Sobre o episódio das santas quebradas, mais uma vez o bigodudo - TopicsExpress



          

Sobre o episódio das santas quebradas, mais uma vez o bigodudo transpira contemporaneidade: aquele que lida com monstros deve cuidar constantemente etc. É uma citação tão conhecida que nem vale a pena terminar, e se o fantasma de Nietzsche perdesse um átomo do bigode para cada vez que ela se faz necessária, não só já estaria imberbe, como sem a parte de cima do lábio superior. Muito barulho por nada. Se por um lado a disparidade entre os níveis de opressão representados pelo gesto iconoclasta, de um lado, e pelos milênios de perseguição misógina, de outro, torne no mínimo cínica a propensão de alguns católicos ortodoxos e simpatizantes a condenarem o "desrespeito" inerente ao ato, por outro falta às protagonistas e aos apoiadores do gesto aquela centelha ridiculamente pequena de bom senso a lhes dizer que um ato irracional se torna, por isso mesmo, sem sentido -- além de ter, nesse caso, sim, o POTENCIAL de irmaná-los, a longo prazo, àqueles de cujos ideais retrógrados buscam se distanciar. Não passa nem perto de ser lícito, parece-me, comparar a iconoclastia com o ímpeto simbólico de insurgência política (e estética, em certo sentido) que foi a queima dos sutiãs -- que nem aconteceu, na verdade, mas o importante aqui é a ideia -- em 68, como já vi gente comentando por aí. E não passa perto porque, ao passo que o sutiã -- a função intrínseca dessa peça do vestuário, como a do espartilho etc. -- concentrava, de per si, tudo aquilo contra o que o incipiente movimento feminista se insurgia, destruir uma imagem [tida pelos sectários de determinada religião como] sacrossanta não tem outro efeito simbólico senão o catártico, para quem a destrói, e mais um, o colateral, o que priva, para quem assiste, a revolta (aquele nicho da revolta, entenda-se) de legitimidade por ser um pequeno porém inconfundível atestado de que, sob determinadas circunstâncias, também ela mandará o racionalismo às favas e agirá movida pelo mais animalesco revanchismo. Não há nada numa imagem de santo que possa caracterizá-la como o epítome do establishment moral de uma sociedade, ou sua destruição como a libertação das amarras desse zeitgeist. Aventar o contrário me faz pensar naquele imperador chinês, Chi Huang-Ti, que ordenou que se queimasse toda a produção literária do território recém-conquistado por considerar que a autoria do inimigo tornava ideologicamente subversiva até a tinta com que fora escrita, e para que a história começasse a partir dele. Ou nos islâmicos extremistas queimando a bandeira americana. Lembro-me também de uma observação de Borges de que é possível, para certos fanáticos, odiar um país, mas inconcebível até mesmo para eles detestar as árvores, os animais e os rios dessa nação. Enfiar um crucifixo no cu para protestar contra a intolerância religiosa é, além de bizarro, uma confissão de extrema ignorância quanto aos ideais de tolerância do cristianismo (e não, não sou cristão nem nunca fui. Sou ateu.). E mais uma vez Nietzsche se faz presente, com sua genial frase de que o último cristão morreu na cruz. É evidente o porquê. Há passagens bíblicas, como em tantos outros "livros sagrados", que destilam intolerância, mas um religioso sensato (e não, isto não é uma contradição em termos), ou um curioso sem propensão a desqualificar sem análise ou a tomar a parte pelo todo, logo percebe que: a) elas têm caráter descritivo, e não prescritivo, carecendo, como qualquer documento histórico-sócio-cultural, de contextualizações, e sendo de uma estupidez aviltante intentar adequá-las a nosso modelo de sociedade contemporâneo; b) são COMPLETAMENTE ECLIPSADAS pelo exemplo supremo de tolerância e respeito que emanam do personagem central, o tal último cristão. Se a bíblia é um rio com focos de poluição aqui e ali, e se é preciso ser um oceano para receber em si um rio poluído e não se conspurcar, como queria Nietzsche, o personagem de Jesus é esse oceano. O que se deve intentar, creio, é que movimentos religiosos como o JMJ se pautem pelo exemplo DELE, num gesto de repúdio visceral ao menor vestígio de obscurantismo ou à adequação literal de um texto histórico que remonta a mais de 5 mil anos a este nosso contexto, 2013, século XXI. Do contrário, a iconoclastia pela iconoclastia, a profanação pelo vilipêndio, acabará se irmanando com a de Maomé, que destruiu os ídolos da Kaaba na invasão a Meca apenas para estabelecer, séculos depois, outra forma de iconodulia, esta, paradoxalmente, sem imagens.
Posted on: Mon, 29 Jul 2013 00:42:47 +0000

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