A CHÁCARA De vez em quando, lembro da Alessandra. O dia em que - TopicsExpress



          

A CHÁCARA De vez em quando, lembro da Alessandra. O dia em que a conheci foi a primeira vez que vi uma chácara. Daí, quando penso em um local ideal para uma chácara, por sorte já conheço. Só que estar lá exige um pouco de paciência. Comprei há alguns anos. Na época, pouquíssima gente se interessava. Era muito agreste. Havia luz apenas na rua, ruínas de um barraco de adobe, mato pra caralho. E uma colina imensa logo no pé do terreno. O lugar é perfeito para aeromodelismo. Cresci morando em apartamentos. Era um saco ter que pisar leve para não incomodar o vizinho de baixo, e por sorte sempre tive bons vizinhos de cima. Na falta do que fazer típica da vida de Plano Piloto, eu passava meu tempo fazendo no meu ritmo planadores de isopor. Morando no quinto andar eu achava ótimo poder jogá-los da janela. Um dia chegou um novo vizinho. Ele tinha uma chácara. Eu nunca tinha estado numa chácara antes, e achei imenso o lote dele em relação aos apartamentos. Fora isso, tinha também fonte própria de água – o que é invejável em muitos países. Foi a primeira vez que vi calangos. Se não me engano matei um. Não conhecia! Ah, e conheci a filha dele também. Na época era uma gracinha, toda menina. Lembro que eu gostava muito de conversar com ela embaixo do bloco. O tempo passou, vira e mexe tenho notícias dela. Diz-se que ela não precisa muito para ser feliz: só quer uma casinha branca para ver o sol se pôr... em Paris. Enfim: descobrir o que era dispor de espaço para fazer o que se quer me fez comprar um terreno de boa extensão. Frente para uma rua basicamente rural, vizinhos ao lado e ninguém nos fundos. O terreno tem duas colinas sobrepostas, que fazem um local perfeito para vôos de aeromodelos. Naquele momento, foi conveniente manter somente um pequeno depósito para material de construção – do tamanho de uma quitinete. Chamou pouca atenção sobre o local e o mato crescido em volta dava discrição ao terreno. Só faltava construir uma casa. E um aeromodelo. Construí a casa. Depois fiquei sem saco para montar um aeromodelo. De vez em quando passo pelo terreno. Passou muito tempo sem mexerem na cerca. De uns meses para cá algumas estacas de madeira apodreceram e caíram. Em questão de semanas, os malandros da rua levaram todo o arame. Isso é mais ou menos o que quem tem uma chácara precisa estar preparado: supresas. Tem um lance: menino criado no Plano não anda fácil por lá. É relativamente perigoso, tem que saber chegar chegando. No meu caso, o estado de atenção dobra automaticamente conforme chego nas imediações. Ariel Costa viu. Conforme a gente vai saindo do meio mais urbano, parece cena de faroeste. Gente mal-encarada em toda parte. Abaixamos o som do carro. Fomos conversando, dirigindo devagar. Com o sol quente, nem os malandros estavam na rua. O asfalto... exige uma motocicleta de cross – que por sorte já tenho. Muito buraco. De repente, uma ponte. O limite entre um município e outro, e começava o pequeno trecho de estrada de terra. Ali, casas pequenas mais próximas do início da rua, e lá no final o destino. A educação local faz a gente andar devagar para não levantar a poeira fina como talco. Com o tempo, aprende-se a respeitar as mulheres que penduram suas roupas no varal. Minha mãe ali iria viver furiosa. Mulher? Acho que estou com sorte de não ter namorada. Qualquer mulher mesmo feia que me acompanhe é um mulherão lá. E isso chama atenção demais, acaba com a tranqüilidade da vida reservada que se desenha naturalmente para quem quer sossego. E se eu pegasse alguém comendo minha mulher num local daqueles, evito até pensar. Aliás, não preciso pensar. Estado civil atual: celibatário. Gosto de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) porque ando em muitos lugares. Tenho gosto por conhecer gente simples porque me fazem sentir poder fazer algo duradouro nas situações que presencio. De vez em quando, alguns rudimentos se encaixam com as noções de geografia, e é possível perscrutar o futuro de uma localidade. Vivo um exemplo prático disso. Jurandir cria porcos. Mora em uma antiga área