Sentado diante da antiga mesa esculpida em mogno, ele folheava - TopicsExpress



          

Sentado diante da antiga mesa esculpida em mogno, ele folheava lentamente as páginas do livro carcomido e embolorado, detendo-se por vários instantes em cada uma. Quem o observasse acharia que examinava o misterioso volume pela primeira vez na vida, mas a verdade era já ter feito aquilo centenas, senão milhares de vezes. Os olhos percorriam os registros a mão e rascunhos de desenhos feitos nas páginas com o máximo de cuidado, buscando algum detalhe até então despercebido, uma pequena pista que poderia desvendar de uma vez a grande charada. Ao seu redor, a comprida sala retangular se encontrava dividida em dois ambientes, separados exatamente no ponto em que a mesa estava situada. À sua esquerda, as paredes eram revestidas de estantes de livros que se estendiam do chão ao teto, contendo uma infinidade de obras tratando dos mais variados assuntos, embora se concentrassem mais em História e Arqueologia, além de possuírem em comum o fato de quase todos serem bastante velhos. Daquele lado o recinto era quase todo de madeira, desde as prateleiras até o assoalho no chão e os móveis requintados cortados das árvores mais nobres. Já à sua direita, as tábuas intensamente enceradas davam lugar ao piso gélido formado por azulejos brancos, compondo ambiente mais moderno, aos pés de painéis de madeira nas paredes que, cobertos de vidro e iluminados por lâmpadas internas, constituíam uma contínua vitrine que revestia toda aquela seção. Nelas estavam em exibição uma infinidade de armas: desde medievais, como uma variedade de espadas, adagas, machados, martelos, maças, arcos e bestas; passando por algumas provenientes dos séculos XVII ou XVIII como pistolões dignos de filmes de piratas e mosquetes com baionetas na ponta dos canos; até as mais modernas, incluindo rifles e metralhadoras das duas Guerras Mundiais, revólveres e espingardas. Até uma bazuca cilíndrica estava disposta no topo de uma das vitrines, como uma espécie de “último recurso” se alguém um dia quebrasse aqueles vidros em busca de armamento para se defender. No centro do lugar, entre as duas áreas distintas, via-se a já descrita mesa de mogno em que o indivíduo lia o livro maltratado pelo tempo e, na parede acima dela, um quadro a óleo antigo retratando um militar condecorado, a farda repleta de medalhas e o semblante idoso de farto bigode branco remetendo a um clássico general da época em que as guerras eram mais difíceis de travar – se é que possa existir uma guerra fácil. Às costas do homem sentado estava a porta dupla da sala, também de madeira... e acima dela, resvalando no teto, uma bandeira vermelha presa por um suporte de metal – contendo em seu centro um círculo branco com uma espécie de “X” dentro, cada uma das pontas guinando e se estendendo para a direita, com isso dando ao símbolo o contorno de um losango. Não era preciso muito estudo, independente da pessoa, para saber que aquilo era uma suástica, símbolo da Alemanha na época do nazismo. Visivelmente cansado, o homem examinando o livro levou uma mão à testa para limpar seu suor, enquanto virava mais uma página com a outra. Analisou a gravura existente nela durante alguns segundos, até fechar o exemplar num suspiro de derrota. Na capa desgastada do livro havia uma inscrição em alemão: Forschungs- und Lehrgemeinschaft das Ahnenerbe, além de duas outras palavras, escritas a mão usando caneta, que não podiam ser facilmente identificadas – embora parecesse o nome de alguém. Coroando as inscrições existia um emblema estranho em formato oval, rodeado de letras de alguma escrita antiga e tendo no centro uma espada com a lâmina voltada para baixo, no meio do que aparentava ser o laço de uma corda. Empurrou o livro de leve com os dedos depois de encará-lo fechado durante alguns instantes. Não admitia ser vencido por ele. Era afinal de contas um Mǽr-líc puro, descendente dos gêmeos Hengist e Hors, sangue do próprio Odin. A humilhação que sentia por não conseguir desvendar o segredo que o avô morrera tentando compreender era incomparável. E apenas para superá-la continuava seguindo as ordens daquela maldita mulher, que já traíra o avô quando ordenara que sua divisão desse a própria vida em busca do tal lugar misterioso durante a Segunda Guerra Mundial... Súbito, uma campainha soou pela sala, semelhante a pequenos sinos batendo estridentes. Vinha da seção esquerda, convertida em biblioteca. Erguendo-se da cadeira diante da mesa bufando, o homem atravessou o tablado do chão até uma escrivaninha ao lado de uma das estantes de livros, de onde provinha o irritante barulho: sobre o móvel existia um telefone preto bem antigo, de discar, que embora