Este artigo de Luis Felipe Pondé, que em boa hora o meu amigo - TopicsExpress



          

Este artigo de Luis Felipe Pondé, que em boa hora o meu amigo Alfredo Esteves Jr. decidiu partilhar aqui no Facebook, resume em poucas palavras e com a autoridade que a mim me falta, muito do que eu tenho tentado, com as minhas limitações, dizer em posts e partilhas dispersas por aqui e por ali. E diz muito mais, claro. O que não quer dizer que eu esteja de acordo a 100% com o que ele diz, ou com a forma como o diz. As "Primaveras" tornaram-se nos últimos anos quase um termo de ciência política, quando na realidade não passavam de "wishfull thinking" ou pura propaganda mediática, boas ou para preencher as capas dos jornais ou as aberturas dos telejornais, e/ou para preparar a opinião pública para qualquer tipo de intervenção externa num dado país (o país primaveril). Não que nesses países não houvesse movimentações populares, tribais, religiosas, guerrilheiras ou de facções militares resultantes de descontentamentos face aos poderes vigentes. E esses descontentamentos, sendo sempre "legítimos" do ponto de vista do grupo em questão, dada a natureza fechada dos regimes, não encontram saída pacífica ou negociada (democrática, diríamos). Mas (e a história recente demonstra-o) nada nos garante que os incumbentes sejam melhor governantes, representem a maior parte da população, sejam sequer minimamente democratas, já para não falar em que respeitem os direitos humanos mais básicos. E, o que não é totalmente despiciendo, que não se esteja a promover a substituição de regimes onde, pelo menos, é respeitada uma certa laicidade e secularidade, por regimes com leis impregnadas de preceitos religiosos que coartam a liberdade dos seus cidadãos, em particular as mulheres e as minorias. Mas houve um entusiasmo cego com as Primaveras! E até (pasme-se!) os movimentos que se desenvolveram nos países democráticos contra a crise financeira, fossem nos EUA (Occupy Wall Street), fossem na Europa (Indignados, Excluídos, etc. etc.) procuravam uma caução (!) nas Primaveras Árabes! Claro que não me estou a referir a todos nem aos seus principais dirigentes (felizmente!) mas muitos ouvi procurando aquela equivalência. Pode haver maior confusão? Movimentos de países democráticos, com certos objectivos específicos (e outros não tão específicos ou em construção) com movimentos de países totalitários ou semi-totalitários? Só mais três pontos em relação ao texto de Pondé, em que, não discordando, gostaria de precisar a minha posição: - o primeiro é apenas de pormenor, e é quando ele quase no início diz que a sua "classe intelectual se fez ridícula (...) achando que ali havia um movimento democrático islandês." Pois, na minha opinião também houve demasiado frisson com a movimentação dos islandeses em resposta à "sua" crise (que antecedeu de alguns meses a crise global de 2008). É verdade que a população se uniu, se mexeu, se organizou, e isso é sempre um exemplo a seguir. É verdade que levou um primeiro-ministro a tribunal, que é uma coisa que agrada sempre aos justiceiros, mas não deu em nada, como sabemos - o primeiro ministro tinha feito aquilo para que tinha sido eleito... pelos islandeses. E quanto à resolução da crise, bom, os islandeses estão a pagá-la, e vão pagá-la durante muitos e muitos anos, além de poderem desvalorizar a moeda. Por outro lado, não nos esqueçamos que a Islândia tem menos gente que o concelho de Sintra (e menos diversificada, já agora). - o segundo diz respeito ao que ele chama o "fetiche das redes". Talvez tenha razão nesse ponto, "pero que las hay hay". Tal como Marx não inventou a luta de classes (que evidentemente já existia desde que existem classes - as almas sensíveis podem chamar-lhe conflito, que existe desde que existem pessoas), as redes também estão à nossa vista, tudo depende de como as tratamos (nós e os outros). E o ponto é esse: se os movimentos sociais sabem (e muitas vezes não sabem) como lidar com as redes, os poderes não ficaram a fazer contas no ábaco, e também sabem como lidar com elas (muitas vezes lado a lado com os movimentos sociais...). - finalmente, é muito triste, e eu já tive oportunidade ao longo do tempo de o exprimir aqui, concordar que as populações de países como o Iraque, a Síria ou a Líbia viviam melhor, com mais segurança, com mais liberdade (sim, pelo menos de costumes) sob os regimes de Saddam Hussein, Bashar Assad (sem a guerra) e Muammar Khadaffi. Nesta segunda-feira passada estava a assistir ao telejornal, e a abertura inevitável foi o trágico atentado no centro comercial de Nairobi. Perfeitamente natural, não é habitual haver atentados, sobretudo com aquela dimensão, em Nairobi (o último já foi há muitos anos). A segunda notícia foi de outro atentado, igualmente trágico, no Paquistão, onde já é mais frequente