GIBRALTAR. Acaba de se reacender a velha questão. A propósito, - TopicsExpress



          

GIBRALTAR. Acaba de se reacender a velha questão. A propósito, recordo aqui, abaixo, um texto meu, que mantém interesse informativo, ainda que necessitasse de alguma actualizações. Ocupou as páginas centrais do Suplemento do extinto vespertino Diário Popular", de 24/01/1987. Editei-o em 2010, juntamente com outros textos meus que foram publicados na imprensa, num livro intitulado "Noutros tempos, por terras alheias" (vd. meu perfil, fotos), ISBN 978-989-97118-1-5, Depósito legal 320834/10.------------------------------------------------------------------------------------------- GIBRALTAR: O Rochedo da Discórdia * Visto de longe, o seu perfil recorta-se dramático, enigmático, quase a prumo sobre as águas. Em dias de bruma, dir-se-ia até o cenário de um romance de mistério. Bem firmado a sudoeste do continente europeu, no ponto onde o Mediterrâneo encontra o Atlântico, olhando sobranceiro a costa norte africana que as águas do estreito banham do lado oposto - é Gibraltar, o rochedo controverso, que, desde há muitos anos, tem tido a pertinácia de constituir um petrificado pomo de discórdia entre os Governos britânico e espanhol. Em tempos remotos, os povos mediterrânicos julgaram que terminava ali o mar navegável; mas sabe-se que já os fenícios o contornavam em demanda dos portos atlânticos. Durante a conquista árabe, Tarik ali reuniu as tropas com que invadiu a Espanha; e de Gibel Tarik - a montanha de Tarik - deriva o seu nome actual. A sua história foi movimentada. Serviu de fortaleza aos árabes, que fundaram a cidade no sopé da montanha - cidade que cresceu e cuja rua principal como tal se conservou até hoje: é a tão conhecida Main Street! Entretanto, foi reconquistada pelos africanos, para, em 1462, cair definitivamente em poder dos cristãos. Até ao século XVIII, o rochedo foi território espanhol. Porém, no tempo de Cromwell, começou a ser cobiçado pela Grã-Bretanha. Em 1704, na sequência da Guerra da Sucessão, foi conquistado por uma armada anglo-holandesa. O tratado de Utreque confirmou a sua cedência aos britânicos, que, em 1830, declararam Gibraltar sua colónia - facto a que os espanhóis nunca se resignaram. A população espanhola então residente exilou-se na colina fronteira de San Roque, onde pretendeu constituir uma resistência. Gibraltar foi, porém, progressivamente, repovoado por emigrantes oriundos de Itália, Marrocos, Portugal, para além dos funcionários administrativos e militares que os ingleses ali instalaram, e de colonos que lá se estabeleceram. Mais tarde, atraídos pelo bom nível de vida, outros espanhóis se lhes juntaram, bem como cidadãos ingleses de Malta. Assim, da descendência de tão diversas gentes, se formou um povo de características próprias, diferente, quer dos ingleses, quer dos espanhóis. Na verdade, nota-se nos gibraltinos uma mistura de traços característicos da civilização inglesa com factores temperamentais próprios das populações do Sul, nomeadamente a alegria e a franqueza. Exprimem-se quase indiferentemente em castelhano, de preferência, e em inglês. As igrejas católicas e anglicanas partilham entre si - as primeiras em maior número - o total de fiéis. As transacções são oficialmente feitas em libras, mas a peseta é igualmente aceite e a conversação traduz-se, a bem dizer, num acto reflexo. Estão bem assim Salta à evidência a importância estratégica de Gibraltar, demonstrada ao longo dos séculos e, particularmente, durante as duas guerras mundiais, como posto de controlo e defesa da entrada do Mediterrâneo, tendo o seu porto naval desempenhado um papel preponderante na invasão do Norte de África pelos aliados. Não admira, assim, que a Espanha, periodicamente, procure reassumir a sua soberania - nem que o Reino Unido lha recuse. Recorde-se que, em consequência dum destes diferendos, o Governo espanhol lançou um bloqueio económico e, em 1969, fechou a sua fronteira, tendo Gibraltar ficado inacessível por terra. Em fins de 1982, as tensões atenuaram-se; foi permitida a circulação de residentes e de cidadãos espanhóis, mas só em Fevereiro de 1985 o acesso através da fronteira espanhola foi de novo permitido sem restrições. Interrogados sobre se prefeririam ser espanhóis, os gibraltinos com quem falámos responderam invariavelmente que estão bem assim. O jovem motorista que nos levou a dar a volta turística ao rochedo - num velho táxi londrino pintado de branco - disse descender de avô espanhol, mas não ver qualquer razão para deixar de ser ele próprio cidadão britânico. Referiu que os gibraltinos beneficiam da escolaridade e sistema de educação inglês, que não gostariam de trocar pelo espanhol, e que têm um nível de vida superior ao dos vizinhos. Contou-nos que em La Linea (cidade espanhola do outro lado da fronteira) é elevado o índice de desemprego, acrescentando que certamente em Gibraltar a situação se tornaria semelhante se a soberania transitasse para a coroa espanhola - situação essa que, obviamente, os gibraltinos também não veriam de bom grado. Comicamente associados à questão da soberania estão... os macacos do rochedo! Oriundos do Norte de África, foram