J.J. Camargo: Um filho especial A história de amor ilimitado a um - TopicsExpress



          

J.J. Camargo: Um filho especial A história de amor ilimitado a um menino cheio de afeto arquivado Enviar para um amigo CorrigirImprimirDiminuir fonteAumentar fonte J.J Camargo* jjcamargo.vida@gmail Ilustração: Edu Oliveira *J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM) Quando os pais entraram no consultório, ele recuou para a sala de espera e foi trazido contra alguma resistência para conhecer um doutor pelo qual tinha interesse zero. A baixa estatura, o tronco retaco, os olhos puxados denunciavam a síndrome de Down, mas o jeito que se escondia atrás da perna do pai era idêntico ao de qualquer criança diante de uma situação desconhecida e potencialmente hostil. O início da consulta foi difícil, a ausculta dos pulmões, interrompida por gestos desorganizados e reclamações desconexas, até que lhe ofereci o estetoscópio para que ele escutasse o meu coração. Meio relutante, ele aceitou, franziu o cenho e se concentrou. De repente um sorriso enorme encheu o consultório e junto veio a descoberta: — Pai, o coração dele bate! Quando inverti o aparelho para que ouvisse o seu próprio coração, o olhinho brilhou e o lábio tremeu com a revelação: — O meu coração é que nem o dele! Com corações iguais, nenhuma identidade poderia ser mais perfeita. E assim, de amizade alinhavada, avançamos. O pai me confessou que, tendo outros dois filhos normais, ficou arrasado quando descobriu a anomalia genética do menino, temeu por seu futuro e, por um tempo, duvidou da sua capacidade de amar a esta cria tão diferente das demais. Enquanto se atormentava, o Lucas sorria descompromissado, com um monte de afeto arquivado à espera de que alguém o resgatasse. Aos nove anos, já estabelecido como o centro das atenções da família, foi atropelado quando atravessou, distraído, a rua da casa. A informação de que deveria sair logo do coma provocado por uma concussão cerebral não tranquilizou ninguém. O irmão mais velho, sentindo-se culpado por não ter impedido a corrida destrambelhada pela rua afora, chorava um choro de varar a alma. E então, um dia, finalmente terminou a tortura, a cara redonda despertou sem aviso, e a vida daquela família pousou, depois de três semanas suspensa no ar. Em decorrência daquele trauma grave, ele esteve intubado, e quando se recuperou, passou a se queixar de falta de ar e, depois de perambular por vários especialistas, finalmente foi feito o diagnóstico de estreitamento da traqueia, como sequela daquele tratamento salvador. Operar o Lucas, frequentar seu mundinho de descobertas mágicas e desconcertantes e conviver durante uma semana com sua família de amor ilimitado foi um indescritível exercício de humanidade. Por ocasião da alta, o pai me confidenciou: — Amo muito meus outros filhos, mas tenho medo que eles não entendam o que sinto quando este gordinho abre os braços e, desengonçado, corre para mim. Enquanto isso, na academia... J.J. Camargo é presidente da Academia Sul-rio-grandense de Medicina (ASRM) e, uma vez por mês apresenta, neste espaço, resumo da reunião. — Na sessão de setembro, Francisco S. Benfica, professor de Medicina da UFRGS, proferiu brilhante conferência sobre Arte e Medicina: Desenvolvendo Conhecimentos Estéticos e Habilidades Interpretativas. Começou ressaltando a importância da inserção da arte no ensino da medicina, e a tendência moderna das melhores escolas médicas do mundo de tornar obrigatória a inclusão no currículo do estudo de humanidades como literatura, cinema e pintura. — Ressaltou que a medicina explora muito o conhecimento científico, que, por suas características, permite ser transmitido de forma coletiva e impessoal. Sistematicamente, somos treinados na faculdade a trabalhar com dados estatísticos, epidemiologia, protocolos assistenciais, tecnologias diagnósticas, escores, prognósticos etc. Mas um médico necessita também adquirir um conhecimento estético e sensitivo, que só pode ser construído por meio da interação individual e pessoal com o paciente, e este é um conhecimento não reproduzível, que só pode ser adquirido por experiências vivenciadas e emocionalmente competentes. Estas duas formas de conhecimento são fundamentais para o desenvolvimento daquilo que é mais importante no desempenho da atividade médica: "O saber tomar decisões". E estas devem ser tomadas levando em consideração a razão, mas também a intuição, a emoção e a imaginação. O desafio que se apresenta, então, é buscar alternativas para o desenvolvimento e o treinamento de conhecimento estético e as habilidades interpretativas entre os alunos de Medicina. — Reconheceu que a pintura é mais do que uma experiência estética de imagens visuais. Trata-se de um conhecimento singular, não científico, que permite explorar ao máximo a percepção e construir conexões interpretativas. Estudar a arte, por meio da pintura, nos permite exatamente desenvolver esse entendimento mais profundo e estas habilidades cognitivas. Como uma pintura que apresenta um conjunto de sinais, signos e ícones, o paciente é também um conjunto de sintomas, sinais, emoções, gestos, metáforas que necessitam ser interpretados. O médico é um espectador curioso, e o paciente é um quadro a ser interpretado. Avaliar pacientes é construir um significado clínico por meio de fenômenos e sinais isolados e organizá-los numa narrativa conclusiva. — Concluiu que a inclusão da arte visual no currículo médico é ferramenta preciosa no sentido de permitir ao aluno desenvolver, treinar e aprimorar capacidade interpretativa, pensamento não científico, observação simbólica, percepção de sentimentos e capacidade de julgamento. O sentido desta experiência é auxiliá-lo a construir, na visão da arte, uma narrativa conclusiva, o que representa, numa análise médica, a construção de diagnóstico técnico e moral. Num momento em que se questiona o avanço da impessoalidade na relação médico-paciente, o estudo da arte, mais especificamente o da pintura, pode ajudar a resgatar traços humanistas da medicina. Desenvolver intuição, estimular emoção e exercitar imaginação são formas de resgatar o paradigma humanístico, ameaçado cada vez mais pelo tecnicismo pragmático, que longe está de ser modelo de construção de médicos.
Posted on: Sun, 06 Oct 2013 01:26:18 +0000

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