Dona Maria acordara mais cinzenta do que nunca. Nem o sorriso do - TopicsExpress



          

Dona Maria acordara mais cinzenta do que nunca. Nem o sorriso do vizinho novo ao lado lhe despertara o desejo de alongar os braços e espreguiçar-se, como a gata em telhado de zinco quente que noutros tempos fora. Sentia-se velha e abandonada… Mais do que isso!... Sentia-se como uma prostituta desdentada, de carnes lassas e escorregadias a quem os homens olhavam com um sentimento de compaixão, depois de a terem possuído até ao mais íntimo do seu ser. Já fora nova, bela e respeitada!.. Mesmo por reis e príncipes, que não se escusavam a longas viagens enquanto deles se apoderava o arrepio de quem desvenda o lado mais íntimo de uma mulher, precipitando-lhe o destino. Até nome de rainha lhe deram e ela, de tantas do mesmo nome que há na terra não se podia queixar da sua graça e de quem fora noutros tempos… Mas tinham passado tantos anos!... E como os homens eram ingratos!... Ah!... Tantos testemunhos poderia dar da sua fidelidade!... A quantas tragédias iminentes não resistiu durante toda a longa vida de trabalho!... Entre muitas peripécias, lembrava-se bem daquela vez em que um bêbado, qual locomotiva desenfreada, irrompera por ela abanando-lhe as entranhas, perturbando-lhe o equilíbrio… Gritos, pânico… Mas, apesar de já não ser nova, conseguiu controlar-se, restabelecendo a calma… Tudo fora tão dramático que ao homem quiseram até linchá-lo… E lá continuava ela recordando com saudade aqueles mais de cem anos, rio em baixo, dividida entre uma e outra terra das duas que a viram nascer… Nunca se furtara, contudo, ao imenso abraço, estreitando laços, criando união, diluindo margens… Em abono da verdade, era obrigada a confessar, sempre tivera uma predilecção pela cidade cujo santo padroeiro morava mesmo ali ao lado, nas Escarpas das Fontaínhas… Talvez fosse uma questão de fé…, um pedido de protecção para o futuro em que, no meio de grandezas e misérias, irremediavelmente se esconde a implacável velhice… Agora, era forçada a concluir não lhe ter adiantado de nada… Nem os homens nem o santo a tinham amparado… Ali estava naquela espécie de lar de terceira idade, onde o único remédio que lhe davam eram comprimidos para a sonolência e o esquecimento de si própria… Porém, as festas ao santo ficavam de ano para ano mais animadas, enchendo-se a cidade de luz e de cor… Ah!...Como gostava de festas!... – E a memória dos templos gloriosos inundou-a de um rasgo de imaginação e audácia. Dona Maria resolveu por fim esfregar a remela. Olhou a vizinhança. Lá estava o S. João que, de tanta capacidade milagreira, estava agora transformado em ponte, braços estendidos como quem pede uma ousadia de mulher… Espreguiçou-se então languidamente. À ideia ocorreram-lhe as voltas que o mundo dá e o império tece. Alongando a vista em direcção ao mar, viu um letreiro que dizia: “PORTO, PATRIMÓNIO MUNDIAL” Imaginou-se logo, não a jovem de outrora mas sim uma senhora idosa e distinta, resplandecendo na noite, sentindo-se então ainda capaz de despertar aos homens um olhar de admiração… De repente, o seu corpo cobriu-se de uma misteriosa aura, ao mesmo tempo sedutora e enigmática… Devolveu por fim o sorriso ao vizinho novo que lhe estendia os braços e, num gesto gracioso de rainha, apresentou-se de seguida: − Bom dia!... Sou a PONTE DONA MARIA e faço parte da história desta cidade…
Posted on: Mon, 21 Oct 2013 18:08:47 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015