Sobre a Síria. Diante de tanto horror, segue um (longo) desabafo. - TopicsExpress



          

Sobre a Síria. Diante de tanto horror, segue um (longo) desabafo. POR QUE ME PERSEGUES? Uma das coisas que mais me entristecem é perceber como a ignorância nos torna insensíveis frente às causas alheias. Não que o conhecimento, por si só, venha a salvar a humanidade, mas sem ele, tudo fica mais difícil. Hoje as manchetes de diversos jornais mundo afora falam sobre “O Massacre na Síria”. Mas, o que acontece na Síria? Onde é e como é a Síria? Como são os sírios?! Os sírios são um povo resultante de mais de quatro mil anos de ocupação ininterrupta naquele território entre os Planaltos da Anatólia e da Armênia, a Mesopotâmia e o Mar Mediterrâneo. Por ali, passaram persas, gregos, romanos, sassânidas, bizantinos, cruzados e, definitivamente, os árabes com sua civilização islâmica. Todos estes povos deixaram importantes patrimônios materiais e imaterais para o povo sírio. Alguns são até mesmo reconhecidos como Patrimônio da Humanidade (ver o link no final). Damasco, sua capital, há pelo menos 3 mil anos é parada obrigatória para quem deseja cruzar o Oriente Médio. Importante centro de estudos, compras e peregrinações, ou seja, um lugar de trocas, lugar onde se deixa algo e se leva outra coisa. Talvez por isso, por conta dessa posição estratégica naquela região, a Síria sempre foi objeto de cobiça, sempre foi um país de misturas. Os sírios não são todos muçulmanos sunitas: há por ali xiitas, alauítas, drusos e cristãos (estes com mais ou menos 10% da população). O árabe é a religião oficial, mas fala-se também o curdo e até o aramaico, a língua de Jesus. Depois de séculos vivendo sob o jugo pacífico e próspero do Império Otomano, a Síria é dominada pelos franceses após a Primeira Guerra Mundial e o fim do Império Otomano. Depois da Segunda Guerra Mundial, após sua independência diante da França, os sírios tiveram que conviver com conflitos constantes, em especial com Israel, criado em 1948 em sua fronteira ao sul. Aí você pensa: “Pronto, lá vem esse sociólogo querendo colocar a culpa em Israel...”. Calma, ainda há história a ser contada. Os sírios jamais aceitaram o Estado de Israel tal como ele foi imposto pelas potências ocidentais – e aqui, preciso dizer, junto-me a aos sírios. Esse é o elemento que cria a atual antipatia ocidental sobre a Síria e os sírios, povo que enviou levas e mais levas de imigrantes para o Ocidente, especialmente para a América. Em São Paulo, por exemplo, os sírios (entre os que vieram no período entre-Guerras, quase todos cristãos) prosperaram em atividades comerciais, criaram instituições de grande prestígio (como o Hospital Sírio-Libanês, o Esporte Clube Sírio ou o Centro de Cultura Árabe Sírio) e mantiveram vínculos com sua terra natal. Sem a chegada dos sionistas europeus em terras onde populações de língua árabe e adeptas dos três grandes cultos monoteístas (Islã, cristianismo e também judaísmo) viviam há séculos, certamente os sírios não seriam vistos, hoje, como estranhos ou malvados pelo Ocidente. Acelerando a história, os sírios lutaram contra os sionistas (chamados de israelenses depois de 1948) em todas as guerras que lhe foram impostas. Na guerra de 67 (Guerra dos Seis Dias), os sionistas tomaram dos sírios as Colinas de Golan, lugar estratégico para a defesa do território sírio e para a observação, no lado israelense, de toda a Galileia, importante região agrícola. De lá para cá, sabe-se que os sírios tiveram grande influência no território libanês, principal refúgio de centenas de milhares de palestinos expulsos de suas casas pelos sionistas ou fugidos pelo terror de suas ameaças. Sírio e Líbano sempre foram “pátrias irmãs”, mas essa relação se deteriorou naquela região após a Guerra dos Seis Dias. Israel avançou sobre o território palestino e o Líbano se tornou um caos por lutas entre libaneses nacionalistas e palestinos recém-chegados. Outro fator importante aqui foi a quebra da coesão interna da sociedade libanesa, baseada num equilíbrio e divisão de poder estatal entre a maioria cristã e a minoria muçulmana (que se tornou maioria após a chegada dos palestinos, que hoje em dia já são milhões e, pelo Direito Internacional, têm direito de retorno às suas casas onde hoje está Israel, uma das questões mais tensas nos atuais acordos de paz mediados pelo Ocidente entre israelenses e palestinos). O Líbano, por conta de sua deterioração enquanto sociedade e Estado-nação (foi invadido por Israel duas vezes nos últimos 30 