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TEXTO MUITO INTERESSANTE. LONGO, MAS VALE LER. Representação, Participação, Internet, Corpos Intermédios: desafios da democracia (não só) na América Latina, por Bruno Pinheiro Wanderley Reis É quase cruel pedir a um cientista político brasileiro para falar sobre os desafios da democracia na América Latina nos dias que correm. Nos últimos dias, tem sido difícil fazer outra coisa senão tentar acompanhar o noticiário, refletir sobre a melhor maneira de posicionar-se pessoalmente, e – sobretudo – debater no Facebook... Por outro lado, minha intervenção seria bem mais protocolar e convencional se não fosse isso. Sou muito grato aos organizadores do seminário pela generosidade de seu surpreendente convite, e pela ocasião de tentar organizar um pouco as ideias. Especialmente aqui, na casa que foi de Jorge Luis Borges. Assim, é inevitável que eu me ocupe sobretudo do que se tem observado no Brasil dos últimos anos, embora eu creia que os desafios se apliquem igualmente a toda a região. O principal desafio da democracia na América Latina foi, por muito tempo e na mente de muitas pessoas, o desafio de se produzir uma participação que se pudesse dizer “autêntica”, “autônoma” ou algo que o valha. Esse ideal se contrastava frequentemente com o diagnóstico de um sistema representativo tido por oligárquico, vertical, autoritário ou corrupto, conforme as ênfases próprias de cada autor. Houve tempo em que a esquerda rejeitava o valor, senão a própria ideia, da “democracia representativa”. À medida que preservava o protagonismo de uma elite política, a representação não poderia ser compatível com uma democracia, se fôssemos devidamente rigorosos quanto à acepção do termo. No mínimo, se produzia uma democracia manca, pouco democrática no fim das contas, particularmente se contrastada com o valor e a presumível autenticidade da “democracia participativa” (cf. Reis & Bueno 2006; Reis 2013). Talvez esse recorte já seja mesmo anacrônico, e pessoalmente ele não me agrada. Mas acredito que a remissão a ele pode ser importante para dar perspectiva a um esforço de diagnóstico do que se passa na América Latina e de nossos principais desafios, objeto desta mesa redonda. Pois, ao longo dos últimos quinze anos, temos assistido a uma impressionante multiplicação das formas e dos canais de representação política em nossas democracias, promovida pela ascensão ao poder de vários partidos ou agrupamentos políticos em boa medida exógenos ao sistema de representação parlamentar previamente existente. A atenção da imprensa estrangeira e nossas inevitáveis modas intelectuais talvez tenham tornado o caso de Lula e o PT no Brasil, assim como o de Evo Morales e o MAS na Bolívia, os exemplos mais visíveis de uma tendência a uma proliferação de canais de expressão mais ou menos institucionalizada de interesses de organizações civis na forma de conselhos consultivos ou deliberativos, fóruns de políticas púbIicas, “orçamentos participativos” etc. Estou seguro de que experiências igualmente importantes terão tido lugar pelo menos no Uruguai da Frente Amplio e no Chile sob a Concertación. Não vou me aventurar a especulações sobre o que se passa em toda parte, mas creio que manifestações próprias do mesmo processo (mais ou menos intensas, mais ou menos institucionalizadas) poderão ser identificadas recentemente também em vários outros lugares do continente. Ironicamente, essa institucionalização de novas formas representação política foi saudada pelos mesmos que ontem criticavam a democracia representativa. Naturalmente, essas pessoas tenderam, no início do processo, a apontar uma tendência à superação da “democracia representativa” por um esboço daquilo que poderia um dia vir a ser descrito como uma autêntica “democracia participativa”. Mas creio que a impropriedade deste recorte está clara a esta altura, e a própria literatura simpática a esses experimentos o reafirma cada vez menos, tendo substituído a reafirmação do ideal participativo pela discussão das possibilidades do controle democrático dos participante/representantes sob um processo hoje apresentado como “pluralização da representação”. [O caso do PT – a analogia socialdemocrata][2] Sob esse enquadramento, são grandes as analogias cabíveis com a experiência socialdemocrata europeia, anterior em quase um século. Em ambos os casos, trata-se de partidos exógenos ao sistema de representação eleitoral anterior, com origem externa aos parlamentos, poderosas bases sindicais, e considerável militância civil. Com esses ingredientes, o sucesso eleitoral significou, em ambos os casos, a formação e a promoção de novas elites políticas. Assim, a eventual ascensão