No dia sete de setembro de 1986 o ditador chileno Augusto Pinochet - TopicsExpress



          

No dia sete de setembro de 1986 o ditador chileno Augusto Pinochet escapou de uma tentativa de assassinato da organizacao comunista Frente Patriótica Manuel Rodriguez, grupo armado fundado por três judeus (quisera eu que a comunidade judaica do Brasil fosse pródiga em revolucionários como a do Chile). Se o atentado da FPMR (batizada de "Operação Século XX") tivesse logrado êxito, eu faria uma grande festa todo sete de setembro. Tendo fracassado, consta como somente uma das muitas decepções que essa data me traz. Noves fora a sobrevivência de Pinochet em 1986, que me desaponta como marxista, e da destruição de Jerusalem pelos romanos em 70, que me entristece como judeu, a independência do Brasil em 1822 me frustra como democrata, me envergonha como humanista, me ofende como historiador, e me enoja como patriota. A independência do Brasil ganhou contornos épicos de um "grito no Ipiranga" pela manipulação farsante dos falsificadores da História. A falta de registros confiáveis sobre qualquer brado retumbante nas margens plácidas do rio Ipiranga me ofende como historiador (em formação), diante da onipresença das imagens triunfalistas de D. Pedro I no nosso imaginário coletivo. A conseqüente instalação de uma monarquia despótica como resultado desse obscuro gesto para governar o Brasil em regime de Bragança terceirizado me frustra como democrata, em virtude da nação ter se mantido nas garras da mesma plutocracia calhorda. A sujeição desse novo regime aos desmandos de um príncipe cruel e cafajeste, que cometeu o acinte de outorgar uma Constituição tirânica para garantir um aberrante Poder Moderador em suas patas pervertidas, me frustra como patriota, por conta do abominável precedente de desrespeito institucional pelos delegados do poder que nos atormenta ate hoje. E a prevalência de um Brasil que exclui--e inclusive extermina--a grande maioria de todos aqueles que sob qualquer critério poderiam se considerar brasileiros me ofende como patriota, a julgar pelos hediondos e inconfessos critérios de inclusão da nossa nacionalidade, que nos compelem a desperdiçar todos os momentos de transformação política nessa vaca premiada que virou uma nação por acidente. Eu sou um patriota pelo verdadeiro Brasil, e isso me traz um desprezo enfático pelo Brasil estabelecido. Convicto de que a riqueza de um povo pertence a quem a produziu eu acuso o Brasil estabelecido de ser uma combinação de roubos: o roubo da terra, sem a qual nada se produziria; o roubo do trabalho, que transforma recurso em produto; o roubo das identidades, que permite a inserção mecânica de seres humanos complexos e fascinantes em vorazes dinâmicas produtoras de riqueza; e o roubo dos direitos, que garante que os demais roubos sigam impunes e ininterruptos. Ser um patriota honesto me impele a recusar e inclusive desmontar todos os roubos do Brasil estabelecido, pois se pode amar uma mentira a menos que dela seja escravo. Amar o Brasil requer, portanto, que eu desfaça o Brasil estabelecido e o refaça como reparação aos brasileiros roubados, mesmo que se sintam pouco brasileiros--como sentir, se o Brasil para eles representou somente a ausência das coisas que por reais fazem os sentimentos valerem a pena e por dignas os tornam positivos? Refazer o Brasil como reparação aos roubados requer critérios dos mais sofisticados, pois sem proporcionalidade nas indenizações pode surgir uma outra configuração aquém da Justiça que ele exige. Trata-se de um desafio incalculável ser um patriota honesto pelo Brasil. Mais fácil seria substituir esse sentimento por outro menos tormentoso. Ufanismo? Triunfalismo? Fascismo?Patriotismo calhorda? Ou quem sabe niilismo? Catastrofismo? Indiferença? Estado permanente de desilusão? Talvez uma outra abordagem para a mesma ideologia pudesse facilitar as coisas. Cosmopolitismo? Humanismo sem identidades nacionais? Internacionalismo sem ressalvas? Infelizmente, o caminho que eu escolhi foi outro e mais ingrato. Sou humanista no sentido de respeitar todas identidades próprias a qualquer conservação da cultura humana. Sou internacionalista porque creio na necessidade de todas as nacionalidades se desenvolverem com autonomia a superação da divisão predatória de classes para o trabalho alienado. Meu nacionalismo brasileiro pertence ao ramo dos valores transitórios e circunstanciais, mas gosto dele assim--e assim ele se faz sincero. O Brasil que eu quero jamais seria o Brasil de simbolismo mistificante, de louros em cabeças indevidas de respeito a uma Ordem que por vocação se mostra incompatível com o Progresso com o qual se justapõe na nossa bela bandeira de imprecisões. Jamais seria o Brasil de heróis tirânicos, genocidas ou fantasiosos. Jamais seria o Brasil do nosso passado de absurdos gloriosos, incapaz de dizer "paz no futuro" ao verde-louro dessa flâmula se a gloria no passado ergueu clava forte contra a Justiça. Dom Helder Camara pedia ao mundo que denunciasse a tortura no Brasil pois amava a sua patria e a tortura a desonrava--como sempre a desonrou e ainda a desonra. Belo e forte o impávido colosso talvez seja, mas jamais haverá honra para uma beleza que se conspurcou abusando da força e para uma força que se corrompeu profanando a beleza. A honra do Brasil exige que ele seja desfeito e refeito e, para não se refazer pela metade--com soem se fazer as coisas nesse florão da América, as indenizações precisam respeitar a proporção do roubo. Elas exigem que se conceda ao brasileiro o direito de ser brasileiro se quiser, o direito de não se reconhecer no Brasil, o direito de odiar o Brasil. Exige que se possa ser qualquer coisa de humano, a começar por tudo aquilo que para ser brasileiro teve de deixar de ser. Sobretudo qualquer uma das numerosas nações indígenas--ou a categoria indígena como um todo. Sobretudo qualquer uma das incontáveis origens africanas--ou a categoria afro-descendente em si. Sobretudo a de qualquer classe social ou categoria profissional roubada do fruto de seu trabalho. De qualquer regionalismo sufocado em sua peculiaridade. De cada crença perseguida como maldição. Esses são os braços que fizeram o Brasil e essas são as alma que, na proporção em que o fizeram, devem herda-lo--para que ele mereça ser herdado.
Posted on: Sun, 08 Sep 2013 04:45:20 +0000

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