História sem nenhuma importância: o médico e as - TopicsExpress



          

História sem nenhuma importância: o médico e as “despachadas”. Ela era a primogênita do casal. Nasceu na Ribeira, fazendola de sua avó e por esta foi adotada. Ao se casar a sua tia, junto com a avó, veio residir na cidade. Era uma jovem inteligente, prendada, expedita, costurava muito bem, bordava, fiava, tecia redes. E estava sempre disposta a uma conversa, a uma festa, a uma dança, a uma discussão. Dir-se-ia hoje que era barraqueira. Não era. Era do tipo que não levava desaforos pra casa. Apenas isso. Por isso mesmo era dita uma moça muito “despachada”. Ao chegar a cidade fez-se amiga da sobrinha do seu tio afim, tal como ela, voluntariosa, desinibida, tão festeira como conversadeira. As duas se tornaram irmãs. A nova irmã veio também morar com o tio. Estavam sempre juntas. Dividiam o quarto, os afazeres, as confidências, as emoções e também as desavenças.. Estavam sempre juntas. Eram como “duas almas num só corpo”, como se dizia na época. Hoje, a corda e a caçamba. Quem se dirigia a uma, tinha a outra como interlocutora, necessariamente. Ele era o filho primeiro de um chefe político do lugar. Foi estudar na cidade grande e se fez médico. Famoso. Raramente voltava aos pagos, mas quando o fazia, a casa do pai enchia-se de gente para visitá-lo e, principalmente, para uma consulta. Afinal, o homem tinha fama de ser um profissional de primeiríssima linha. Ainda que não fosse, na época, tal como agora, médico era uma raridade nos grotões de “Banânia”, muito embora não se cogitasse de importá-los do estrangeiro. Assim, por via da escassez daqueles profissionais, ninguém perdia a oportunidade de uma consulta básica. Ainda por cima, gratuita. A despachada casara-se, fizera-se mãe, mas continuava a mesma: desinibida, simpática, voluntariosa, “mal-criada”, sem suportar qualquer desatenção ou desaforo. Seu filho, o primeiro, desandava com uma diarréia brava. Já lhe dera todas as “meizinhas” que a sabedoria popular lhe ensinara. Todos os chás. Todas as simpatias. E nada do menino parar de esvair-se em cocô. Aconteceu que o médico famoso veio ter com os seus genitores . Enquanto esteve na cidade não lhe faltou clientes. Atendia-os ali mesmo na sala de visitas do casarão e receitava medicamentos postos em uma caixa de papelão, trazidos exatamente para o faturamento político do pai: amostras grátis distribuídas em profusão. A Despachada não perdeu a oportunidade. Envolveu a sua criança em “cueiros” – fraldas é atavio moderno – chamou a “irmã” e, juntas, foram enfrentar a maratona de espera na calçada do médico famoso. Como era de se esperar, anunciaram-se, distribuíram simpatia, monopolizaram a atenção dos demais clientes e se revezaram sob um calor de dezembro nos “descuidados” a criança. Chegada a sua vez, a mãe-despachada cumprimentou o médico com um tão efusivo quanto inconveniente abraço, identificou-se, apresentou a “irmã” ao lado e só muito depois de uma conversa sem fundamento desembrulhou o seu menino, disse da sua preocupação com a diarréia da criança. O médico, visivelmente enfastiado, cansado de mais um dia de visitas e consultas, pisou na bola: - Esse menino é uma semente de fumo! Aí não prestou. Solidária, como sempre, a irmã pediu que ele repetisse o que dissera. Ele, distraído, sem cerimônia repetiu. - Pois semente de fumo é a sua mãe e você ainda não percebeu. Vá receitar remédio pra ela crescer e engordar. Você pode ser médico “pras suas negas”. Pra nós duas aqui, você é um grande charlatão. Se não é charlatão nos mostre o seu diploma. Não vai mostrar porque não tem. E sabe de uma coisa, muito melhor do que você pra curar diarréia de “menino cagão” é Sia-Aninha do Serrote de Dentro... quando vemos homem grande demais ficamos torcendo pra ele tropeçar pra gente ver a queda .... ra-ra-rá e va se danar antes que anoiteça. E saíram esfumaçando com “semente de fumo” mal enrolado nos cueiros. O médico, atônito, não teve oportunidade de dizer uma palavra. Teve que ouvir todos os impropérios daquelas duas mulheres ofendidas, famosas por serem despachadas. Do seu pai, político experiente, soube a genealogia daquelas duas e, dia seguinte, com a sua mãe baixinha e magra, fez aas despachadas, uma visita para apresentar desculpas. Apresentou-as com todo cuidado pra não ouvir mais desaforos. “Semente de fumo” escapou daquela. Cresceu saudável, tornou-se mecânico, casou-se e deu netos e sobrinhos as duas despachadas. Recife, 14-11-2013.
Posted on: Thu, 14 Nov 2013 12:32:06 +0000

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