ao poder termina por produzir – de maneira mais ou menos inevitável – inovações institucionais que propiciem a essas novas elites, exógenas, os espaços institucionais de que necessitam para implementar seu programa e exercer o mandato que obtiveram nas urnas. Pois ao chegarem ao poder, esses newcomers tenderam a encontrar os nichos de representação política, formulação de políticas e tomada de decisões ocupados por seus adversários. Não me refiro a assentos parlamentares apenas, mas principalmente aos chamados “anéis burocráticos” que ligam informalmente estado e interesses privados, e cuja operação na ditadura militar brasileira o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso descreveu. Num cenário como esse, é natural que o novo detentor do poder crie espaços que promovam a representação dos seus aliados na sociedade civil organizada. Com efeito, esses aliados irão exigir que o faça. De maneira um tanto irônica, a chegada desses novos atores ao poder inevitavelmente se exprime, acima de tudo, pela multiplicação das instâncias de representação política. Nesse aspecto particular, a experiência latino-americana recente não se distingue daquilo que se observou com a ascensão política dos socialdemocratas europeus, quase um século antes: pois a presença de arranjos corporativistas de intermediação institucional de interesses talvez tenha sido o principal legado político da experiência socialdemocrata na Europa (B. Reis 1995). Em ambos os casos, não faltou quem quisesse desqualificar a experiência como cooptação de lideranças civis por governos. Contudo, essa é sempre uma via de mão dupla. Lideranças civis tentarão emplacar suas demandas na forma de políticas públicas; e governos tentarão respaldar sua posição pela cristalização de apoio organizado na sociedade. Aquilo que a oposição chamará de cooptação, os presumíveis cooptados poderão legitimamente chamar de “conquista”, pela concretização de uma legítima demanda por um governo que lhes parecerá sensível a suas aspirações, e portanto um aliado a quem desejam apoiar.[3] Na linguagem de Claus Offe, porém, essa “cooptação” termina por se mostrar como um processo de co-responsabilização dos atores civis pelas políticas pelas quais eles tenham lutado. Todos esses partidos, lá e cá, ao optarem pela luta eleitoral, domesticaram-se, moveram-se rumo ao centro, fixaram compromissos, abandonaram cláusulas programáticas, burocratizaram-se e, enfim, corromperam-se em alguma medida. Mesmo a experiência peculiar do chamado “Orçamento Participativo” (OP) não deixa de corroborar o diagnóstico. Mais do que participação estritamente, o que se trata de promover no OP é a consideração dos interesses de grupos historicamente marginalizados no processo decisório – os habitantes das favelas e das periferias das grandes cidades brasileiras. Pois quando, a partir de 2006, a prefeitura de Belo Horizonte implementou o Orçamento Participativo Digital, ela quintuplicou o número de votantes (de 40 mil pra 200 mil), mas ficou evidente um efeito de elitização relativa do OP Digital, que propiciou justificadas contestações. O episódio explicitou a justificativa que pode realmente validar o OP: não a constituição de um canal para a manifestação espontânea (não-mediada politicamente) da população; e, sim, a abertura de uma possibilidade de manifestação para parcelas específicas da população, habitantes das vizinhanças mais pobres, que enfrentariam particulares dificuldades para se fazerem ouvir no processo orçamentário. Aludir a um ideal participativo poderá ter sido, talvez, uma racionalização proveitosa, com sabor universalista, de um compromisso político específico – ainda mais em tempos dados a eufemismos politicamente corretos. Ao fim e ao cabo, porém, mesmo com toda essa diluição ideológica, é preciso reconhecer que tanto a socialdemocracia europeia quanto os governos latino-americanos recentes têm resultados redistributivos importantes para exibir. O que terá produzido isso? Em ambos os casos, acredito ter sido menos a clareza programática ou doutrinária, e mais a intensidade do vínculo orgânico e a dependência até identitária de cada partido com associações civis – sobretudo organizações sindicais – representantes de trabalhadores manuais que ocupam estratos pouco elevados na divisão social do trabalho. [Hoje] Mas, além do “politicamente correto”, hoje vivemos também tempos de erosão da identificação partidária em todo o mundo. E, mesmo para as pessoas que ainda a têm, essa identificação partidária não pode mais ser concebida como uma espécie de “correia de transmissão”, em que o partido lança uma palavra de ordem, ou sinaliza uma mobilização, e sua “base” se vê prontamente