico “dilema de Dirty Harry”, do qual não se pode sair inocente, não importa o que se faça. Mas essa é outra história. Para Conte, que afirma ter agido sempre em legítima defesa, não há crime. Ele estava cumprindo o dever. "Você não está matando, está agindo dentro da lei." É como o executor do sistema penitenciário dos Estados Unidos. Alguém tem que fazer esse trabalho. Parece frio, não é mesmo? Nos anos 80, Conte foi morar na Vila Galvão, em Guarulhos, cercado por quatro favelas. À noite, dormia com a metralhadora ao lado da cama, porque cada dia trazia uma nova ameaça de morte. "A frieza é porque nós nunca mudamos caminho nenhum, nosso caminho sempre foi isso aí." "Você tem que lidar com a realidade." Em outra parte da cidade, mais alguém diz ter matado em legítima defesa. 14 vezes. Manoel (nome fictício) encara assalto como um trabalho. "Você tem que ser frio. Psicologicamente, você tem que estar preparado." Conter uma vítima de roubo nunca lhe exigiu uma ação definitiva como a morte - nada que uma coronhada na cabeça não resolva. Mas quando o assunto é família ou hombridade, a morte é a única solução. Ele não fala muito sobre isso temendo ser reconhecido e procurado por parentes de suas vítimas, alguns influentes na política. A polícia também pode ir ao seu encalço, pois que um crime de homicídio só prescreve depois de 20 anos. Mas esse homem não se considera em dívida com a lei, pois afirma ter sempre seguido a sua ética. Sempre esteve certo e fazia mesmo questão de prová-lo à futura vítima. Sua dívida é apenas com Deus. Por isso ele acende velas e reza pelas almas daqueles que matou. "Num determinado dia" estava em casa de sua mãe, à mesa, jantando, quando chegou um sujeito armado à procura de seu cunhado. A senhora sua mãe foi atender o portão, que foi jogado contra ela, arremessando-a no chão, degraus abaixo, em meio a xingamentos e ameaças. Manoel gritou. "Quando [ele] ouviu a minha voz ele sentiu o choque. Eu sabia onde encontrá-lo." "Quando menos esperou", nosso homem foi ao seu encontro, chamando-o para uma conversa. Depois de toda a reprimenda verbal, que o outro escutou até o fim, disse apenas "Vou te matar agora, certo?". O sujeito morreu com a arma na mão, um tiro na cabeça e outro no tórax. Morte instantânea. Acabou. "Esse problema eu já não vou ter mais." Como o crime teve testemunhas, nosso homem foi procurado pela polícia. Pagou 50 (mil) dinheiros e ficou livre. Manoel é um homem alto, gordo, cinqüentão e de aparência comum em sua camisa rosa listrada levemente apertada, o jeans esverdeado e o tênis Nike. Se você for uma mulher, ele vai abrir a porta e te deixar passar na frente. Nasceu na periferia de São Paulo, entre Carapicuíba e Taboão da Serra. A mãe é doméstica e o pai, om quem trabalhou no Ceasa descarregando caminhões de batata, cebola, alho, foi um trabalhador informal até morrer. Sua infância não foi das mais confortáveis. Os crimes começaram na década de 70, aos 16 anos. Eram roubos de carro, justificados pela necessidade e pela vontade de aprender a dirigir. Sua primeira arma foi um Taurus calibre 38, fácil de conseguir se você souber onde procurar. Manoel serviu no exército por menos de um ano. Foi expulso. Depois dos três meses de adaptação, formou um quadrilha que saía nas ruas com as armas oficiais. Não é uma coisa simples. Veja bem, todo o arsenal fica numa espécie de paiol, o Corpo de Armas, e é conferido por um superior de plantão. Depois dos assaltos, a quadrilha tinha que devolver a artilharia sem que ninguém percebesse. O responsável pelo armamento, claro, fazia parte do esquema. Foram mais de 40 roubos, dos quais quatro foram provados. "Alguém traiu a gente." Para Manoel, a expulsão é a pior represália que pode existir, já paisano, na frente de todas as companhias, que te viram as costas enquanto você é entregue à polícia. Destino: DEIC. Seis meses mais tarde, Manoel formou outra quadrilha. "Não podia faltar dinheiro", fosse para sobreviver ou para curtir a vida, comprar carros, roupas e freqüentar boates. Dos quase 17 anos de cadeia, entre Hipódromo - uma espécie de purgatório, de onde alguém pode ir ou não para uma penitenciária - Pinheiros e Casa de Detenção, o Carandiru, Manoel traz alguns conceitos a primeira vista pouco defensáveis, mas que têm lá suas lógicas internas. Na cadeia tem que ser homem, não pode ter falhas no crime. Se você não for correto, perde o estatuto. Matar pode sim, mas tem que assumir. Existe uma burocracia: antes, há uma reunião entre você, o representante do partido (PCC) e outros presos de reputação, que têm palavra dentro do "metier", onde você explica porque vai matar. Manoel pegou três rebeliões na cadeia, seu