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SEM ALMAS J.Marins Prólogo _______________________******_______________________ SOUL Despachando o auxiliar para a sala contígua como se fosse uma mosca que planava entre eles, o doutor Daniel Tüder puxou o laptop pra fora do pacote, colocando-o na mesa. Abriu-o e apertou o botão ON. Em um instante soou a introdução e, depois, seus dedos produziram o meticuloso ruído da digitação no teclado de borracha, que tinha retirado do bolso da jaqueta, e conectado ao aparelho. Era noite, final do dia. Próxima dele, havia uma Bíblia aberta no Velho Testamento, em Jô, que ele já tinha lido três vezes para matar o tempo. - Daqui não passarás – ele repetiu o trecho bíblico, sorrindo. Ele não sabia dizer exatamente o que estava fazendo – era a quinta vez naquele dia, mas tinha consciência de que deveria fazer o registro do que testemunhara durante todas aquelas longas horas do seu plantão. Seis minutos se passaram, depois outros quatro. Vez ou outra Daniel dava uma pausa ou relia um item para ver se o que tinha escrito retratava exatamente tudo o que havia acontecido. Daniel tomou um grande gole de água e fez uma leitura concentrada. Setecentos e cinqüenta dólares. Foi o quanto pagou ao intermediário para usar o computador e o programa naquele dia; e a pergunta que não desaparecia de sua mente era se aquele valor era uma despesa, ou se isso estava incluído no negócio. De qualquer forma, pensou sorrindo, na pior das hipóteses, ele ainda sairia da empreitada com um lucro por volta dos seis, sete mil dólares – além dos seus honorários, que somando davam quarenta e oito horas e uma fração a serem reembolsadas. No total, em apenas uma jornada, ele ganharia em torno de quinze mil dólares. Ele entreteve-se com o computador por mais dez minutos, sabendo que seu dia no departamento fora sensacional. Era sua primeira experiência, e ele estava feliz por Douglas Plenty ter lhe concedido trabalhar em seu lugar no departamento SOUL, trocando de turno com ele naquele dia. Tinha sido sua primeira vez, e desejava repetir. Com a perspectiva de embolsar muito dinheiro, ele se regozijava por ter descoberto o que o pessoal da Corporação fazia no departamento. Felicitava-se por Douglas ter uma dívida de gratidão consigo desde o tempo da faculdade, quando lhe salvara a vida. E agora, com aquela oportunidade, Daniel jamais seria o mesmo. Detinha uma preciosa informação. E gostaria de usufruir dela ao máximo. Ao menos assim ele imaginou. Quem sabe até não se tornasse efetivo no SOUL? Afinal, no departamento apenas trabalhavam os melhores entre os melhores. Os mais capazes. Os mais técnicos. Os mais competentes. E, principalmente, os mais bem remunerados. Pelo que ele descobriu, o SOUL era um programa do governo ainda em fase experimental para decodificação e controle da genética das doenças catalogadas em todo o mundo. Seus cientistas tinham feito um mapeamento de todas elas, descobrindo uma forma de eliminá-las definitivamente, utilizando um sistema baseado na centrifugação neutrínica das células humanas, por meio da conectação do cérebro a um programa de computador – o SOUL. Uma vez conectado, o paciente passaria por uma varredura molecular, com a introdução do SOUL nos seus sistemas eletromagnéticos, gerando a difusão eletroquímica dos códigos introduzidos, que alterariam as formulações nucleares de cada uma das células dos sistemas linfáticos humanos impedindo a geração de doenças e, em quem já fosse doente, curando qualquer outra já existente ou predisposta a existir. O lugar selecionado pelo governo para o inicio do experimento tinha sido ali, na tranqüila cidade de Larson, que havia sido escolhida, após o satélite do projeto ter escaneado oitocentas e trinta e duas localidades em todo o país. E a Corporação – o nome da agência instalada no lugar para as operações, aproveitou a penitenciária federal que ali existia, para usar os detentos como cobaias. Daniel já havia aplicado o SOUL cinco vezes naquele dia. E cinco relatórios ele já tinha feito. Sorria satisfeito, embora não compreendesse ainda muito bem os efeitos do SOUL, e nem porque os pacientes pareciam catatônicos após a conexão ao sistema. Mas, isso não era nada. Estava em seu dia de sorte. Daria um beijo em Douglas se ele não fosse barbudo. Um barulho seco o fez parar a digitação, entretanto. Algo como um batuque. Depois um estalido seguido pelo rumor de uma pancada, como se um corpo tivesse sido jogado no chão. Ele olhou para os lados. Estava sozinho. O auxiliar já deveria estar no estacionamento. Daniel inspirou profundamente. Então, as luzes se apagaram. Ele meneou a cabeça pra frente e pra trás. Um sopro perto dele. As mãos no teclado. Aliás, elas pareciam presas a ele. Daniel se ergueu. Estranhamente seus dedos não o seguiram, permanecendo ligados ao teclado. Isso o assustou. Ele olhou para a tela. O texto do relatório havia desaparecido, aumentando o seu temor. Em seu lugar, abriu-se a sigla do programa, que se exibia como a bandeira negra de um navio pirata, piscando como se fosse um vírus, como se avisasse que dali nada mais passaria. Ele lembrou-se da passagem bíblica de Jó. - Mas, o quê? – murmurou, com os olhos muito abertos. Daniel sentiu novamente o sopro. Frio como a neve. Uma, duas, três vezes. Algo percorrendo a sala, como se um ser vindo do nada tivesse penetrado nela trazido pela escuridão, vindo em sua direção. Ele suou, apesar de não estar fazendo calor. Tentou arrancar os dedos do teclado de borracha, que agora