nas ruas, engajada na luta que seu partido terá escolhido. Ao contrário, essa identificação significa, na melhor das hipóteses, uma orientação preliminar, que informa suas reações primárias a uma discussão política. O que as leva as ruas, hoje, como se pôde ver de maneira dramática no Brasil das últimas semanas (assim como no Magreb, na Turquia, na Espanha e em tantos outros lugares recentemente) é a indução descentralizada, “de baixo para cima”, feita por redes de amigos ou organizações de base, a partir das redes sociais na internet. Isso as leva às ruas de maneira espantosamente rápida, logrando em poucos dias uma mobilização que tradicionalmente levaria meses para se conseguir. Rápido demais, dizem alguns, porque frequentemente chegam às ruas antes que tenham clareza quanto a o que querem obter de lá. Mas podem derrubar governos aparentemente estáveis, como se viu de maneira inédita e particularmente veloz no caso pioneiro da Tunísia. Nesse contexto, não surpreende que essas mobilizações tendam a professar uma cultura refratária a organizações, cética quanto aos partidos, hostil aos políticos – e a nutrir uma profunda desconfiança em relação à representação política. Seria uma irônica revivescência do ideal da democracia participativa, agora – no caso do Brasil pelo menos – mobilizado contra aquelas mesmas elites que um dia (antes de chegarem ao poder, naturalmente) o professaram em praça pública, em nome da sociedade civil (organizada), contra o mesmo estado que hoje controlam. Apenas o eterno choque de gerações? Não creio. Ainda que sem o saber, a geração anterior professava o mesmo ideal tocquevilleano da “arte da associação”, cuja materialização se dá no controle democrático, institucionalizado, de governos, a partir da articulação de organizações civis intermediárias – uma variante liberal, voluntária, do mesmo elogio aristocrático de Montesquieu à importância dos “corpos intermédios”(les corps intermédiaires) como garantias sociais da liberdade frente à tirania. Embora sempre contestada pelo voluntarismo da esquerda, toda a tradição pluralista reafirmou até aqui essa tese. Do elogio às “filiações múltiplas” da sociologia política norte-americana, passando pela alusão um tanto hermética à “indisponibilidade das não-elites” por William Kornhauser (que assim distinguiria as sociedades pluralistas das “sociedades de massa”), até chegar às elaborações vagas de Robert Putnam em torno do “capital social” (de enorme sucesso recente junto a organismos multilaterais), todos se apoiam na proliferação de associações e organizações como recurso incontornável ao exercício de controle democrático sobre o poder político. Os jovens de agora parecem propensos a rejeitar mediações. Isso costuma ser saudado como uma promessa de “democracia direta”, mas devo admitir que sou cético. Um vago fervor compartilhado poderá levar multidões às ruas em espasmos efêmeros de mobilização (“conjunturas críticas”, se se quiser), mas um problema olsoniano de ação coletiva se imporá cedo ou tarde, nos períodos (muito mais duradouros) em que as pessoas ansiarão pelo retorno à rotina “normal” de suas vidas. Em uma paisagem relativamente desprovida de “corpos intermédios”, por mais que as pessoas tenham a sensação de agir “livremente”, atores com posição mais central nas redes de poder (tipicamente governos, mas também os detentores de poder econômico) desfrutarão de maiores graus de liberdade para perseguirem seus propósitos e formatarem unilateralmente a agenda política – estabelecendo, assim, as opções sobre as quais os cidadãos se pronunciarão. Veja-se no noticiário que chega do Brasil, nestes dias, como a mobilização das ruas está sendo seguida por um protagonismo inédito de Dilma Rousseff, que se reapropria energicamente da iniciativa política ao reapresentar propostas governamentais ao Congresso e criar outras, mobilizando paralelamente a todos os governadores e aos prefeitos das maiores cidades. Provavelmente era o que devia fazer, e o que as ruas esperavam. Mas, para o bem ou para o mal, teria sido impossível para ela fazer o mesmo há um mês. Este é o ponto teórico aqui. O caso do Brasil ainda pode ser um exemplo benigno – o tempo nos dirá. Mas, quando penso nesse assunto, nada me vem à mente com mais força que o caso da Itália nos últimos vinte anos. Lá, a operação “Mãos Limpas”, no início dos anos noventa, devastou o sistema partidário, num esforço resoluto de depuração da corrupção entranhada na política italiana. Na paisagem de terra arrasada que se produziu, quem foi o beneficiário? Um dos homens mais ricos do país, magnata das comunicações, Silvio Berlusconi. Pelo menos a corrupção se foi? Ninguém acreditaria nisso. Embora a