ODE A CHUVA (Pablo Neruda) Voltou a chuva. Mas não veio do - TopicsExpress



          

ODE A CHUVA (Pablo Neruda) Voltou a chuva. Mas não veio do céu ou do Oeste. Voltou da minha infância. A noite abriu-se, um trovão comoveu-a, o estrondo varreu as solidões, e então chegou a chuva da minha infância, primeiro numa rajada raivosa, depois como a cauda molhada dum planeta, a chuva tic tac mil vezes tic tac mil vezes um trenó, uma vasta pancada de escuras pétalas na noite, subitamente intensa crivando a folhagem com agulhas, outras vezes um manto tempestuoso tombando no silêncio, a chuva, mar do céu, rosa fresca, nua, voz celeste, violino negro, formosura, amo-te desde criança, não por seres boa, mas pela tua beleza. Caminhei com os sapatos rotos enquanto os fios do céu escancarado se desatavam sobre a minha cabeça, traziam-nos a mim e às raízes, as mensagens das alturas, o húmido oxigénio, a liberdade do bosque. Conheço os teus desmandos, o buraco no telhado gotejando nos quartos dos pobres: ali desmascaras a tua beleza, és hostil como uma celestial armadura, como um punhal de vidro, transparente, ali conheci-te de verdade. No entanto, continuei apaixonado por ti, de noite fechando os olhos esperei que caísses sobre o mundo, esperei que cantasses somente para o meu ouvido, porque o meu coração guardava toda a germinação terrestre e é nele que se fundem os metais e o trigo se levanta. Amar-te, no entanto, deixou-me na boca um gosto amargo, amargo sabor de remorso. De noite, aqui em Santiago, somente as povoações de Nueva Legua se desmoronaram, as vivendas cogumelo, amontoados fragmentos de ignomínia, ao peso da tua cólera desmantelaram-se, as crianças choravam na lama, as camas encharcadas dias e dias, as cadeiras quebradas, as mulheres, o lume, as cozinhas, enquanto tu, negra chuva, inimiga, caías desalmadamente sobre a nossa miséria. Eu creio que um dia, que marcaremos no calendário, terão abrigo seguro, sólido tecto, os homens no seu sono, todos os adormecidos, e quando de noite a chuva regressar da minha infância cantará nos ouvidos doutras crianças e alegre será o canto da chuva no mundo, e trabalhadora, proletária, ocupadíssima, fertilizando montes e planícies, dando força aos rios, engalanando o suave arroio perdido na montanha, trabalhando no gelo das nevadas, correndo sobre o lombo do gado, engrandecendo o germe primaveril do trigo, lavando as amêndoas ocultas, trabalhando denodadamente e com delicadeza fugidia, com mãos e com fios na preparação da terra. Chuva passada, ó triste chuva de Loncoche e Temuco, canta, canta, canta sobre os telhados e as folhas, canta no vento frio, canta em meu coração, na minha confiança, no meu telhado, em minhas veias, na minha vida, eu não te receio, resvala para a terra cantando com o teu canto e com o meu porque os dois temos trabalho nas sementes e partilhamos o dever cantando.
Posted on: Thu, 27 Jun 2013 01:51:58 +0000

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