rural próxima ao que era, há muito tempo, zona de expansão urbana. O problema do Jurandir foi o progresso. Me pareceu inteligente e um pouco mais perspicaz que a maioria dos demais moradores. Ouvi de um amigo comum que antigamente ele andava entre os pequenos e médios mercados recolhendo frutas, verduras e legumes sem condições de venda para alimentar seus porcos. Jurandir tinha um carro velho. Com o tempo, mais famílias de baixa renda cercaram seus terrenos à volta, como Jurandir. Ao chegar na rua, com o carro abarrotado de verduras em estados variados, provavelmente sentia pena dos vizinhos. E dividia o que havia aproveitável com os outros moradores. Havia poucos vizinhos e seu pequeno pedaço de terra foi adquirido praticamente pela modalidade jurídica popular que se traduz termo de posse. O costume. Quando conheci o lugar ainda não conhecia Jurandir. Um amigo me levou ao vilarejo dizendo ter negociado terras por uma pequena quantia de dinheiro e uma televisão. Era uma televisão enorme, mas ultrapassada. Perguntei sobre os papéis, e Paulo me disse as condições do local. Somente um poço e alguns pedaços de arame do que já havia sido uma cerca. A gente parou o carro fora de outro terreno, que de acordo com os locais estava à venda. Andamos muito para chegarmos ao terreno de Paulo. Olhei em volta. Tendo vivido parte da vida em apartamentos e parte em casas, fiquei impressionado porque ficava praticamente em um vale. As duas colinas nas laterais permitiam mesmo a instalação de um rapel como comentava. Não liguei para a idéia na época, não me ligo em rapel. Com o tempo, Paulo montou uma equipe de conhecidos e levantou uma cabana suspensa de madeira. O esforço humano foi considerável. Mas as condições do terreno ainda negavam energia elétrica, dificultavam a extração da água e não fornecia condições de alimentação. Paulo desistiu do local. O barraco foi desmontado.¹(recentemente soube que ainda assim, consta como uma moradia no mapeamento do período). Na época, me interessava por comprar uma casa. Havia recém vendido um apartamento e a previsão era morar alguns anos com meus pais. Dois carros, duas motos, pouca garagem. Essa era minha condição durante bom tempo. Um dia, Paulo me falou com certa discrição que o “dono” do terreno logo da entrada estava querendo vender. Voltei ao local para pensar com clareza. Daí prestei mais atenção ao que havia. Uma grande colina terreno acima e o acesso ao terreno de Paulo. Cinquenta metros de frente, e até 20.000 metros quadrados com dois vizinhos. Lembro ter pensado por noites a fio. Mas no final, tudo o que eu pensava era ter morado em apartamentos e achar muito espaço. O pretenso “dono” dizia ter comprado diretamente de uma das herdeiras da antiga fazenda que havia no local. Disse que queria a ridícula quantia de 600 reais. Eu tinha um reboque de 1.200 reais. Dei o reboque e uns trezentos reais em dinheiro. Isso foi há vários anos. Com o tempo, a vontade de estar em um local tranqüilo e fora da cidade me levou a construir um pequeno abrigo de dois cômodos para guardar ferramentas. Ficou num tamanho que rapidamente foi acrescentado um banheiro e virou uma espécie de chalé. Do tamanho de uma kitinete comercial. Só que para construir, menino do plano piloto não faz sozinho. Não tenho o menor conhecimento sobre tijolo e cimento, e me vi com um problema. Por outro lado Marcelo, outro amigo, sabia como fazer o serviço. E precisava de dinheiro. Havia também a questão jurídica que evidentemente adviria da situação. Dizia-se na época que para ter acesso a documentos de posse da terra, era necessário se cadastrar no sindicato dos trabalhadores rurais como agricultor – o que me impedia ao negócio. Na verdade, muitos conceitos podem ser utilizados em praticamente qualquer área. Se é verdade que a mente que se expande nunca mais volta ao tamanho normal, descobri também que uma zona rural transformada em zona urbana, nunca mais retornará à sua condição original. Isso não se deve ao ordenamento legal por nenhum processo de desenvolvimento das cidades. Isso se dá pela necessidade de conversão uso do solo de agrícola para expansão urbana. Tudo isso