esquerda costume abraçar uma utopia anti-institucional para o mundo pós-revolucionário, no mundo realmente existente ela precisa entulhar a arena política com organizações, para limitar a liberdade de ação e a margem de manobra não só dos governos, mas – mais fundamentalmente – dos detentores de poder econômico. As redes e a internet nos dão a opção da ação direta – e, assim, nos dão a ilusão de um “protagonismodifuso”. Porém, por razões puramente topológicas, relacionais, não podem existir protagonismos difusos. O poder será exercido a partir de centros organizados para tal. De maneira ostensiva e pública pelo estado, quando este chega a lograr o monopólio do uso legítimo da força – idealmente controlado por uma rede autônoma e responsabilizável de organizações. Ou então, de maneira sub-reptícia e extralegal, pelos detentores de poder econômico. Assim, arrisco a hipótese de que, malgrado aparências em contrário, são os detentores de poder econômico os beneficiários da fragilização dos corpos intermédios na política. Ademais, as redes sociais, além de ajudarem os cidadãos a se pronunciarem e a se manifestarem de maneira independente da sinalização por grandes organizações hierárquicas, são também – como disse Julian Assange sobre oFacebook – a mais formidável máquina de espionagem jamais inventada. Parece claro que os governos desfrutam de vantagens estratégicas formidáveis sobre os cidadãos dispersos no processamento de informação. Por quanto tempo eles se deixarão surpreender? [Notas finais] No entanto, creio que a crítica e a desconfiança quanto aos intermediários na política chegou para ficar. Há uma rejeição difusa, tecnologicamente condicionada, de certa burocratização da política, aprisionada também no interior das instituições parlamentares – mas não apenas delas. O desafio que se apresenta para a democracia (e não só as latino-americanas) é tremendo. Teremos de ser criativos na concepção de formas institucionais que articulem a representação e a participação de formas mais próximas do que logramos até hoje, buscando tirar proveito da internet ao mesmo tempo em que evitamos pelo menos as suas armadilhas mais óbvias. Assim, por exemplo, em vez de nos acomodarmos à onda plebiscitária que chama todos a votarem em seus computadores sobre as questões do dia-a-dia a partir de opções fixadas por tecnocracias incontroláveis (no limite dispensando os representantes parlamentares intermediários), será melhor se permitirmos que nossos representantes continuem a debater e a deliberar em público sobre nossa agenda e a responderem periodicamente nas urnas, enquanto nós interferimos livremente - a partir de plataformas wiki ­– nos projetos de lei que tramitam, e nos debates que cercam essa tramitação. Dispensar intermediários, mais do que promover o autogoverno, nos priva de cruciais instâncias de responsabilização política, sem as quais nos veremos desprovidos de mecanismos de controles (precários que sejam) sobre elites que fatalmente se formarão. Para partidos de esquerda, que constroem não apenas o seu poder mas sobretudo sua legitimidade política a partir de uma relação especial com setores mobilizados (e, até aqui, organizados) da sociedade civil, o desafio é peculiarmente complexo. Agora, mais que nunca, têm de equilibrar imperativos estratégicos – que recomendam algum insulamento das cúpulas – com um cultivo sensível e permanente não apenas do apoio de sua base social, agora prestes a descolar-se por uma capacidade recém-descoberta de vocalização e ação autônoma. Não será fácil. Partidos mais conservadores continuarão a obter parte relevante de seu poder a partir de alianças com os principais grupos econômicos privados. A esquerda é quem mais precisa de organização em sua base. Vai ter de se reinventar. Buenos Aires, junho de 2013. [1] Trabalho apresentado no seminário internacional “¿Hacia una mutación de la democracia?”, promovido pelo Instituto Gino Germani, da Universidad de Buenos Aires. Biblioteca Nacional de Buenos Aires, 25 de junho de 2013. [2] Nessa seção serão mobilizados trechos presentes também em B. Reis, “Da Democracia Participativa à Pluralidade da Representação no Brasil”, apresentado no III Seminário Internacional de Estudos sobre o Legislativo: Desafios da Consolidação da Democracia na América Latina. Brasília, 13 de junho de 2013. [3] Essa é uma antiga controvérsia na sociologia brasileira, a partir da oposição entre “participação” e “cooptação” em Simon Schwartzman (1974). Fábio Wanderley Reis contestou a oposição em artigo de 1977, que levou o sugestivo título “A revolução é a geral cooptação”.
Posted on: Thu, 27 Jun 2013 22:11:18 +0000

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