Ingrata solidão, ou o sentimento-canção que desafia os novos - TopicsExpress



          

Ingrata solidão, ou o sentimento-canção que desafia os novos tempos: Conheci essa música ("Ingrata solidão", no link-player abaixo) há milênios; ou à época dos meus 14, 15 anos; ou nos tempos em que desafiava o carnaval trancafiado no quarto como uma espécie de sambista às avessas: auto-exilado e submerso em gravações de documentários e programas raríssimos que a TVE pinçava do seu acervo e televisionava. Dos que eu mais gostava, até onde posso lembrar, era um apresentado por um senhor meio chato e ranzinza, mas evidentemente apaixonado pela coisa: José Ramos Tinhorão. A coisa se passava ali no começo dos anos 1980, suponho, e ele recebia as velhas guardas das escolas de samba no estúdio, com todos os seus componentes devidamente paramentados, com seus instrumentos e figurinos impecáveis, acompanhados das fidelíssimas e luxuosas pastoras. O especial daquilo tudo — e isso eu só percebi anos mais tarde — não era exatamente assistir aos bambas da Portela, do Império Serrano e da Mangueira entoando seus hinos — ok, é óbvio que era especial assistir Manacéa, Alberto Lonato, Mano Décio, Padeirinho e Babaú vivos e cantantes, claro —; mas o que atiçava mesmo a minha púbere curiosidade de pequeno pesquisador musical era descobrir os geniais e obscuros sambas dos ilustres desconhecidos que integravam as velhas guardas um pouco menos celebradas — por mais que tradicionalíssimas, como a do Salgueiro, por exemplo, entre outras. Foi com eles que aprendi e ouvi — pela primeira e última vez — canções que nunca mais encontrei em canto algum. "Ingrata solidão" foi uma delas. A maior delas. E se escrevo aqui é justamente motivado por esta sua condição, de um tipo cada vez mais raro de canção: aquela que você ouve apenas uma vez, nunca mais se esquece e nunca mais a encontra; a não ser nas suas próprias lembranças, graças a um algum fragmento de memória que heroicamente obstinou-se — por um acaso inexplicável — a guardá-la para você. E foi justamente um espécime raro desses que cruzou o meu caminho no dia em que o Tinhorão decidiu convidar a resistência inaudita da velha guarda do Salgueiro. Foi graças ao acervo da TVE que uma melodia um tanto simples — talvez essencial, por isso potente — tomou a minha cabeça e nunca mais me abandonou — e nunca mais, aqui, corresponde e compreende toda a outra metade da minha vida: dos 15 anos de lá aos 30 anos de cá. Nunca mais mesmo — a não ser pela lembrança. Durante toda essa metade envelhecida, portanto, volta e meia tentava encontrar a tal canção em algum disco, em alguma gravação, mas nada, a coisa era ingrata. Para dificultar, eu não me lembrava do título e até hoje não sei onde foi parar meu pequeno acervo de fitas de vídeo — uma dezena ou mais inteiramente dedicadas ao samba — sim, era só isso que eu ouvia por volta dos 15 anos; foi aos 16 que Kurt Cobain me corromperia irremediavelmente. Um bom tempo mais tarde, com o advento do Google e etc., às vezes eu me punha a digitar o nome de Geraldo Babão e a palavra solidão na barra de pesquisa — me lembrava dos versos: "Solidão, solidão/ Ainda espero um dia, a felicidade invadir meu coração..." —, mas o maior, o mais preciso e mais poderoso buscador do mundo se negava a cumprir seu papel; falhava vergonhosamente, enquanto eu, entre o desalento e a resignação, arriscava um terço de sorriso ao ver o gigante virtual dobrado aos pés de tão singela e fugidia canção. Assim, a escapabilidade daquela música tornava a busca ainda mais fascinante, sua raridade emprestava à criação de Geraldo um valor exterior, que ultrapassava suas própria qualidades musicais, ao mesmo tempo que o prolongamento daquela ausência e os ameaçadores lapsos de esquecimento acentuavam em mim o medo de perdê-la de vez para o mau funcionamento da memória, fosse causado pelo avanço da idade ou pelo acúmulo de dados outros, pela saturação informativa que levaria minha memória a eliminar sem dó nem piedade tão longínqua, efêmera e inútil lembrança — medo em vão. Passados alguns anos, a canção permaneceu viva e, de repente, numa aleatória tentativa ritualística quase não acreditei ao deparar com a gravação de um show do grupo Terreiro Grande, em