A nossa vida é composta de memórias, recordações de quando - TopicsExpress



          

A nossa vida é composta de memórias, recordações de quando começamos a ficar efectivamente vivos, a sentir o mundo que nos rodeia na sua plenitude e a dar valor à amizade e ao carinho. Hoje em dia, quando as novas tecnologias da comunicação são bem utilizadas, podemos partilhar sabores, instantes com os quais muitos se podem identificar. No texto que agora aqui publico e partilho, podemos constatar que este mundo é mesmo pequeno e que a dezenas de milhar de quilómetros de distancia, longe dos chips dos computadores, as pessoas na sua infância dão valor a coisas parecidas com as de garotos de outros pontos do globo. Memórias de infância de Jomar Araújo, um espelho de quando ainda “meninos” de muitos de nós. Do meu Grande e Nobre Amigo, Jomar Araújo: Jaguaribe : Um rio que passou em minha vida. Certa vez me vi pisando as ruas calçadas do bairro. Já fazia anos que não o tinha feito... O coração nunca tinha sido arrancado das ruas, das casas, do cheiro, do calor, nem também das pessoas. Principalmente das pessoas! O desembarque foi confortável, e eu que outrora contemplava apenas em sonhos acordados, viveria, desta vez, com os meus pés e com todos os sentidos, o que o coração nunca tinha abandonado: O meu país, a minha cidade e o meu bairro. Foi neste bairro de nome Jaguaribe que se deu a minha construção. A minha rua com nome de marechal, Floriano Peixoto, hoje asfaltada, cheirando a gasolina, nem sempre foi desta forma... Era rua de barro onde os passarinhos nos observavam sem medo, e até com certo ar de chacota. Rua de coisas parecidas com as que retratam a música “Doze anos” 1 de Chico Buarque. Também foi rua da minha primeira paixão, chamava-se Isabel; não a que libertou os escravos, mas a que aprisionou o meu coração definitivamente. E assim, mergulhado em anseio, fui lentamente saindo do táxi e pondo os meus pés nos antigos paralelepípedos cobertos de asfalto. O cheiro, de nada me fazia recordar, mas os meus olhos, esses sim, filmava as imagens, e automaticamente comparava-as com as que anteriormente tinham sido gravadas no meu interior. Eram as coisas do meu relicário que pediam ajuda e diziam para mim: Nada será como antes! Fui de vida boa, de avó cuidadosa, de tios subversivos e de primas intelectualizadas. Entre o quintal da minha casa e o quintal da minha avó não havia muro... Ela, Vó Lica, morena, gorda da carne e de sabedoria, toda tarde juntava-se a minha tia, e por detrás da velha mangueira tomava uma bicada de cachaça e acendia o cachimbo, coisas de herança africana. Na sala, ao escurecer da tarde, meu primo escutava os vinis de Bossa Nova e jazz... Eu não perdia uma seção... Foram os primeiros estilos musicais que fizeram parte do meu gosto pessoal, e que mais tarde agreguei-os à tropicália, aos blues e a música de Beatles e Rolling Stones. Mas a minha infância foi muito mais... Minha mãe, bibliotecária, enchia a nossa casa de livros, fazendo com que a minha vida se dividisse entre a rua e o meu quarto. Quantas estórias foram por mim escritas, nas íntimas horas, e quantos arranhões e surras devinham das ruas... Suras essas, em casa! Mas assim era a criação dado por nossos pais: Muito amor e “muito couro quente”... Hoje, como dizem no popular: Tá moleza! Dos amigos, ficaram poucos... Nos fim de semana, aos domingos, íamos ao cine Santo Antônio para a matinê; eram filmes épicos, românticos e de comédia. Recordo-me de lá ter, pela primeira vez, assistido Chaplin. Hoje no prédio do antigo cinema encontra-se a Casa da Cidadania... O que antes era casa de sonhos transformou-se em gabinete burocrático. Fez-me lembrar do filme “Cinema Paradise”. As “peladas”, ”barra bandeira”, “polícia-ladrão” 2 e tantas outras brincadeiras da nossa época, faziam das nossas noites, naquela rua de barro, uma verdadeira academia de ginástica ao ar livre. Sentadas nos muros das casas, em devoção aos seus amores, ficavam as namoradas soando aplausos frenéticos, para o delírio dos nossos egos... Os beijos, guardávamos para os sábados, nos “assustados” 3 . E assim foi a minha hera infanto-juvenil: Entre tantas coisas já citadas, recordo-me também dos jambeiros da Rua 24 de Maio, da missa aos sábados à noite, das pescarias no rio Jaguaribe, do namoro até às dez horas da noite na porta de casa, do Instituto D. Adauto onde completei o meu oitavo ano de estudos. Dos meus pais, o que lembro, são tantas coisas miúdas que, a cada uma delas eu levaria uma imensidão de páginas escritas para esmiuçá-las... Quando já adolescente, mediante a minha rebeldia, ganhei dos mesmos duas alcunhas: Minha mãe tratava-me, em seus momentos de ira, por alucinado, já o meu pai, ex-combatente da segunda guerra mundial, por comunista... Nada extraordinário; estávamos nos anos setenta e mesmo com a ditadura militar destruindo sonhos, nós estávamos nas ruas fazendo arte , filosofando e fazendo amor de uma maneira livre, sem medos de morrer pelo próprio ato. Mas, dos meus pais, também ganhei a sensibilidade de Marta, minha mãe tia; Dela ganhei o que de bom tenho em mim. Falo todas essas histórias de pés plantados, agora, na calçada da casa que outrora foi minha; observo-a, reconstruo-a e retiro das entranhas os sentimentos: Ao longe ouço os berros dos amigos me chamando para as brincadeiras... Escuto o som da marinete4 , que toda às cinco horas da tarde trazia as meninas do colégio Lourdinha... E lá estava Isabel. Sinto o cheiro das goiabas do quintal da casa que no pretérito impregnavam a minha alma... Sinto também um amor profundo por cada minuto vivido, cada arranhão sofrido e por cada riso largado ao vendo em meus momentos de imensa felicidade. 1 A música “ doze anos” faz parte do álbum “Ópera do malandro” de Chico Buarque de Holanda. 2 Os termos “Pelada, barra bandeira e polícia ladrão referem-se aos nomes dados para determinadas brincadeiras de infância”. 3 “Assustado” era o nome dado as festas dançantes que se realizavam nas casas de aniversariantes, em que todos, independente de serem convidados, participavam. 4 Marinete: Pequeno ônibus com frente alongada.
Posted on: Wed, 31 Jul 2013 22:26:51 +0000

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