haver atentados. Seguiu-se outra notícia, já não sei sobre o quê, e depois veio outra notícia de mais um atentado. Só que desta vez era no Iraque, e as vítimas, até ao momento eram 90 (mais do que em Nairobi ou no Paquistão). Porque é que não tinha tido mais realce? Porque notícias destas, sobre o Iraque, desde a invasão em 2003, ou mais precisamente desde que Bush Jr. declarou "missão cumprida", são diárias, atingindo um total inimaginável (veja-se o site Iraq Body Count). AFCarranca ----------------------------------------------------------------------------------- "Escorpiões do deserto - Luis Felipe Pondé O oriente Médio tem uma fábula que é comum para quem lá viveu ou conhece bem a região: certa feita, um escorpião pediu a uma rã que o deixasse atravessar o rio nas suas costas. Ela, atenta, disse a ele que não era idiota e que não o deixaria atravessar o rio nas suas costas, porque ele a picaria no meio da travessia e ela morreria afogada. O escorpião respondeu que não se preocupasse, porque se ele a picasse morreria junto com ela. A resposta pareceu razoável e eles iniciaram a travessia. No meio do caminho, o escorpião picou a rã e, enquanto ela afundava, e ele com ela, ela perguntou desesperada: "Mas por quê? Você vai morrer comigo". Ele respondeu: "Sinto muito, mas é a minha natureza". É assim que o Oriente Médio se vê. É impressionante como a minha classe intelectual se fez ridícula diante da Primavera Árabe, mais especificamente agora, com a Síria, achando que ali havia um movimento democrático islandês. Não há isso nem na Síria, nem no Egito. A democracia ali é tão estranha quanto para nós seria uma teocracia. Mas a vida intelectual pública está morta no Brasil, vítima da mania de ver em toda parte "um processo histórico" em curso, da avenida Paulista às ruas de Damasco, o mesmo ridículo "frisson" com "um processo político" em curso, visando a "autonomia popular". Puro fetiche. Não existe tal coisa como "um processo político histórico". Esses caras nunca se curaram do "mito da dialética" (expressão usada por Edmund Wilson, crítico americano, em seu grandioso "Rumo à Estação Finlândia"). Há muito que nós, intelectuais, sobrevivemos de fetiche no debate político. Esse fetiche chama-se "fetiche da democracia", "fetiche do povo" ou "fetiche da revolução". Mais recentemente, e associado aos movimentos nos países árabes e às baladas de junho, nasceu um novo fetiche, o da revolução causada pelas redes sociais. No Oriente Médio, os escorpiões riem desse ridículo, que tem em Obama "sua baratinha tonta" querida. O Obama pensa que é presidente de um centro acadêmico de ciências sociais. Alguns intelectuais europeus, tomados pelo "frisson" de gozarem com seu próprio fetiche, chegaram a falar em "dois momentos da Primavera Árabe" (à la Marx) por conta do golpe "secular" do exército egípcio em cima do governo fundamentalista eleito democraticamente. Por que não paramos de projetar esquemas metafísicos (do tipo dialética hegeliano-marxista) sobre o mundo? Acabamos por acreditar que obscuros cineastas árabes vivendo nos EUA ou professores de filosofia em capitais árabes (exemplos de "contaminação" com nosso modelo ocidental, ferramentas de nosso próprio gozo, porque "pensam como nós") representam a população e a vida nesses países. Não, a Síria estava muito melhor (veja que não digo perfeita) antes dessa pseudoprimavera pela democracia. A Síria, como a Jordânia hoje, era um país com razoável liberdade religiosa e social, com um cotidiano sem muita miséria e violência. Ela é o palco da disputa entre Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita, defensora de Assad), que vivem num estado de Guerra Fria. Mas, nem o Irã, nem os sauditas, nem os EUA, nem Israel querem a queda de Assad, porque ele, mesmo que não perfeitamente, mantém um equilíbrio na região. Mas, desde o momento em que a mídia ocidental batizou os movimentos nos países árabes de "primavera" (ecoando a Primavera de Praga), fetiche ocidental, estabeleceu-se um programa de interpretação daqueles fenômenos como se eles fossem réplicas da mitológica Revolução Francesa, de Maio de 68 (a revolução de queijos e vinhos) e da queda das ditaduras marxistas no Leste Europeu. Entrevistando "ocidentalizantes" naqueles países, acabamos por projetar sobre eles uma demanda estranha àquele universo. Ao endossar sem crítica os chamados rebeldes sírios, acabamos por "justificar" a guerra civil síria, para depois ficarmos posando de Madalenas arrependidas com a violência na Síria. Em vez disso, deveríamos ouvir a sabedoria do escorpião do deserto e menos nossos livros escritos sob a tutela de taças de vinhos nas ruas de Paris. [email protected] Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada"."
Posted on: Sun, 29 Sep 2013 17:33:52 +0000

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