"O DESLUMBRAMENTO DAS PALAVRAS" - TopicsExpress



          

"O DESLUMBRAMENTO DAS PALAVRAS" Miguel Torga (1907-1995) “… Encontrei tudo como o deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos. O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há….” (Prefácio à Segunda Edição, 1945 de “ Novos Contos da Montanha “) – Miguel Torga Cem anos após o seu nascimento, Miguel Torga ainda mexe com a nossa cultura, com o nosso imaginário e, sobretudo, com a nossa realidade. Não se pode falar de literatura sem falar deste fantástico nome. Não se pode, sem Torga, compreender a voz que albergamos desde o berço, nem os hábitos profundos das pessoas e das gentes que atravessaram e atravessam o manto das memórias todas. Falar de Torga é, antes de mais, falar de nós próprios e das semelhanças que temos com as raízes e com as pétalas. Torga lembra-nos as árvores e os pássaros, os deuses que não conhecemos e a sacralidade de que só o silêncio contemplativo e as vivências rijas são capazes. Falar de Torga é falar dos nossos avós e de todas aquelas paisagens físicas e espirituais que sempre os abençoaram e acolheram, numa explosão tranquila de terra, montanha, pedra e alma. (E, ainda há pouco, era mais notória essa elegia de sorte áspera, essa comoção permanente de comungar a vida saltitante entre matagais, lameiros e giestas.) Falar de Torga é falar do mundo português por inteiro, em toda a sua ruralidade, em todos os seus hábitos e, sobretudo, em toda a magia do comportamento dos seres, da emoção dos seres e do carácter dos seres. A sua obra escolhe o nosso âmago para dissertar sobre ele, para o dissecar, para lhe colocar os sentimentos transparentes e fortes de ambientes que nos caracterizaram, desde sempre. A sua obra inventa-nos duros em granito, canta-nos trovadores em baladas, pinta-nos rebeldes a sangue. A virilidade, a honra, a insubmissão, o sentimento, a conduta, o instinto de sobrevivência, o amor e a honestidade: tudo estampado nas páginas dos seus livros como se fossem caras, almas ou saudades de nós mesmos quando o tempo de ontem era, ainda, o tempo de agora. Torga criou-nos, no fogo impresso das palavras. E as palavras são compassivas e derradeiras como as margens dos sonhos líquidos de seiva e rios nossos de chão materno. E as palavras têm o peito cheio de campos preenchidos com verduras túmidas. E as palavras desenham caminhos, ribeiros e brumas. São agrestes, doces, sensíveis e perpétuas. Dizem tudo o que nos comove, tudo o que nos revolta. Falam de amor e desencanto, de paz e de tempestade. Inventam brisas que são silêncio e amornam o sincelo inevitável dos anos. E as palavras sofrem com Torga, carregam angústias e noite, desejos e auroras. As palavras desenham lágrimas, bichos, homens, traições e virtudes. Conversam connosco em prefácios intimistas, reais, cheios de confidências imaculadas e sinceras. E as palavras de Torga chamam as coisas pelos nomes. São ricas e naturais como o baloiço das ramagens, fraternas como a sombra dos carvalhos. São carrancudas como a chuva miúda de Outono, frias como a escuridão das feridas. E as palavras criaram um Torga assim: rude, austero, genial e símbolo das coisas belas e autênticas. Por ele fomos e somos extensas criaturas deslumbradas com a própria existência das nuvens, extensas criaturas repletas de assombros novos perante os dedos das manhãs. Falar de Torga é falar da Coimbra cultural e intelectual (décadas 30 e 40), da colaboração do autor na revista Presença (1927-1940) e do contributo importante das suas revistas Sinal (1930) e Manifesto (1936) como referências no panorama literário de então. Falar de Torga é falar da censura, de livros apreendidos, de prisão. É falar de irreverência e resistência perante o regime salazarista. É falar da frontalidade com que denunciou, preocupado, a imoralidade e degradação humanas que a Guerra Civil de Espanha e a Itália de Mussolini semearam. A sua obra abrange todos os géneros literários. E – porque o escritor é um criador insatisfeito, exigente e sujeito a variadas interpretações temporais dos seus próprios padrões criativos e estruturais – é uma obra constantemente expurgada, corrigida e aditada. “ O Outro Livro de Job”, “A Criação do Mundo”, “Bichos”, “Contos da Montanha”, “Diário”, “Novos Contos da Montanha”, “Cântico do Homem”, “Orfeu Rebelde” e “Poemas Ibéricos” são os títulos mais significativos de uma extensa produção – mais de cinquenta títulos – onde é visível todo o talento de Torga. Miguel Torga tornou-se num dos maiores expoentes do nosso universo literário e humano. Como? Sendo ele mesmo: íntegro, directo e solidário nas emoções que partilha quando o lemos. E quando o lemos, ele está lá, nos livros. Não desistimos de o ver lá, nos livros. Porque ele e os seus livros são pedaços de uma realidade, de um sofrimento e de uma esperança que são essenciais ao leitor. Ele e os seus livros são quase o nosso corpo e a nossa distância. Deixou, em tudo o que escreveu, uma imensa seara em alvoroço, um lume transcendente de horizontes, uma lonjura de gestos e uma ladainha de traços que nos permitem compreender melhor toda a dimensão da nossa identidade. “ Sei um ninho” onde todos os escritores e poetas se reúnem depois da vida, onde as estrelas se fundem com as névoas e de onde, todos os dias, parte um poema, um conto ou um sopro de sol, em direcção aos outros, a nós. E é precisamente isso que nos afasta da loucura. Nelson Ferraz in “O Coleccionador de Bugigangas”, 2008.
Posted on: Mon, 12 Aug 2013 22:11:42 +0000

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