conservado de maneira admirável devia pertencer aos anos 1930 ou 1940. Retirou o receptor do gancho e levou-o ao ouvido, na esperança de que fossem boas notícias – para compensar sua frustração em relação ao livro: - Alô? A voz do outro lado era baixa e distorcida, talvez mais por medo do que devido a problemas técnicos: - Senhor comandante, aqui é Terror Saxão. Tenho notícias sobre a operação em Mirabela. O superior respirou fundo. As coisas ainda não melhorariam, ao menos não naquela noite. Preparou-se psicologicamente e replicou: - Reporte tudo, Terror Saxão. - O alvo fugiu, salvo por membros da Ordem de Excalibur. Seu atual paradeiro é desconhecido, embora suspeitemos que ainda se encontre nos limites da cidade. Três dos nossos homens foram nocauteados e caíram nas mãos da polícia local. Devemos intervir? - Negativo, Terror Saxão. Eles sabiam dos riscos da operação e que ninguém do clã interviria caso fossem detidos pelas forças da lei. Agora estão à sua própria sorte. O que importa é o garoto. Pelo visto estávamos mesmo na pista certa, e não podemos perder o rastro. Vasculhem os arredores da cidade, deve haver algum sítio ou fazenda em que o menino esteja se escondendo com o mago e os cavaleiros da Ordem. Se já tiverem ido embora, tratem de descobrir para onde. Aliás, vocês deveriam estar se mexendo desde que foram despistados. Percebo que sua divisão não vem demonstrando muita competência ao agir... O comandante pôde sentir o pavor do subordinado quase palpável através do telefone, e isso serviu para lhe restaurar um pouco a autoestima que a exaustiva análise do livro havia consumido. Terror Saxão, que de causador estava agora mais para aterrorizado, levou alguns instantes até conseguir responder: - Mas estamos nos mexendo, senhor. Os homens da divisão já investigam desde que o garoto desapareceu com os Cavaleiros. Conseguiremos algo, isso posso garantir. - É melhor mesmo, soldado, para seu próprio bem. Retorne contato assim que tiver novas informações. - Sim senhor. Terror Saxão desligando. O comandante pousou de volta o receptor sobre o telefone, imaginando o quão mais seus homens conseguiriam ser incompetentes. Nem pareciam ter o sangue da tribo, e sim constituírem saxões miscigenados como os ingleses que correram para os túneis do subsolo feito baratas quando a Força Aérea Alemã bombardeou Londres durante a guerra. Esperava sinceramente que não mais falhassem, visto que, além de puni-los, teria de agir por conta própria. E tinha mais com o que se preocupar, no momento, do que sujar as mãos com trabalho braçal... Caminhando de volta ao centro da sala, passou por ele direto e rumou até a seção oposta, contendo a vitrine com as armas. Deteve-se diante dos artefatos medievais, o olhar lançado mais precisamente sobre uma faca fina e longa que tinha destaque entre as outras lâminas da coleção, de corte apenas de um dos lados, presa a um pequeno cabo feito de osso. Tratava-se de uma seax, a antiga adaga usada por seus antepassados e de onde provavelmente tinha surgido o nome “saxão”. Mesmo com suas desvantagens em relação a outros tipos de armamento, inclusive da mesma época, aquela era por motivos óbvios a arma preferida do comandante. Além da que estava em exposição, possuía outra que sempre trazia consigo dentro de uma bainha presa à cintura – como naquele momento. Sua vontade, toda vez que fitava o ferro da faca ou o sentia na ponta dos dedos, era enfiá-la no coração do herdeiro do lastimável rei dos bretões... mas resolvera dar um voto de confiança a Morgana. Ela insistira que o garoto seria útil para encontrarem a ilha, a profecia falando que apenas ele conseguiria desvendar as coordenadas. Apesar da insistência em tentar desvendar os apontamentos do avô, começava a reconhecer que somente uma intervenção externa poderia mesmo elucidar aquele enigma, apontar a direção correta que o clã há anos tentava inutilmente recuperar... Mas quando tivermos o artefato em mãos, Morgana não verá nem mesmo o brilho dele. Eu, Hartwig von Wooden, restaurarei a glória da tribo Mǽr-líc, e ganharemos tanto poder que todo o mundo terá de se curvar perante nossas armas. O tempo dos germânicos está voltando... e você, miserável feiticeira-fada dos bretões, será nosso instrumento rumo à glória. Não podia se esquecer também do menino. Sim, ele o capturaria e o manteria vivo enquanto fosse necessário... para depois dar-lhe o mesmo destino que planejava para a senhorita Le Fay. Seria a revanche pela Batalha do Monte Badon. A vingança definitiva por séculos tendo de conviver com o gosto amargo da derrota. (O Legado de Avalon - Livro II: A Profecia do Condestável)
Posted on: Thu, 14 Nov 2013 10:25:55 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015