O PROBLEMA DO CRISTO Não posso, neste momento, evitar um suspiro. - TopicsExpress



          

O PROBLEMA DO CRISTO Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje. Seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como todo estudioso, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole. O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente – é uma indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. Olho à minha volta: não resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber que um teólogo, um padre, um papa não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente. O padre sabe que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador”; que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do mundo” são mentiras. Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido; no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade, como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato de ser cristão a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” é simplesmente uma auto-ilusão psicológica; parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos! A “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo. Sempre se fala de “fé”, mas se age de acordo com os instintos. Retire-se uma ideia e coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o cristianismo reduz-se a um nada! Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não apenas dependente de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos à vida e ao coração. O destino do Evangelho foi decidido no momento da morte do Cristo. Somente a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente este assombroso paradoxo colocou os discípulos face a face com o verdadeiro enigma: “Quem era este? O que era este?”. O sentimento de desalento, de profunda afronta e injúria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutação de sua causa; a terrível questão: “Por que aconteceu assim?”. Tudo que Jesus poderia desejar através de sua morte, em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possível, um exemplo de seus ensinamentos. Mas os discípulos estavam muito longe de perdoar sua morte – apesar de que fazê-lo seria consoante ao evangelho no mais alto grau; e também não estavam preparados para se oferecerem, com doce e suave tranqüilidade de coração, a uma morte similar... Muito pelo contrário, foi precisamente o menos evangélico dos sentimentos, a vingança, que os possuiu. Parecia-lhes impossível que a causa devesse perecer com sua morte: “recompensa” e “julgamento” tornaram-se necessários. Uma vez mais a crença popular na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a atenção foi direcionada a um momento histórico: o “reino de Deus” virá para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo há um mal-entendido gigantesco: conceber o “reino de Deus” como ato final, como uma simples promessa! Por outro lado, a selvagem veneração dessas almas completamente desequilibradas não podia mais suportar a doutrina do Evangelho, ensinada por Jesus, sobre os direitos iguais entre todos os homens à filiação divina: sua vingança consistiu em elevar Jesus de modo extravagante, destarte separando-o deles. Este Deus único e este filho único de Deus: ambos foram produtos do ressentimento... E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-lo?” Para o qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados. De uma só vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício pelos pecados, e em sua forma mais bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado dos culpados! Que paganismo apavorante! O próprio Jesus havia suprimido o conceito de “culpa”, negava a existência de um abismo entre Deus e o Homem. Desde então o tipo do Salvador foi sendo corrompida, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte como sacrifício, a doutrina da ressurreição, através da qual toda a noção de “bem-aventurança”, a inteira e única realidade dos Evangelhos é escamoteada – em favor de um estado existencial pós-morte!... Paulo, com aquela insolência rabínica que permeia todos seus atos, deu um caráter lógico a essa concepção indecente deste modo: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, então é vã toda a nossa fé” – E de súbito converteu-se o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!...
Posted on: Sat, 27 Jul 2013 23:47:17 +0000

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