... Fio Condutor - A quilha ... Edição 1 de Outubro 2013 Boa - TopicsExpress



          

... Fio Condutor - A quilha ... Edição 1 de Outubro 2013 Boa noite. O programa de hoje é sobre amizades e como nos marcam durante toda a vida. Hoje temos um mini-conto para ilustrar a música... Ou o contrário, como queiram... Nota: Só para ajudar a relembrar, um ponta oito é um barco a remos, com uma tripulação de oito remadores mais um timoneiro. "A quilha" -------------------- Vinha a pedido do pai mas o miúdo desconfiava da fragilidade das mãos e dos braços do avô. Imaginava a velhice como uma doença que ia roendo os ossos por dentro. Já estava habituado à brancura dos cabelos e à pele fina mas assustou-se porque o avô dormia sem se mexer, talvez sem respirar… Correu de volta para a sala para ir buscar reforços. Trouxe o pai pela mão enquanto lhe ia sussurrando o seu medo. O pai ajoelhou-se junto à cama e devolveu-lhe o sussurro explicando que o avô andava a gastar o corpo o mínimo possível para viver ainda muitos anos e que aquela forma poupadinha de dormir não era razão para preocupações. Ficou a ver o pai a acordar o avô com uma carícia no peito e um sorriso igual ao que lhe oferecia quando, às vezes, o ia levantar para ir para a escola. O avô virou a cabeça, acariciou a mão do filho pousada no seu peito, rodou a outra mão para o teto à espera dos deditos do neto e pediu-lhe um copo de água. Assim que o neto saiu do quarto perguntou ao filho porque o tinham acordado a meio da sesta. Tinha falecido o seu amigo Seixinho. Muitos dos seus amigos já haviam desaparecido: aqueles que tinham mais pressa, menos cuidado, mais azar ou, simplesmente, menos razões para ir ficando. Mas o Seixinho era do ponta oito... Irónico, pensou. O primeiro a abandonar a nau era o timoneiro, ainda que o Seixinho sempre fora o enfezado da tripulação e o que passara por mais dificuldades na vida. Sentou-se na cama e esperou que o neto chegasse com o copo de água. Molhou os lábios e perguntou ao filho – Sabes quando é que esse rato vai a enterrar? – O enterro era já dali a um par de horas. Decidiu fazer a barba. Olhou para o espelho e lembrou-se da primeira vez em que tinham feito a barba, talvez aos onze ou doze anos... Espicaçados pelo Agulha, mais tarde proa do ponta oito, tinham comprado uma “gilete” comunitária e passaram-na, à vez, na cara molhada, simulando o corte de futuras barbas rijas. Todos menos o Trolha e o Rocky, que não arriscaram meter lâminas afiadas em faces borbulhentas. Não era homem de fazer a barba regularmente e, agora que a pele tinha perdido elasticidade, raramente se dava a esse trabalho. O creme já era antigo e teve alguma dificuldade em conseguir uma espuma uniforme. Seguiu no espelho uma lágrima que abria caminho pelo creme de barbear tal como o ponta oito abrira caminho, sessenta anos antes, pela espuma cinzenta das descargas com que a fábrica do tio do Agulha brindava o rio de vez em quando. Meia hora depois estava pronto. Pediu ao filho que o levasse à igreja que ficava no outro lado da cidade, onde, no seio dos nove do ponta oito, tinha passado as partes mais felizes da infância e da juventude. Durante a viajem, o filho ainda tentou meter conversa algumas vezes mas cedo percebeu que era inútil tentar manter o pai longe do seu passado, absorto na tentativa de recordar de quem teria sido a ideia de arranjar um barco a oito remos com timoneiro mas as lembranças já eram difíceis de perceber com clareza. Do que tinha a certeza era que tinham demorado muitos meses para arranjar o dinheiro para comprar um em segunda mão. Batizaram-no de “ponta oito” e foi amor à primeira vista. Era um barco feminino, de quilha sensual, delicado