A frase é de Charlie Chaplin, mas adequa-se na perfeição - TopicsExpress



          

A frase é de Charlie Chaplin, mas adequa-se na perfeição aos refugiados forçados a improvisar novos rumos para as suas vidas. No Centro de Acolhimento da Bobadela, em Loures, o primeiro passo para a integração dá-se com a aprendizagem do português. Com aulas. E através do teatro Do outro lado da recepção, espreita um senhor de pele morena e cabelo grisalho. Anda na casa dos 60 anos e há algo no seu olhar que denuncia uma origem árabe. Diz um "bom dia" em perfeito português, atende-nos com a cordialidade esperada de um recepcionista. Segundos depois, endurece a expressão quando lhe perguntamos pela casa de banho. "Não há. A troika fechou", diz, com o canto do sorriso a aparecer. É assim que se é recebido no Centro de Acolhimento para os Refugiados (CAR), na Bobadela, Loures. Logo à porta da instituição, o homem que atende o telefone e acolhe os visitantes é o rosto que representa o Conselho Português para os Refugiados (CPR). Não quer que usemos o seu nome - Valentino parece-lhe melhor. Aos 66 anos, vive entre pessoas simpáticas e mulheres bonitas de todas as nacionalidades. Delicia-se com cigarros e conversas. Envia beijinhos pelo ar às colegas que saem do trabalho. Aprende todos os dias mais uma palavra de português. Valentino nasceu na Palestina, em 1947. Um ano depois, o conflito com Israel desviou-o por 48 horas a si, e à sua família, para território sírio. "Era por uma questão de segurança", confidencia o recepcionista. As 48 horas de abrigo na Síria transformaram-se em longas décadas de refúgio e Valentino viu-se a braços com uma pátria que não era sua, mas onde acabou por construir uma vida. Cedo percebeu que a ditadura de Assad não era compatível com o seu temperamento. "Tinha uma língua muito comprida. Acabei por ser perseguido durante mais de 25 anos pelos serviços secretos sírios", explica. Foi há oito anos que chegou a Portugal. A situação política em que estava envolvido não podia continuar e agarrou a primeira oportunidade que conseguiu. "Escondi-me num barco", conta com um encolher de ombros e uma ligeira mágoa de quem recorda os dez dias difíceis que viveu escondido, em alto mar. O barco tinha como direcção Lisboa. "Era o único destino que estava na minha mão. E eu aproveitei-o." Três meses depois de entrar no CPR, Valentino apercebe-se do novo projecto que surgia às mãos de Isabel Galvão, a sua professora de Português: um grupo de teatro para refugiados. "Eu gosto dessas coisas. Pedi à professora e ao resto do grupo e todos disseram que sim", recorda. "A vida é uma peça de teatro que não precisa de ensaios", lança-nos o recepcionista-actor, após um segundo de silêncio. A frase é de Charlie Chaplin, diz-nos, mas adequa-se na perfeição a um refugiado que é forçado a improvisar um novo rumo para a sua vida. Com a família longe, também ela agora duplamente refugiada, num campo libanês, devido à guerra na Síria, Valentino encontrou no RefugiActo a energia de que necessita para distribuir sorrisos na recepção do CAR. "Não consegue imaginar como é o ambiente do nosso grupo de teatro. Tratamo-nos uns aos outros como família. É a minha família." "Portugal é bom" Isabel Galvão surge pela porta, em passo acelerado. É a mulher que ensina Português a todos quantos passam pelo CAR, mal chegam a Portugal. De analfabetos a licenciados, todos se sentam, à vez, à volta da grande mesa, na sala de formação. Vamos ao seu encontro, neste mesmo palco, meia hora depois do início da aula com a turma D. São sete os alunos: cinco homens e duas mulheres. Eritreia, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Rússia e Afeganistão são as nacionalidades por trás do português, pausado e grave, que flui das bocas dos alunos. Fala-se de liberdade, da falta dela em Portugal durante o Estado Novo, numa altura em que também os portugueses procuraram refúgio noutros países. Eugenio, de pele clara, barba e rabo-de-cavalo, escuta com atenção as explicações da professora. Tem ao seu redor uma criança de cabelo muito louro, que ciranda pela sala em busca de entretenimento. Além do diálogo entre professora e alunos, os intervalos de silêncio são preenchidos com o doce cantarolar da criança, que já nasceu em Portugal mas não fala português. O pai, russo, fugido por motivos políticos do seu país, tem medo que o filho não aprenda a língua materna e, por isso, não o colocou na creche, ali mesmo ao lado, onde as crianças aprendem português umas com as outras, como por magia. Sowya fugiu do Afeganistão, há dez anos, com os dois filhos, ainda pequenos, pela mão. Corria o ano de 2003 e a guerra deixava marcas profundas em solo afegão. Passou sete anos na Ucrânia, mas o destino haveria de fazê-la rumar a terras lusas. Não quer regressar, diz que está bem onde está. "Portugal é