importados pelos primeiros funcionários britânicos para diversão doméstica. Alguns ter-se-ão escapado para as encostas e aí recriado o seu habitat. Constituem, hoje, atracção turística. São macacos sem cauda, esquivos, peculiares. Cartazes com avisos põem os turistas de precaução contra os seus dislates: os travessos gostam de se divertir fazendo desaparecer máquinas fotográficas, carteiras e outros objectos que os proprietários descuram enquanto se divertem com as macacadas. Ora, conta a superstição popular que, no dia em que os macacos desapareçam de Gibraltar, os ingleses ir-se-ão também. Diz-se então que, durante a última grande guerra, os macacos começaram a rarear no rochedo; Winston Churchill teria então ordenado medidas imediatas no sentido de elevar o seu número, tendo-se procedido a uma importação de Marrocos, que assegurou a propagação da espécie! Das muitas vicissitudes históricas que marcaram Gibraltar, encontram-se numerosos vestígios que fazem parte do itinerário turístico. Impossível não referir as Grutas, chamadas de St. Michael, onde foram encontrados crânios e instrumentos que confirmam a presença ali do homem do Neanderthal e do Neolítico. O interior destas grutas, recoberto de magníficas estalactites e estalagmites, encontra-se hoje iluminado e valorizado com jogos de luz e som e ainda com curiosas reconstituições, em actividades como fazer lume ou assar animais num espeto, de grupos humanos que ali se abrigaram nos períodos referidos. Na galeria principal encontra-se instalado um auditório para concertos e outros espectáculos. A vitória sobre a Natureza Galerias escavadas na parte norte do promontório, muralhas, fortalezas, canhões, o Museu, o cemitério onde estão depositados os restos mortais de militares caídos durante a batalha de Trafalgar, igrejas, monumentos diversos, atestam um passado em que esta península-quase-ilha desempenhou papéis preponderantes no teatro do mundo. Curiosamente, é no seu istmo raso e estreito que se encontra o aeroporto, cuja pista de aterragem é necessário atravessar para entrar em Gibraltar a pé ou de automóvel - pista que, aliás, se prolonga sobre uma faixa que, tal como parte das docas, assenta em terrenos conquistados ao mar. De referir, a este respeito, que a vitória sobre a natureza é um dos aspectos importantes a observar em Gibraltar. Dada a configuração do rochedo, para contorná-lo houve que construir uma estrada, estreita, que, do lado leste, passa através de um longo túnel laboriosamente escavado na rocha. Sendo íngremes os caminhos, foi instalado um teleférico que facilita a comunicação com o topo, de onde se avista um panorama deslumbrante sobre Gibraltar e a costa espanhola adjacente, bem como, se o tempo estiver límpido, o local de encontro das águas do Mediterrâneo com as atlânticas entre os dois continentes, a Sierra Nevada em Espanha e ainda as montanhas do Atlas e as cidades de Ceuta e Tânger, no norte de África. Em Gibraltar não brota água potável. Para obtê-la, uma vertente foi revestida de placas de ferro galvanizado, caiadas, para captação das águas das chuvas, instalação essa que, durante muito tempo e após filtragem, assegurou o abastecimento. Com o crescimento progressivo da população, esta medida revelou-se insuficiente e, por isso, foram construídas refinarias para aproveitamento da água do mar. Aquelas, porém, não se mostraram eficazes, pelo que, presentemente, a maior parte da água potável é importada de Marrocos em navios-tanques. Os recursos naturais não abundam e Gibraltar está longe de ser auto-suficiente. A sua economia assenta no comércio e no turismo. Aqui, deu-se prioridade ao turismo de qualidade. O turista menos abastado entra, vê, compra e sai. Só os endinheirados permanecem para fazer férias nos hotéis e estâncias com direito a estrelas. Atrelados e caravanas não passam, sequer, a fronteira. Parques de campismo não há: o viajante modesto não é encorajado a demorar-se. Para fazer compras, o local é tentador. As lojas e armazéns expõem grande variedade de artigos e produtos de boa qualidade, vindos de toda a parte, a preços muitas vezes vantajosos, especialmente no que se refere a perfumes, bebidas alcoólicas e tabaco. Para descansar das compras e do sol, abundam os cafés e esplanadas, algumas das quais instaladas em locais com panorama privilegiado. Também é agradável passear nos Alameda Gardens, jardim plantado há cerca de 150 anos e que ajuda a suavizar os afogueamentos do clima. Para quem for com tempo, há as praias. E as piscinas, E os jogos de críquete. E os safaris na água atrás dos golfinhos. E o Casino. E os hotéis. E muito mais. Para quem tiver tempo e dinheiro, há. É assim Gibraltar. Uma geografia insólita, uma história aventurosa, uma população sui-generis, uma política polémica. Prolongamento umbilical da Espanha com passaporte britânico. Gibraltar: hoje, ainda, o rochedo da discórdia. Maria do Céu Mascarenhas (Mestre em Estudos Literários Comparados, FCSH, UNL, 1989) ******** *Publicado (páginas centrais) no Suplemento “Sábado Popular” do vespertino Diário Popular de 24 de Janeiro de 1987 "
Posted on: Thu, 15 Aug 2013 13:29:37 +0000

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