e de aparência frágil. Ao pôr-do-sol, sob as águas da foz do rio, a luz dourada refletia-se no casco imaculadamente envernizado. Era a amante diáfana que os nove partilhavam. A escolha do timoneiro foi fácil. Apesar de andarem todos na mesma turma da escola, o Seixinho era um ano mais novo e o único avesso a atividades predominantemente físicas. Por outro lado, era o mais inteligente e organizado. Um timoneiro inteiro feito de meia-leca de gente. À medida que os oito remos da nau iam medrando e que a barba deixava de ser imaginária, o Seixinho não se conseguia desfazer do corpo franzino. Proibiram-no de crescer, ameaçando que o trocariam por uma menina do coro se ele desatasse a botar corpo. Felizmente ficou por ali, quase imutável, agarrado à sua função vitalícia de timoneiro. Para sempre um amigo do peito e uma voz de bom senso. O filho abriu-lhe a porta do carro. Em frente da igreja estavam os restantes sete remos, gastos mas altivos, alinhados na mesma formação de há seis décadas atrás. Foi ocupar o seu lugar de segundo proa e, num silêncio absoluto de procissão, ultrapassaram as enormes portas de madeira e entraram na igreja apinhada de gente. O Agulha orientou-os até um dos bancos da frente, reservado pela família do Seixinho. Sentaram-se muito juntos, outra vez um corpo único. O Lanterna chorava numa calma que a idade tinha encontrado. Era primo do Seixinho e o mais emotivo do grupo. Foi ele a propor, no dia em que o Seixinho fez dezassete anos, que passassem a carregar o ponta oito aos ombros, já com o Seixinho lá dentro pois estava visto que não ia crescer mais. A partir daí transportavam sempre o barco com o timoneiro lá dentro. Iam do armazém do tio do Agulha até ao rio com o ponta oito aos ombros. Mais o timoneiro. A madeira envernizada colada na pele. No final da cerimónia o Agulha fez sinal para formarem em frente ao caixão. Pegaram nele aos ombros para que pudesse ser o ponta oito da última viajem do Seixinho. Era uma nau mais curta e tiveram que adaptar as distâncias e partilhar o casco aos pares. A madeira era mais escura e pesada, e o verniz não prendia no tecido dos fatos. Saíram da igreja como saíam do armazém do tio do Agulha. Avançaram devagar até ao cemitério, num sincronismo ordenado pela memória do timoneiro. No fim do enterro avisou o filho que podia ir embora, que depois o Lanterna lhe daria boleia. Estavam cansados mas esperaram para ser os últimos a prestar homenagem ao companheiro. E depois esperaram mais para ficarem completamente sós no cemitério. Finalmente a noite tinha caído e o luar emprestava uma brancura mágica aos cabelos e à pele enrugada. Abriram o jazigo da família do Seixinho e tornaram a pegar no caixão aos ombros. Caminharam quase um quilómetro até chegar às margens do rio que outrora tinham conquistado num verdadeiro ponta oito com timoneiro. Deslizaram a nau para a água e o Lanterna deu-lhe um impulso para que seguisse para o meio do rio e fosse apanhada pela corrente. Aos poucos as obras-mortas foram-se tornando em obras-vivas até desaparecer nas águas escuras. As lágrimas deixavam-lhe um ardor agradável onde as lâminas tinham cortado a barba e ferido a pele. Sentou o corpo dorido no pontão. – Meus caros, estou preocupado... – Sentaram-se todos e esperaram com curiosidade... – Tenham lá calma nisto de morrer porque cada vez ficamos menos para carregar e estas embarcações são muito pesadas. – Sorriram. Um dos meia-nau acrescentou: – E têm uma quilha muito mal jeitosa. [© Bruno Dias, Setembro.2013] https://soundcloud/fio-condutor/a-quilha_mp3
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 23:55:55 +0000

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