tem sido feito sem acompanhamento de impacto ambiental adequado. Corrupção. Pesava saber que decisões de tal natureza devem ser pensadas além de nossa própria existência, num desmembramento necessário quanto à sucessão dos filhos. Uma filha, no meu caso. Naquele tempo eu fomentava a idéia de um lugar tranqüilo onde minha filha pudesse me visitar, ao invés da casa de meus velhos. Pensei em como deixar alguma coisa para minha filha, que soubesse ser mais útil e de valor pessoal do que financeiro, fugível. Algo para ficar impresso no tempo, um presente. Ao mesmo tempo, como em qualquer parceria, via o lado do Marcelo. Mulher e um filho chegando, morando como os pais, sem emprego. Me imaginar na situação testava minha criatividade pensando no que fazer no lugar dele. Na minha vez não foi tão difícil. Pude estudar, e isso não foi mérito, sim sorte. O fato é que juntamos cérebros, dinheiro e os braços para criar um local onde a gente pudesse tomar uma cerveja sossegado e com o tempo levar as crianças. Quase um “clube de papais”. Reclamávamos muito pouco de mulheres, afinal não era um sindicato... o sossego custou em torno de apenas mais 5.000 reais. Uns 7.000 contando combustível e outros. Desde a construção da casinha a gente usou bastante a cabeça. A água foi obtida no poço do Paulo, uns 200 metros de distância, terreno acima. A gente fez o impensável: ao invés de levar fios e bomba até o poço esticamos a mangueira, adaptamos um compressor de água e ao contrário de puxar água do terreno mais alto, enviamos mangueira acima. Quando encheu foi só desconectar o compressor, tirar as bolhas e a pressão do declive trazia a água do fundo do poço por gravidade até a caixa. Genial. Tchelo plantou umas bananeiras, um pé de tangerina, um ipê. Fez até um pequeno tanque para comportar alguns peixes para consumo próprio. A gente ia levando a empreitada com algum ânimo até o dia em que, acelerado como um fórmula 1 eu simplesmente “fritei”. Hospital e tudo. Resultado: nem eu, nem ele conseguimos acompanhar o local daí em diante durante bastante tempo. Quando retomei o ritmo e voltei ao “bunker” um dia, a cerca havia sido derrubada em dois ou três pontos. As estacas de madeira simplesmente não agüentaram os cupins, e cederam. Semanas depois, os malandros do outro lado do rio Santa Maria roubaram todo o arame. A casa ficou desprotegida, e os vagabundos provavelmente já cobiçavam o poste de energia exposto. Enquanto me preparava para erigir uma cerca com mourões de concreto, Jurandir apareceu. Veio visivelmente aliviado por nos ter encontrado. Ele sabia que eu gostava de legislação e apresentou a situação dos demais moradores. Uma empreiteira havia comprado o terreno oficialmente da mesma família de agricultores. A empreiteira gerou pânico na população. Pânico de perder o único local onde moram. Enquanto ouvia parcialmente o que ele ia dizendo, arredondei o gasto total no local até o momento em torno de dez mil reais. Ouvi com atenção e, quando se despediu, Jurandir reiterou que havia sido logrado. Os advogados que contratara eram parceiros dos advogados adversários. Percebi que toda sua estratégia pessoal havia sido entregue, de bandeja, pelo advogado que deveria defendê-lo. Se ele foi logrado, os outros moradores cairiam por tabela, cada um. Ou aceitariam quantias irrisórias para abandonar seus bens. Uma senhora, mãe de um vizinho e construtora de uma igreja disse que só um advogado de Deus poderia impedir que sua chácara fosse tomada. Enquanto voltava para o conforto da casa de minha família, pensei que talvez, com um pouco de sorte, eu pudesse mostrar como virar o jogo. Ensinar a acabar com a chance de construtoras avançarem as mazelas da cidade para o campo produtivo adjacente. Parece tão complicado quanto empreender uma guerra assimétrica sozinho. Não para mim. Nessas horas, acho bom botar pra foder. Comecei vendo o local de cima, pelo satélite. A expansão urbana circundante, e o tempo aproximado para aquilo se formar. Confrontei com certidões alegadas pela construtora e entendi todo o jogo que as pessoas haviam me explicado. Vi as áreas verdes, em forma de colinas de cerrado limpo – que