Antiode (contra a poesia dita profunda) A Poesia te - TopicsExpress



          

Antiode (contra a poesia dita profunda) A Poesia te escrevia: flor! conhecendo que és fezes. Fezes como qualquer. gerando cogumelos (raros, fragéis, cogu- melos) no úmido calor de nossa boca. Delicado, escrevia: flor! (Cogumelos serão flor? Espécie estranha, espécie extinta de flor, flor ão de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro) Delicado, evitava o estrume do poema, seu caule, seu ovário, suas intestinações. Esperava as puras, transparentes florações, nascidas do ar, no ar, como as brisas. B Depois, eu descobriria que era lícito te chamar: flor! (Pelas vossas iguais circunstâncias? Vossas gentis substâncias? Vossas doces carnações? Pelos virtuosos vergéis de vossas evocações? Pelo pudor do verso - pudor de flor - por seu tão delicado pudor de flor, que só se abre quando a esquece o sono do jardineiro?) Depois eu descobriria que era lícito te chamar: flor! (flor, imagem de duas pontas, como uma corda). Depois eu descobriria as duas pontasda flor: as duas bocas da imagem da flor: a boca que come o defunto e a boca que orna o defunto com outro defunto, com flores, - cristais de vômito. C Como não invocar o vício da poesia: o corpo que entorpece ao ar de versos? (Ao ar de águas mortas, injetando na carne do dia a infecção da noite). Fome de vida? Fome de morte, frequentação da morte, como de algum cinema. O dia? Árido. Venha, então, a noite, o sono. Venha, por isso, a flor. Venha, mais fácil e portátil na memória, o poema, flor no colête da lembrança. Como não invocar, sobretudo, o exercício do poema, sua prática, sua lânguida horti-cultura? Pois estações há, do poema, como da flor, ou como no amor dos cães; e mil mornos enxertos, mil maneiras de excitar negros êxtases, e a morna espera de que se apodreça em poema, prévia exalação de alma defunta. D Poesia, não será esse o sentido em que ainda te escrevo: flor! (Te escrevo: flor! Não uma flor, nem aquela flor-virtude - em disfarçados urinóis). Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, como as manhãs no tempo. Flor é o salto da ave para o vôo; o salto fora do sono quando seu tecido se rompe; é uma explosão posta a funcionar, como uma máquina, uma jarra de flores. E Poesia, te escrevo agora: fezes, as fezes vivas que és. Sei que outras palavras és, palavras impossíveis de poema. Te escrevo, por isso, fezes, palavra leve, contando com sua breve. Te escrevo cuspe, cuspe, não mais; tão cuspe como a terceira (como usá-la num poema?) a terceira das virtudes teologais. (João Cabral de Melo Neto) Camila Infeto
Posted on: Fri, 29 Nov 2013 10:02:27 +0000

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