parecia ser de ferro. Nada. Dedos presos. Mãos atadas. Horror crescendo. Dúvidas se avolumando. O emblema do SOUL piscou mais forte. O start foi acionado. Ele suou mais ainda. Estaria enlouquecendo? O processo de centrifugação neutrínica entrou em andamento. Daniel exasperou-se. O donwload tinha sido iniciado. Filetes de energia sísmica começaram a se introduzir pelas suas falanges. Ele aterrorizou-se. Uma tentativa de gritar, sufocada, contida. O corpo se eletrificando. Tremores. Espasmos. Desespero. Uma dor no centro da barriga como se um punhal rasgasse seu bucho diametralmente, espalhando-se para as costas, atingindo a coluna com um fogo incandescente, espargindo-se até o cérebro. Daniel fez força para sair dali. Estava sentindo uma espécie de determinação estúpida, atordoada. Sua própria ambição o levara ali. Ele pressionara o colega. Não. Na verdade, tinha feito chantagem. Ou Douglas permitia que ele trabalhasse no SOUL naquele dia, ou ele divulgaria as fotos comprometedoras dele com a estagiária. Fizera isso pela ânsia do dinheiro. As trinta moedas. E ele se dispusera a entrar ali e testar o programa em cinco seres humanos. Então, por que agora estava tão preocupado, temendo a morte? “Os sintomas” – gritou dentro da mente, completamente impossibilitado de falar. Veio a sensação de vômito. Ouviu-se outro ruído, seguido de um sibilo. Ele escutou os próprios músculos estourarem e sentiu uma dor intensa no pescoço, enquanto seu corpo parecia estar sendo literalmente rasgado em pedaços em seu esforço de se mover contra os íons imobilizadores e invisíveis que o continham. O mundo se tornou negro, e ele queria gritar sua raiva e seu mais absoluto terror, mas essas habilidades não estavam ao seu alcance. Nada estava mais ao seu alcance. Havia apenas a dor, ondas de dor, jorros de dor, oceanos ferventes de dor. Em meio à agonia, Daniel começou a sentir a estranha sensação de que estava balançando, como se estivesse em um barco ou em um balanço. Ele olhou pra frente, mirando a si próprio caminhando. Não era ele, era algo plasmático que se assemelhava com ele, com uma linha luminosa e esverdeada em volta. Algo que ele rapidamente entendeu do que se tratava. A próxima sensação que ele sentiu foi do mais completo horror. A centrifugação neutrínica havia atingido o ápice, e Daniel sentiu-se amordaçado, com o esôfago invadido, como se cabos grossos tivessem sido enfiados à força, socados e retirados várias vezes pela sua garganta. Aquilo doía mil vezes mais do que tudo até então, e reverberava para sua mente. Começou a vomitar. Seu corpo tentando expulsar a coisa de dentro dele. Tentou emitir sons, gritar. Nada. Dali não passaria, estava certo disso agora. Daniel se sacudiu, amaldiçoando-se. Douglas não tinha lhe feito um favor. Douglas o tinha atraído para uma armadilha. A pior de todas. Sem volta. Sabia perfeitamente o que estava acontecendo. Os mesmos sintomas. Tudo o que tinha escrito nos relatórios. O SOUL estava dentro dele. E ele, agora, percebia que já não estava mais ali, tinha sido sugado para o sistema. Mas não, pensou. Seu corpo ainda estremecia e se agitava. Estava ali, preso pelos dedos ao teclado. O plasma se aproximou dele, circulando. Depois assoviou, como se estivesse esvaziando. Mirou o seu rosto, e ele pode ver que era ele mesmo numa concepção completamente absurda, fora do possível. Era sua alma, a parte essencial dele que teria a partir dali outra definição. A entrega do bem mais precioso. Seria mais um entre os muitos algarismos dos códigos do sistema. Daniel não seria mais um ser humano. Estaria desprovido da sua essência. Sua alma. Redirecionada para o sistema. As páginas vivas da sua alma, como se fossem de um livro, foram varridas do seu corpo, e entraram num novo estado, codificadas, presas no programa SOUL, como algarismos ágeis e reluzentes, uma seqüência do plasma de elétrons, que se moviam na tela do computador, transferidos para o banco de dados da programação. Enfim, cessaram os tremores. As luzes retornaram. Daniel estava parado. Os dedos libertados do teclado. Os olhos vazios. O rosto vago. A vontade suprimida. Um homem esvaziado. Mais um para o experimento. Pronto para o sentido verdadeiro do projeto. A porta da sala contígua, e, como um zumbi. Dela vieram três homens. Os mesmos que serviram naquele dia como seus auxiliares. Usavam herméticas roupas brancas e mascaras compridas com grandes óculos escuros. Dois deles pegaram Daniel pelos braços, e ele não reagiu. O terceiro sentou diante do laptop, acionou o sistema, após digitar uma senha, certificando-se que mais uma alma havia sido capturada. Entretanto, a sombra da preocupação varreu seus olhos. “O idiota vazou as informações” – pensou, largando o computador e se levantando apressado em busca dos seus superiores, jogando pra trás a cadeira de madeira. Quando a porta se fechou, a escuridão retornou. Absoluta. Mas não completamente. Havia um brilho, intermitente, que vinha da tela, dos filamentos que se agitavam no encadeamento de algarismos do programa. Era uma luz, que se espargia por todo o laptop. Era a luz de mais uma alma cooptada à força para o sistema SOUL. A energia eletromagnética retirada de um ser vivo. O sopro de Deus concebido no ato do nascimento. O amalgama misterioso que explicava a existência humana como herdeira do Criador. Era ela sim. Ou ao menos aquilo que um dia deu razão à existência do corpo de Daniel Tüder.
Posted on: Sun, 27 Oct 2013 14:13:51 +0000

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