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Editorial -Marcelo Veras O pai é uma droga O crescimento da medicalização por TDAH é patente nos Estados Unidos. O uso de medicamentos nesses casos saltou, na população entre 20 e 39 anos, de 5,6 para 14 milhões de prescrições mensais em apenas 4 anos. Ainda pior é o quadro de medicalização de crianças, que expõe a urgência de se repensar os processos educativos. As crianças são hiperconectadas ao mundo mas, na sala de aula, muitas vezes não conseguem suportar o tempo de uma assimilação de mensagens mais complexas. É curioso que essas mesmas crianças, em seus quartos ou lan-houses, são capazes de alcançar etapas extremamente complexas de jogos eletrônicos, superando e identificando com incrível astúcia os obstáculos virtuais. Multiplicam-se os pais e educadores que ampliam ainda mais o hiato entre essas duas realidades forçando uma adequação e levando, consequentemente, à situações de ruptura, em que a simples imposição da autoridade fracassa em resolver o conflito. É nesses casos que cada vez mais se faz apelo à pílulas de comportamento em substituição ao declínio da lei paterna. O pai tornou-se uma droga. Assim, passamos da medicalização da doença e dos sintomas para a medicalização da existência; a vida tornou-se um sintoma. Esse sintoma, contudo, nada tem do sintoma lacaniano. Nesse contexto, o papel da psicanálise é fazer prevalecer, no mundo cada vez mais tomado pelas estatísticas e soluções em massa, o que significa o resgate de um elemento que somente poderá ser conseguido no caso a caso, que é a clínica. Sintoma e clínica são indissociáveis. O que a Psicanálise tem como contribuição no debate sobre a medicalização do mundo é, precisamente, que não há sintomas puros, separados de qualquer avaliação subjetiva, no espaço que denominamos mental. Qualquer tentativa de fazer do sintoma psíquico um equivalente do sintoma corporal puro é fadado ao fracasso, pois o psíquico é indissociável do falar, que é uma experiência que sempre inclui o Outro, ou seja, aberto à contingência. O avesso da contingência é a busca direcionada às evidências. Um questionário somente encontra o que ele busca, ele não é aberto às contingências, tratando apenas de verificar, verdadeiro ou falso, se determinada condição está presente. Ou seja, um questionário, quando aplicado em um caso único, não descobre, apenas confirma uma hipótese. Assim como eles são ferramentas formidáveis para estudos populacionais, eles assumem proporções de delírio quando pretendem elucidar os fenômenos que são atravessados pela linguagem. Ao seguirmos os desenvolvimentos do Seminário XIX encontramos a tese lacaniana de que toda linguagem que se diz necessária é no fundo contingente. não há fenômeno de linguagem que seja necessário, Tomemos o exemplo da febre. O questionário pergunta: “Quando você tem febre você sente frio?” Você vai e assinala: “sinto frio”. “Quando você tem febre e a febre passa, você transpira muito, sente calor?” Você pensa e responde: “É, eu sinto calor.” “Pergunta três, quando você tem febre, você fica cansado, fica sem vontade de trabalhar?” “Fico.” “Quando você tem febre seu coração bate mais rápido...” E por aí segue o questionário. Ao final, temos um questionário que pode chegar a 100% de respostas positivas. E surge então o diagnóstico: você tem febre. Contudo, a verdadeira questão não está em identificar se temos febre ou se não temos, se somos hiperativos ou se não somos hiperativos. O grande debate em questão é se a coisa que causa essa hiperatividade é algo intrínseco no cérebro ou faz parte de um processo que comporta a tensão entre o Eu e o Outro. Se é algo dialético, algo que pode ser aprendido a partir de uma relação com a palavra, ou se ela é fruto de um determinismo biológico inabalável. Estamos em uma cultura da hiperconectividade, tanto em casa quanto nas escolas, e transformamos em patologias os efeitos desta aceleração frenética da relação com o Outro. É no momento em que ela cumpre o grande projeto da civilização que percebemos a criança fracassar e entrar em pane, sem conseguir fixar-se em uma atividade única, nem que seja conversar com apenas uma pessoa na internet. Ela tem que, ao mesmo tempo, sustentar vários diálogos, muitas vezes contraditórios, pois é na infância e na adolescência que o apelo à identificação é mais forte. E como reage a mesma sociedade que induziu esta hiperestimulação? Ela busca