os fazendeiros não dão valor algum por desconhecer a importância ambiental desse bioma. E logo ali, no terreno do Paulo, há remanescências de uma pequena mina dágua. Ela reaviva nos períodos da chuva, correndo em direção ao contaminado córrego Santa Maria. Furando apenas alguns metros é possível recuperar uma mina dágua, uma nascente. Outro recurso natural para a reposição é plantar pés de Buritis em torno do local. Isso estimula a nascente e contém possíveis erosões. Mudaria sobremaneira a destinação do local, em função da preservação, não residência ou valor financeiro. Não tira o interesse entre particulares, mas acrescenta o do Estado na forma do IBAMA. O IBAMA quando desapropria, indeniza. Só que a gente não pode ser estúpido e desconsiderar os fatores urbanos. Os terrenos em volta já estão todos praticamente com demarcações para futuros condomínios, e a área pavimentada de característica urbana seca a nascente. Pouca gente sabe o porquê, mas é bastante óbvio. Geografia. O cerrado limpo é importante porque é um filtro natural das águas da chuva. Descobri isso quando as máquinas passaram revelando que havia uma sequencia de elementos que assim trabalham naturalmente: capim, terra solta, cascalho, argila branca. As extensas áreas onde as chuvas incidem absorvem a maior parte da água, permeando por gravidade e reunindo-se em canais subterrâneos que mantém a terra, mesmo no tempo de seca, levemente úmida. Uma obra de engenharia da natureza que não é levada a sério quando mencionadas por alunos de Agronomia da UnB, mas que se expressa ali de modo tão nítido que os homens rústicos rurais conhecem com intimidade. E nós, urbanos, precisamos formar doutores. Voltei novamente para o Google Maps. Refiz a projeção da expansão urbana mentalmente e percebi que as áreas em volta seriam praticamente acimentadas. Com o tempo, o solo secará. Chácaras pobres serão transformadas em pequenos condomínios com casas agrupadas. Pessoas amontoadas. As cenas verdejantes que se vê nos dias de hoje serão substituídas pouco a pouco pelo que acreditamos ser progresso. Viver empilhado. O futuro dos filhos daquelas pessoas é urbano. Decidi procurar outro lugar para deixar para minha filha. Alguns anos de economia e compro à vista outra chácara, mas o que fazer com a que já está lá? Abandonar não pode. Coisa de bundão. Negociar é possível, mas não garante vitória. Manter. E criar uma confusão do caralho. Essa é a minha alternativa. Pra foder qualquer construtora você pode simplesmente espalhar várias árvores protegidas no terreno. Isso não altera sua posse da propriedade, mas impede que no futuro máquinas passem no local. Algumas sementes, uma estufa e água. Você faz um inferno na vida dos construtores consumado se as mudas passarem da média de cinqüenta centímetros. O oponente poderá até vencer a batalha jurídica, mas perde seu objetivo. Em vinte anos a área vira uma espécie de reduto de pássaros. E os pássaros espalham mais sementes. Você não precisa se limitar ao seu terreno. Pode fazer incursões silenciosas no terreno que já é do inimigo e plantar sem ser percebido. Enquanto isso, nada de guerra declarada ou entrar no jogo dos advogados deles. Basta trabalhar o tempo. As estações providenciam o resto. E o mais importante: distribuir mudas de graça entre os vizinhos. Isso reforça a estratégia social dos moradores, em detrimento de acordos entre associações. Muitas vezes envolve o IBAMA no acompanhamento de cada caso em isolado ou em conjunto. Numa situação dessas, muita gente se desespera ou preocupa. O segredo é ver como um desafio onde a guerra jurídica se arrasta, mas você acaba dispondo de um bom espaço para criar as coisas. E confusões, se quiser. O bom do jogo da vida é que a gente sabe que não vai sair vivo dele. Como os velhos ameaçavam a gente enquanto novo, você vai, e as as coisas ficam. Se ficarem os mognos, cerejeiras, o que for, ficam também os pássaros. E as abelhas, tiús, corujas... E talvez, com um pouco de sorte, calangos que não matei numa casinha branca. Não precisa ser em Paris.
Posted on: Sun, 01 Sep 2013 00:44:22 +0000

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