anos, sofrendo inclusive massacres de sua população civil, jamais voltou a se colocar contra os israelenses. A Síria, apoiando no Líbano o Hezbollah – partido e grupo militar surgido como resistência às invasões israelense e aos maus-tratos locais sobre a população palestina – e recebendo apoio do Irã que, mesmo xiita e não-árabe (é persa) também não admite as injustiças contra os palestinos, foi incluído pelo governo George W. Bush no chamado “Eixo do mal” (junto com o Irã e Coreia do Norte): países potencialmente perigosos aos interesses do Ocidente. Até a primeira invasão israelense no Líbano (1982) e, principalmente, após esse anúncio do governo Bush, a qualidade de vida dos sírios sofreu grande impacto, especialmente pelos embargos e perda de parceiros comerciais impostos pelo Ocidente. Mesmo assim, os sírios mantiveram uma boa qualidade de vida se comparados com os povos árabes vizinhos. Tinham tudo o que o um cidadão médio brasileiro tem: casa, comida, televisão, celulares, vagas em escolas, iam ao culto religioso em suas mesquitas ou igrejas, valorizavam a vida familiar, festejavam quando podiam, jogavam e adoravam futebol, etc. O país sempre foi um grande recebedor de turistas também, muito por conta de suas inúmeras construções milenares, de diversas civilizações. Isso mostra sua ligação com o mundo (que historicamente sempre houve), não seu isolamento. Importa dizer ainda que, durante um curto espaço de tempo onde prevaleceu objetivamente um pan-arabismo no Oriente Médio (1958 – 1961), a Síria formou com o Egito um único Estado, a RAU (República Árabe Unida). Por desacordos e um golpe de Estado, a união se desfez, mas, diferentemente dos egípcios pós-fracassos da Guerra dos Seis Dias e Guerra do Yom Kippur, os sírios não trocaram a legitimação do Estado sionista pelo território que haviam perdido na guerra. Desde então, ambos os países viveram ditaduras e o Egito experimenta, também nos dias de hoje, parte dos acertos políticos que muito têm a ver com as opções políticas de seu povo nas últimas décadas. Essas guerras civis em ambos os países não são meras coincidências – nada é coincidência, na verdade. Nas recentes revoluções ocorridas no mundo islâmico, muitos perguntavam se Bashar Al-Assad cairia – ditador sírio cuja família está no poder há quarenta anos, justamente os anos mais difíceis na história moderna da Síria. Isso interessava especialmente a israelenses e estadunidenses, seus maiores parceiros. Também aos turcos (muçulmanos, mas não-árabes), com quem os sírios sempre tiveram problemas por conta da questão curda (maior povo sem Estado no mundo) e das águas dos rio Eufrates, que nasce na Anatólia e é controlado pelos trucos. Assad não caiu, e a guerra civil começou. Assad é um ditador que, até onde li, não demonstra ter muita sensibilidade social e gosta mais de seu poder do que de seu povo. Até aí, ele se compara com grande parte dos líderes mundiais. Do outro lado da trincheira, estão os chamados rebeldes. Sobre estes, não se sabe muito, mas, até onde li, são grupos que sempre fizeram oposição ao governo Assad, algumas minorias religiosas que se julgavam injustiçadas e outros setores oportunistas. De ambos os lados, há sede de poder e muita violência. No meio disso, milhões de pessoas que gostariam de viver em paz e participando politicamente das principais questões de seu país e do mundo, semelhante a quase todos os povos do planeta. Este é o ponto: os sírios são, em suas aspirações políticas e estilo de vida, um povo semelhante a tantos outros. Talvez sejam mais ligados a um patriarcalismo familiar do que são os suecos ou neo-zelandeses, mas isso é comum na América Latina e mesmo nos EUA, e esses países conseguem tocar suas histórias com certa autonomia. O problema maior dos sírios é o incômodo que eles causam aos israelenses, seus vizinhos do sul. Isso não pode ser questionado ou esquecido. Foi a partir dessa questão que sua grande história e que seus valores construídos em milênios (alguns até semelhantes aos nossos, com essa ideia de mistura cultural) foram esquecidos e hoje, por ignorância, os vemos como malvados, estranhos, violentos. A quem interessa a guerra civil na Síria? Quem ganha dinheiro com aquelas armas? Quem tem a perder com a estabilidade política do povo sírio? Pensemos sobre isso ao ler as notícias dos jornais. “Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues?” (Atos dos Apóstolos, Cap. 9, versículos 3 e 4)
Posted on: Thu, 22 Aug 2013 16:17:11 +0000

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