bom", diz Sowya, embora a frase pertença, de um modo geral, a todos os refugiados que vêem o país que os acolheu como a sua salvação. Hedasy, sentada ao lado de Sowya, parece ter aprendido a falar português com uma pronúncia feita de sorrisos. São 32 anos de uma tristeza camuflada, de quem saiu da Eritreia deixando para trás a sua maior riqueza: os dois filhos. Não os vê há sete anos, tempo durante o qual passou, juntamente com Solomon, o marido, sentado à sua esquerda, uma aventura amarga, fugindo para o Sudão, Líbia e Tunísia. Do outro lado da mesa sentam-se Maxwell, da Serra Leoa, Ousmane, da Guiné-Conacri, e Siraj, da Eritreia. Têm os cadernos abertos e impecavelmente preenchidos de palavras portuguesas. Maxwell não quer falar. Apenas sorri, com vergonha ou com medo. Ousmane, de 22 anos, é o que mais gosta de escrever, segreda a professora Isabel. "Fica nervoso quando fala", explica-nos em surdina. Mas quer falar. Falar de liberdade, da sua terra, da família que ficou para trás. As pausas no discurso confundem-se num misto de ansiedade e de procura por vocábulos portugueses. Ou talvez seja só a emoção. A professora dá-lhe permissão que se expresse em francês e logo Ousmane reinicia a narrativa: "Tout a commencé quand ma famille...". A história desenrola-se, penosa, para o jovem, que ainda hoje não sabe onde estão muitos dos seus familiares. Por fim, o terceiro eritreu da sala: Siraj. O percurso foi semelhante ao de Solomon e Hedasy. Primeiro o Sudão, depois a Líbia, onde esteve durante cinco anos, três dos quais preso por não ter documentação. Mas os ventos da Primavera Árabe haveriam de o empurrar para a Tunísia, onde esteve cerca de oito meses, refugiado no Chucha Camp, sob as mais terríveis condições humanas. Portugal é, desde há um ano e meio, a sua nova casa - o seu alívio. "Sem liberdade não há vida", conclui Siraj, que desde os 24 anos tem fugido ao seu encontro. Isabel Galvão só tem 15 minutos para a entrevista. A conversa flui: as preocupações iniciais, os principais desafios, a abordagem da integração dos refugiados na sociedade portuguesa, exemplos de sucesso e de insucesso. Tudo é relativo na aprendizagem da língua portuguesa. Há quem seja mais esforçado e compreenda que o idioma é um passaporte para o emprego; há quem passe um período de adaptação difícil, tratando de pontas soltas que parecem não ter fim. E, depois, há os que não dominam sequer o alfabeto latino, os que não são alfabetizados e os outros, os que chegam com habilitações superiores e que nem na construção civil conseguem trabalho. Os 15 minutos já se esgotaram, mas ainda falta uma pergunta: "E o RefugiActo?". Os olhos da professora brilham. Descreve os pormenores da fundação do grupo de teatro do CPR. Foi em 2004 que Isabel Galvão decidiu dramatizar alguns dos testemunhos mais caricatos dos seus alunos refugiados. "Era um tempo em que as pessoas contavam muitas peripécias do que se passava no SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], nos centros de saúde, na própria construção civil, e eu pensava como era engraçado nós dramatizarmos isto e darmos a conhecer aos outros", relembra. Encenaram os primeiros sketches, levaram-nos à cena e fizeram rir uma plateia constituída por outros refugiados, amigos e técnicos do CPR. "O objectivo nem era fazer um grupo de teatro", diz, com um encolher de ombros, "era nós participarmos e apresentarmos umas brincadeiras numa festa do fim do ano". Tarde de mais - o vício instalara-se. "Queríamos continuar. Foi tão enriquecedor para todos que começámos logo a pensar criar um nome." Começou assim a consolidar-se o RefugiActo, um grupo de teatro amador, multicultural, que foi sofrendo remodelações constantes, à medida que uns actores iam saindo e outros entrando. Os projectos somaram-se, sempre em torno da temática dos refugiados. Os dois principais, Abrigo e A Pequena Carlota, continuam a ser levados à cena, sempre que recebem convites de escolas e outras organizações. Hoje, o grupo é formado por três portuguesas e cerca de 20 elementos de 12, 13 nacionalidades diferentes. Quem pede para entrar tem como único requisito a língua, uma só, o português. É esse, afinal, o propósito do grupo: reforçar a aprendizagem da língua portuguesa de uma forma lúdica. Ou então é muito mais do que isso: "É ali que muitas vezes se fala dos problemas, de uma maneira diferente com que se fala com um técnico", diz Isabel Galvão, com a certeza de que o RefugiActo é como uma catarse para os seus elementos. "Um refugiado, muitas vezes, não pertence aqui - quer pertencer, mas ainda não pertence - e também, de alguma maneira, não pertence ao seu país, porque teve de fugir dele. Há uma identidade que falta e essa pertença a um grupo é muito importante."
Posted on: Sat, 22 Jun 2013 06:48:57 +0000

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