que eles cantavam a tal música ao lado da Cristina Buarque — irmã do Buarque mor e uma das maiores arqueólogas do nosso samba. Urrei. Nossa, só a Cristina. Dei play emocionado, ouvi desconfiado e fechei o navegador um tanto frustrado. A música era aquela mesma. A letra e a melodia. Iguais, sem tirar nem por. Mas faltava alguma coisa, algum elo perdido, algo fora do lugar. Eu tinha encontrado a canção, mas a lembrança permanecia perdida. O desencontro era gritante. A distância entre o presente da canção recriada e a memória salvaguardada da mesma era enorme. Mas canção estava lá. Letra e melodia. Iguais, sem tirar nem por, apenas diferente do que o meu imaginário havia construído, armazenado e cristalizado como memória sonora. A minha lembrança, intacta, havia perseverado e mais, havia preservado não só aquele coro especial de vozes que só as pastoras das velhas guardas tradicionais sabem puxar, mas tb a paisagem sonora daquele programa de TV, e, é claro, a voz frágil, meio esgoelada, mas visceral e sentida de Geraldo Babão — tudo mantido e encapsulado no túnel imaginário do tempo. Lembrava-me também da imagem, daquele sujeito de boina branca, camiseta aberta no peito, seu tipo um tanto singular de malandro magro, mirrado, meio banguela, se estrebuchando de tanto colocar a alma pra fora; sem vergonha de chorar, sorrir e rasgar de emoção. Não dava. Era muita memória adjacente, era muita recordação para além da canção em si, era muita história que eu precisava reencontrar. Abandonei a possibilidade de que aquela versão do Terreiro Grande pudesse curar a saudade daquela impressão original e insuperável. Tive nesta experiência de quase resgate a constatação do quanto certas gravações agem como construtoras da canção, do quanto um tempo, uma atmosfera, um ambiente sonoro, uma acústica, um estúdio e seus dispositivos tecnológicos imprimem traços absolutamente fundantes e constituintes do que é uma canção — uma construção sonora que, de fato, vai muito além de sua letra, melodia e dos instrumentos dispostos a executar determinado arranjo ou partitura. Pois bem, o fato é que há poucos minutos tive uma ligeira epifania ao esbarrar com "Ingrata solidão" no Google. Mas logo adianto — para evitar palpitações exacerbadas —, foi um encontro pela metade. A encontrei meio que à revelia, como se a ingrata tentasse manter incólume sua impenetrável solidão, sua aura mítica de canção perdida no tempo. Mas era ela. E ninguém pode negar. Era ela quem estava lá escondida por trás da esquina de um post isolado, perdida num blog qualquer, numa postagem de 2008 que misteriosamente havia escapado ao meu (Google) radar. Mas como disse, o encontro não foi completo. Me reencontrei com a canção, com o coro da velha guarda do Salgueiro, mas não com a voz de Geraldo Babão. Quem a interpreta aqui abaixo é Zuzuca do Salgueiro, numa gravação extraída do LP "As minas do Rei Salomão", lançado em 1975 pela ala dos compositores da escola tijucana. A canção está lá. Letra e melodia. Iguais, sem tirar nem por. O coro da velha guarda do Salgueiro, um salgueirense entoando o hino com verve e emoção, mas a voz alquebrada de Geraldo Babão ainda me falta. Não há gravações de Geraldo Babão para a obra-prima de sua própria autoria. A voz solitária de Babão ainda segue perdida, impossível de ser achada no Google, aprisionada nos acervos da TVE, mas acesa e vibrando em algum canto resistente da minha memória. E é desse canto escuro, desse esconderijo inescrutável, dessa ingrata solidão que me toma na madrugada que lanço ao vento esta parte incompleta da canção que tanto me marcou e que ainda me faz sentido quando reverbera e espelha minhas eternas contradições. Solidão, como amo e te odeio, ingrata tentação: "Solidão, solidão/ Te considero em minha em vida/ A pior tentação/ Solidão, solidão/ Eu ainda espero um dia/ A felicidade invadir meu coração/ Eu vou lhe mandar embora/ Ô ingrata, solidão". divshare/flash/audio_embed?data=YTo2OntzOjU6ImFwaUlkIjtpOjQ7czo2OiJmaWxlSWQiO3M6NzoiNDkzODUwMyI7czo0OiJjb2RlIjtzOjExOiI0OTM4NTAzLTBmMSI7czo2OiJ1c2VySWQiO2k6MDtzOjEyOiJleHRlcm5hbENhbGwiO2k6MTtzOjQ6InRpbWUiO2k6MTM3OTk4OTkwNDt9&autoplay
Posted on: Tue, 24 Sep 2013 06:23:25 +0000

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