inferno particular. Apanhou, teve medo de morrer, sufocou em gás lacrimogênio. Por 30 dias, ficou trancado com mais sete presos no castigo - um quarto do tamanho de um banheiro - "pra comer, tomar banho, dormir, até fazer as necessidades". Em 1999, no Carandiru, tinha seu lugar no Pavilhão 8, onde ficavam os reincidentes. Em um mês viu 34 mortes, por vezes um aglomerado de carniceiros contra apenas um preso: cortam-lhe a cabeça, arrancam-na, desmembram-no e jogam fora. "Tinha que procurar ser político", conta. No pavilhão ao lado, o 9, quem também cumpriu parte de sua pena na prisão foi Djalma Oliveira Rios, o Cascão. Dos oito anos em que ficou detido, passou por outras tantas penitenciárias incluindo Presidente Bernardes, o "parque dos monstros", conhecida por acolher presos taxados de animais e que as penitenciárias comuns não aceitam. "Fiquei num monte de cadeia. Ficava viajando. Quando você é um preso problemático, ninguém quer você no lugar. E eu era preso fujão, não aceitava o fato de estar preso. Eu sou ansioso, nunca fui paciente. Em vez de ficar procurando guarda cochilar, eu já era de por as armas pra dentro e tomar logo na raiva. Espírito de assaltante." Nasceu em 1971 no Capão Redondo, dentro do táxi que levaria sua mãe ao hospital. "Por isso que eu sou avexado." Aos 14 anos cometeu seu primeiro crime, roubo de moto, e aos 15 teve sua primeira passagem pela Febem. Foi preso pela primeira vez em 1991, e depois em 1994, ambos flagrante de roubo a banco e posto bancário. O resto ele não conta. Cumpriu pena e já em liberdade começou a escrever e cantar sua música, a princípio abrindo os shows dos Racionais. É formado em Direito pela Unisa. Hoje é rapper do grupo Trilha Sonora do Gueto e, mais do que nunca, um Vida Loka. Frenético. Cascão nomeia a si mesmo como um "revolucionário". Acredita que a gente do gueto vive em regime de "escravidão democrática", massa de manobra do laboratório de pensadores em Brasília. Mas essa revolução é também a tradução da ganância. "Olhei pro horizonte e vi que o horizonte era maior do que eu. Eu não ia conseguir fazer revolução conforme eu queria." É então que entra a ambição. Quando percebeu que não ia conseguir mudar a vida da comunidade, "arrumei mais três loco (sic) de menor e virei assaltante de banco e mudei, pelo menos, a vida da minha família". É o que ele chama de "revolução egocêntrica" porque, quando se vê o dinheiro de verdade, "o diabo cega". Adeus propósito social. Quando o assunto é matar, Cascão fala sobre três fundamentos que viu durante seus anos de crime e cárcere. Na falta de nome, poderíamos chamá-los de fundamentos sociais do assassinato. Primeiro fundamento: "matar por dinheiro no mundo do crime é pilantragem. Isso é repugnável (sic) na periferia!" Transforma bandido em cangaceiro, matador de aluguel. Esse "mão branca" é o preguiçoso que "nem estudou pra virar polícia nem teve coragem de virar ladrão". São conhecidos como pés-de-pato e matam a esmo. Segundo fundamento: policial, esses "babaca" que anda com a arma pendurada na cintura, mata porque a farda lhe dá autonomia. "Conte Lopes era um", começa Cascão. "Ele matava porque era dono da verdade." Terceiro fundamento: "ladrão só mata na última circusntância". Em termos práticos, são situações em que alguém atira contra você - "antes ele do que eu" - ou mata seu irmão, estupra sua irmã. O tipo de coisa que costuma acontecer a Manoel com certa freqüência - e que ele credita ao azar. Aí o código de ética manda. "Pescoço no chão." Esse terceiro fundamento é a base do estatuto do crime, cuja máxima é "Sangue se paga com sangue", uma versão moderna da Lei de Talião. Se a morte não for justificada - e os critérios são dano à moral ou à família - deve ser cobrada. É como diz a música do próprio Cascão: "se o sangue dele jorrar, o meu vai empoçar", ou seja, alguém pode vingar uma morte tida como desonesta. Fazer justiça com as próprias mãos se torna legal. É o que está por trás do "Vou te matar agora, certo?", de Manoel, ou mesmo de Conte Lopes, quando diz que "nunca matei um inocente". O que muda no último caso é o critério: "Se tiver um policial meu que foi baleado, que morram todos os bandidos. Se um pai de família ou uma dona de casa foi baleado eu prefiro que morram todos os bandidos". Mais uma vez, quis o acaso que a lei fosse uma linha mais tênue do que deveria. Ora separa, ora aproxima. Em fronteiras pouco definidas surge um novo arbítrio que parece se sobrepor à norma. É tão defensável quando condenável. Só resta ser cínico. Nas palavras de Conte Lopes, "cada um chora seus mortos".
Posted on: Tue, 06 Aug 2013 03:48:52 +0000

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