A SOLIDÃO, A NEBLINA E O SONHO Carmen Vasconcelos “E em - TopicsExpress



          

A SOLIDÃO, A NEBLINA E O SONHO Carmen Vasconcelos “E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele.” Georg Trakl Chovia fininho como uma benção. Ele caminhava por caminhar, pela cidade molhada. Tinha passado o dia rodopiando, havia gostado tanto daquela cidade, que tinha uma igreja enfeitada não por rezas, mas por um poema fincado na parede. Ele sempre soube, poema era coisa sagrada, mas encontrá-lo ali, feito oração... Só não sabia alemão, mas o nome do autor era mágico: Georg Trakl. Era dele a cidade, e também da música, a cidade de Mozart. A casa de Mozart havia sido ali pertinho, um dia. O piano tinha ficado para contar a história. Gostava da água escorrendo do céu e das pequenas fontes citadinas, gostava do rio. A água, toda ela benzida por deuses antigos e risonhos. Sob a espessa seriedade do céu, a água lembrava dissoluções. Tudo é efêmero, o sol nos esquece disso. O sol nos encandeia de alegria, mas é sufocante, às vezes. A alegria pode ser sufocante. Ali o dia caía em neblina. E ele gostava. Já o frio quando é muito nos dá a sensação de sermos sugados. Não ali, não o frio daqueles dias. O frio daqueles dias era um suave roteiro para dentro. E, pela cidade molhada, ele caminhava para dentro. Quase sempre fazemos sozinhos o caminho para dentro. Mas é bom ter companhia nesse roteiro friorento. Alguém disposto a nos conhecer, mas conhecer mesmo, direito e avesso. Roubada é andar ao lado de alguém que, em vez de nos conhecer, quer é confirmar em nós alguma imagem que projetou, no auge de suas alucinações de afeto. Só os náufragos são sinceros, ele pensava, à guisa de uma paráfrase de Cazuza. Gostou de ter feito essa paráfrase. Só os náufragos. É Preciso ter sobrevivido a um naufrágio para ter sinceridade. Pensando bem, é tão difícil ser sincero... Às vezes, nem nos naufrágios. Mas ali não havia risco de naufrágios. Nem no rio. De naufragar não, mas, de se perder, de andar em círculos, lá disso corria perigo. O hotel ficara distante, ele fazia um jogo mental de marcar caminho como João e Maria. Imaginários miolos de pão. Agora, ele era o herói de si mesmo, sem cavalo que falasse inglês, nem alemão. A noite e a névoa tinham o mesmo som e eram a mesma coisa. Eram uma sintonia e ele também era uma sintonia com a noite, a névoa, a cidade. O resto do mundo e o resto da vida estavam distantes. Ali estava a eternidade. Ali estava ele, entre enormes cartazes que anunciavam os próximos festivais de música da cidade. Bem ali, há poucos anos, pessoas desciam de carruagens suntuosas para ver os músicos se apresentarem. Pouco tempo depois de agora, quando os próximos festivais ocorressem, ele já não estaria ali. A eternidade é efêmera. O amanhã viria logo. Acordou tonto, entre sonho e realidade. “O mundo é bão, Sebastião.”* *Nando Reis.
Posted on: Thu, 21 Nov 2013 13:32:12 +0000

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