instrumentos de controle e poder sobre tudo que escapa às normas. Trata-se de um projeto que promove, no domínio e na força do poder de controle, uma contenção exatamente daquilo que escapa à norma, em um mundo que cada vez mais não sabe muito bem como lidar com tudo que é exceção. Seguindo a doutrina freudiana, a criança pode conter o melhor de nós, mas ela também possui essa liberdade e vontade de gozo que podem ser extremamente subversivas e perturbadoras. Elas possuem essa capacidade de inventar e questionar os valores do mestre perturbando a pax comunitária. Essa lógica promove um estranho laço entre Freud e Lacan: da perversão polimórfica do filho à perversão paterna, a pai-versão. O que resta, contudo, do Édipo, é a constatação de que a criança desde muito cedo faz escolhas, escolhas que passam pelo modo como vão organizar seu regime de gozo e transgressão. O preocupante é que estamos longe de pensar que a febre de diagnósticos da infância se faz em um ambiente de neutralidade científica. Não é novidade para ninguém o peso assumido neste processo por diversas empresas farmacêuticas de atuação global, multinacionais, que são parte interessada da farmacologização de toda experiência humana. Assim, aplicar em massa um diagnóstico, sem se ocupar do caso a caso, pautando-se exclusivamente em questionários, tem um aspecto absolutamente inquietante quando pensamos que milhões de pessoas podem ser tratadas desnecessariamente. Passamos da psicopatologia da vida cotidiana à patologia da vida cotidiana. Em nome da ordem pública dos que mantém o poder, é possível criar diagnósticos os mais bizarros. Moacyr Scliar nos conta essa passagem da história que mostra os abusos do poder: A melancolia do negro era uma situação considerada, nas sociedades escravistas, ‘normal’. Anormal era o desejo de fugir, rotulado como manifestação maníaca: a drapetomania (do gregodrapetes, fugitivo), termo cunhado em 1854 pelo médico norte-americano Samuel A. Cartwright, não era a única doença que os médicos diagnosticavam nos negros...sofriam também de ‘diestesia etiópica’, uma enfermidade que consistia em ignorar a importante noção de propriedade. (SCLIAR, 2003) Para a psicanálise, o infantil inquieta a ordem pública não pela debilidade de seu discurso, mas precisamente por sua verdade. O infantil é inquietante e também pode facilmente ser submetido a estratégias de poder. E eu diria mais. Não sei se alguns sabem a origem da palavra “infância”, mas ela vem do latim in fari, aquilo que vem de fora do discurso, ou seja, aqueles sujeitos que não podem tomar a palavra por si próprios. São aqueles que não possuem um discurso próprio, sendo necessário que alguém fale por eles. Como atingir essas crianças, por exemplo, quando entendemos que a lei tem sempre um componente subjetivo para que seja eficaz? Quando a lei vem de fora não estamos no domínio da ética, estamos apenas no âmbito da moral coletiva, pois nesse caso não existe mais a capacidade de escolher. Educar então é um ato que vai mais além da tecnologia da Educação, que por certo é muito importante, pois deve levar em conta a contingência do encontro, o modo como vai se abrir para cada um o desejo de saber e não a obrigação de saber. Não há tecnologia pura que dê conta de educar. Consegue-se adestrar, mas não educar, se não se leva em conta que o educar envolve realmente o desejo de saber. É preciso que a criança tenha curiosidade. Como estimular essa curiosidade na criança? O que se percebe é que há um fracasso então dos métodos ortodoxos e que a escola precisa ser repensada realmente para o século XXI. O que se percebe com a medicalização é que, para cada uso prescrito pela ordem médica para determinada substância, imediatamente se faz um uso desviante, um uso errático, um uso ligado ao comércio que não passa pela prescrição médica. Há um comércio totalmente baseado no uso e abuso da medicação fora do circuito médico e que é tolerado por ser milionário. Finalmente, como a Psicanálise pode participar disso? Resgatando a própria noção do que é clínica. O modo como cada um é afetado pela linguagem, pela história de vida, marca de modo aleatório e imprevisível sua existência. Mesmo que tenhamos cem pessoas hiperativas, se as escutamos, teremos cem histórias de vida diferentes que impedem a redução do sintoma psíquico a um traço comum.
Posted on: Thu, 12 Sep 2013 23:33:55 +0000

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