Cometi um improviso literário ontem. Um conto-expresso sobre o - TopicsExpress



          

Cometi um improviso literário ontem. Um conto-expresso sobre o amor. Beleza Casaram-se feito qualquer casal. Foram ficando, namorando, e depois da rotina ficar insustentável, a resposta foi a institucionalização da rotina. Casados, não apreciavam mais os beijos, as conversas, o fluir de duas existências em uníssono. Como haviam se quebrado psicologicamente para ter estabilidade financeira suficiente, resolveram, para quebrar a rotina, ter um filho. O filho veio, a depressão pós-parto foi um mistério calado por parte de Sicrana, que se acostumou a conviver com a tristeza. Fulano, por sua vez, sempre que podia fugia dos compromissos familiares, conjugais, paternais e quaisquer compromissos que não fossem a sutil escravidão que enfrentava das sete da manhã, ao sair de casa no carro confortável até as oito da noite, ao chegar em casa. O escritório ao menos oferecia um pouco de vivacidade, pois sempre havia uma estagiária nova para ele emular adrenalina vulgar em meio ao seu cotidiano privado de quaisquer realizações. Passaram-se vinte anos no piloto automático. O filho foi embora, tudo começou com a ausência, sem nem perceberem. Tempos depois, o filho estava morando na rua, pois não poderia envergonhar os vizinhos com aquela cara de drogado. Morreu na rua, meses depois. E o que não poderia parecer pior, sofreu uma mudança repentina. Sicrana adoeceu. Fulano não voltava para casa nem por decreto, agora, havia a desculpa que o tratamento era caro demais e ele precisava trabalhar mais. Mentira. Bebia todos os dias, a mulher fingia não saber. Fulano realmente não entendia como o filho tinha lhe escapado, teve tão boa criação, a igreja frequentada pela família oferecia os mais excelsos serviços pela módica quantia de dez por cento. A escola era de excelência, havia praticado todos os esportes, feito todos os cursos, tinha todos os videogames de última geração e todos os mimos que o dinheiro pode comprar. Porque tinha buscado refúgio nas drogas? Refúgio de quê? Fulano se questionava no balcão do bar entre um uísque e outro. Na época dos militares que era bom, as pessoas eram decentes, não havia roubalheira, não havia toda essa imoralidade que fez com que levassem meu filho - consolava-se Fulano, que cresceu numa cidade pacata do interior em outros tempos. Sicrana novamente calou seu mal-estar, o que a família poderia pensar? Veio a aposentadoria. Fulano quase morreu, agora não havia mais para onde fugir e começou a beber todo o tempo. Sicrana por sua vez, era mais afeita às drogas sintéticas, a farmácia era seu paraíso. Certo dia, Fulano descobriu um novo refúgio, começou a ler. Lia muito, lia todas as coisas que apareciam pela frente e logo inquietou-se com a similaridade dos livros que lhe indicavam na livraria/café/blêblêblê local. Agora, para fugir de casa, ficava o dia inteiro bebendo café e uísque que carregava escondido. Fulano acabou caindo em uma parte perigosa do conhecimento: recorreu aos clássicos. Cada um lhe mostrava um pouco o que tinha feito a sua vida tão miserável. Parecia que conversava com alguns, discutia com outros, e percebia que havia vivido de maneira automática. Se apaixonou por história, passeava pelas épocas imaginando como teria resolvido seus conflitos em outras épocas. Criou a capacidade de ter opinião, que logo conseguia comunicar em conversas com as pessoas que também sempre apareciam naquela livraria. Mas as pessoas pareciam felizes de estar ali, sentia-se um fugitivo, estrangeiro. Fulano descobriu depois do primeiro ataque cardíaco que estava velho, e então começou a sentir, pela primeira vez, afeto pela sua esposa, que era mais nova e devido a não se sabe quantos tratamentos diferentes, conservava a beleza de décadas passadas. Acontece que ela não estava mais nesse mundo. Agora ele era capaz de perceber que seu espírito havia morrido. Era uma perda dupla, pois Fulano lembrava dos ímpetos e da vivacidade que o marcaram quando ela tinha dezoito anos e engravidou. Fazia tempo que havia percebido como perdera seu filho, certo dia, desatou a chorar no caminho de volta para casa, desabou de joelhos no meio da rua e assim ficou até tarde da noite. Precisava reparar essa perda e decidiu reavivar sua esposa. Fracassou. Ela já tinha perdido a esperança e a única espera era a morte ou o novo lançamento daquela marca que faria inveja às amigas. Foi mais ou menos em meio a esse desespero que aconteceu o acidente. Era um domingo tranquilo, cuja ameaça no condomínio fechado só poderia vir por meio de algum meteoro ou pela ira divina. Sicrana pegou o carro e saiu. Alguns minutos depois o telefonema. O hospital. Aconteceu um acidente, o veículo pegou fogo e Sicrana teve queimaduras graves. Fulano chegou no hospital e não pôde entrar na UTI para ver a mulher. A taquicardia parecia que ia causar uma explosão em seu peito, formigamento, suor frio. Não conseguia chorar, quando lembrou do filho que poderia estar ali, apoiando seu velho e frágil corpo, não resistiu... Gritou. O ódio tomou conta de si e das escolhas, foi até em casa, pegou a velha arma escondida no armário, estava carregada, puxou o gatilho... Nada. Só um estalido de mecanismo falhando. O filho do vizinho ouvindo um funk carioca no último volume. Foi quando lembrou da mulher e se deu conta de que aquilo seria o fim dela. Foi para o hospital logo depois de se livrar da arma. Quando finalmente pode visitar a mulher, o choque. Parecia uma múmia enfaixada. A queimadura havia deformado seu rosto. Depois de dias de tratamento. Não havia nariz, não havia orelhas, não havia a mulher que ele conheceu a vida toda. Entretanto, a sua voz, agora sem o efeito de toneladas de pílulas, ainda era a mesma daqueles anos pretéritos em que Fulano conseguia ter entusiasmo. A primeira coisa que Sicrana falou foi: "meu amor, estou muito feia?". Fulano chorou, a abraçou e disse: "que saudades". Nos dias seguintes ele levava seus livros preferidos e lia para ela, até que passado um tempo, os dois conversavam naturalmente, sem a ajuda dos papéis. Aquela voz entoava uma sinfonia na mente de Fulano. Em casa, depois do longo processo de restabelecimento, Fulano não compreendia direito que estava sentindo. A beleza ausente de Sicrana se multiplicava e se tornava de uma beleza divina, justamente porque não era mais vista, Sicrana havia se tornado uma cicatriz em aparência. Assim, ficou bela de uma maneira inimaginável, apenas perceptível, pois a beleza vinha da admiração de Fulano. E assim, pelo caminho mais estranho possível, Fulano foi feliz durante alguns anos antes de morrer, pois amava. ...
Posted on: Thu, 27 Jun 2013 00:16:35 +0000

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